OS DEFEITOS DE MACUNAIMA
Publicado na Folha da Manhã, terça-feira, 4 de maio de 1937
Neste texto foi mantida a grafia original
Rubem Braga
"Macunaima", appareceu em 2ª edição, o que aliás não quer dizer que esteja ganhando publico. Mario de Andrade continua sendo um literario muito pouco lido, apesar de seu valor. E a culpa é delle. Mario pegou um geito de escrever que seria popular si não fosse precioso. Elle faz parte de um pequeno clube fechado de gastronomos que ha em São Paulo. E faz gastronomia na linguagem tambem —o paladar do povo é simples. Si Mario de Andrade fosse preparar um vatapá, elle faria um vatapá tão bem feito, tão em regra, tão profundamente bahiano, seguindo tantas recommendações de regras especialistas, que nenhum bahiano gostaria do vatapá delle. Foi para a extrema esquerda da língua. Reagindo contra a aristocracia do phraseado solenne e a hierarchia difficil dos pronomes, elle cahiu no populismo mais difficil e precioso. Em "Macunaima" isso se explica, isso faz parte do livro. A linguagem, ahi, está combinando com a acção, com o espirito do livro. Está direito. Apesar disso eu estimaria que alguem fizesse um livro com todo esse material precioso de "Macunaima", todo esse mundo de lendas e de falas brasileiras, de um geito que fosse accessivel ao leitor commum. Um livro onde um brasileiro se embrasileirasse mais, se reconhecesse e se apprendesse. Pelo facto de ser um livro differente dos outros, muitos exageram o valor de "Macunaima". Impressionados pela montanha de suggestões e de "achados" do livro, começam a dizer que elle será uma obra classica. Esquecem que na verdade é um bloco de onde poderia sahir um verdadeiro livro, é uma façanha, uma proeza grande e bonita de inteligencia, e nada mais. Eu digo "e nada mais" porque isso para um sujeito com as possibilidades de Mario de Andrade, é mesmo muito pouco. Para usar a linguagem do seu heróe elle "experimentou força". Prova que tinha muita. E quasi que ficou nisso. Mas deixemos o autor e vamos ao heróe, que não tem nenhum caracter. Na verdade tem algum. Tem, por exemplo, uma sympathia continua. É medroso, preguiçoso, mentiroso e sem vergonha, mas não é mau sujeito. O que elle quer é gosar, como aquelle macado da anedota. Eu gostaria que elle fosse um pouco mais consistente, pois em certos pedaços do livro sinto que o heróe anda no vacuo. Mas depois reage porque já ganhou uma figura propria, já tem o seu caracter e se impõe ao autor. O que prejudica uma certa continuidade do heróe é ter o autor mettido no livro, que deve ter sido feito às pressas, umas coisas que são interessantes em si, mas que ficam deslocadas. O heróe tem de viver essas coisas, e vive a contragosto. Sente-se que elle "não está em casa". Ha, na realidade, material que poderia ser jogado fóra com proveito, porque destôa do resto. Sente-se a pressa do trabalho. O autor, em certos momentos, foi impressionado pelos processos de acção do heróe, esquecendo, que, quanto mais absurdos forem os personagens e mais louca fôr a acção, mais prudente o logico deve se manter o autor encarregado de contar aquella desordem. Acho que o proprio Mario deve sentir hoje esses defeitos de "Macunaima" que, por outro lado, elle não póde corrigir, porque não ha nada que seja um facto mais consummado que um livro que a gente já escreveu.
Folha de São Paulo
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