domingo, 21 de março de 2010

Trabalho recupera convivência da medicina oficial com a magia no século 17

Trabalho recupera convivência da medicina oficial com a magia no século 17

Edmilson Silva

O folhear do caderno de classificados dos jornais populares, durante a semana, ou das revistas sobre as celebridades, encartadas nas edições dominicais desses veículos, faz o leitor se deparar com anúncios de pais de santo e outros profissionais que fazem da arte divinatória o seu sustento. Recorrer a esse expediente à busca de soluções de problemas do corpo e da alma é muito antigo no Brasil. É o que demonstra o artigo O universo mágico das curas: o papel das práticas mágicas e feitiçarias no universo do Mato Grosso setecentista, de Mário Sá, no exemplar de abril a junho da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, periódico científico publicado pela Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).

Enquanto na metrópole a perseguição a curandeiros era intensa, na colônia toleravam-se algumas práticas mágicas de prevenção e proteção do corpo

No Mato Grosso do século 18, a crença nas práticas de magia e feitiçaria constituiu patrimônio social, mas este foi usufruído de forma conturbada pela sociedade, segundo Sá, professor da Universidade Federal da Grande Dourados. Ele informa que cabia principalmente aos brancos o papel de denunciadores das práticas e aos africanos, indígenas e seus descendentes, o de denunciados. “Se magia e feitiçaria se constituíram em patrimônio social, magos e feiticeiros foram apontados como pertencentes aos setores mais pobres da sociedade ou até disso acusados”, diz Sá.

Mas diante das doenças inflamatórias, dos violentos garrotilhos, sarampos e disenterias que não poupavam nenhum tipo social, negros, índios, brancos e mestiços, pobres e ricos e nem mesmo os profissionais de saúde e inclusive o governador Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, as pessoas recorriam aos feiticeiros e magos para preservar o corpo, mas também em busca de cura para os males da alma. “Enquanto na metrópole a perseguição a curandeiros era intensa, na colônia toleravam-se algumas práticas mágicas de prevenção e proteção do corpo. A dispersão de profissionais de medicina no vasto território colonial e a escassez de medicamentos fez com que homens e mulheres que lidavam com essas práticas fossem chamados para atender os enfermos”, destaca Sá, citando a dissertação Saúde e doença: práticas de cura da América do Sul (1727-1808), de Nauk Maria Jesus, para a Universidade Federal de Mato Grosso.

O exercício da magia e da feitiçaria era envolto pelas contradições sociais: ao mesmo tempo em que tinham os serviços procurados, muitas vezes eram denunciados pelos próprios usuários destes. Sá recorreu a documentos de várias regiões do Brasil colonial para analisar a razão, diante do perigo que isso representava, que levava essas pessoas a se idenficarem como curandeiros e feiticeiros. E descobriu que isso era feito em troca de prestígio, presentes diversos, dinheiro e ouro. Ganhos que não livravam os praticantes do estigma associado. Um dos autores citados, André Nogueira, escreveu que “a verdade irrefutável é que a maioria desses negros usava seus conhecimentos herbolários e o recurso ao sobrenatural como forma de buscar afirmação social, algumas oitavas de ouro e bens como roupas, tecidos, entres outros”.

Detentores de saberes considerados mágicos, a fama pública fazia os negros escravos e forros, segundo outra autora citada por Sá, Laura de Mello e Souza, requisitados também por brancos, o que geralmente elevava seu status, junto à sua própria comunidade e possibilitava, através das curas, feitiços amorosos e confecção das mandingas, a obtenção de ganhos materiais não só em dinheiro, mas ainda em gêneros”.

Se havia preconceito contra eles, procura é que não faltava a esses profissionais, acusados de fazer e desfazer feitiços. Até porque, como destaca Sá, naquela época no Mato Grosso, área em que estavam as minas, leia-se a riqueza, uma das maiores adversidades enfrentadas pelos habitantes estava relacionada à saúde, ou mais especificamente a sua ausência em boa parte de seus moradores. “A vitória ou derrota sobre ela (a morte) significou, muitas vezes, a diferença entre viver e morrer”, diz o autor.

Naquele período, os profissionais de saúde, médicos, cirurgião, boticário, barbeiro/sangrador, enfermeiro e parteira, listados pela ordem de importância na pirâmide social, assim como os medicamentos, estavam mais caracterizados pela ausência, do que pelo contrário, o que ajudava a reforçar o papel desempenhado pelos curadores e magos. “Assim, medicina oficial e popular, práticas mágicas e feitiçarias caminharam mais do que lado a lado nesse universo colonial; foram partes da tentativa de oferecer respostas às mazelas ora identificadas como o corpo, ora com a alma. A própria Igreja Católica promoveu essa integração”, revela Sá. Esta instituição recomendava “aos médicos, cirurgiões e ainda barbeiros que curam os enfermos nas freguesias onde não há médicos”, que ao visitar algum enfermo tratassem “primeiro da medicina da alma”.
Publicado em 14/7/2009.
Fio da História

FIOCRUZ

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