quinta-feira, 25 de março de 2010

AFRICANOS NO BRASIL


AFRICANOS NO BRASIL

Publicado na Folha da Manhã, quarta-feira, 02 de agosto de 1950

Sérgio Buarque de Holanda

Depois dos estudos sucessivos de um Calogeras, de um Simonsen, de um Taunay, entre poucos mais, sobre os numeros de trafico africano para o Brasil, pareciamos ter alcançado o extremo limite de precisão possível em domínio tão naturalmente vago. O milagre do sr. Mauricio Goulart, em seu livro recente sobre a Escravidão Africana no Brasil - Das Origens à Extinção do Trafico (São Paulo, Livraria Martins Editora, S. A., s.d.), está em ter conseguido introduzir neste assunto algumas precisões importantes e mal suspeitadas. E tambem em ter podido construir um livro dos mais ricos e estimulantes que se podiam desejar, a proposito de controversia tão arida e, à primeira vista, tão futil.
Em realidade, essa controversia representa o motivo central do livro do sr. Goulart, e está presente, praticamente, em todas as suas paginas. Mas pretender reduzir a ela a contribuição que nos oferece para o conhecimento da historia da escravidão no Brasil seria diminuir injustamente o significado dessa contribuição. Através de seu minucioso esforço para reduzir a termos plausiveis tudo quanto se tem dito sobre o assunto, apresentam-se novos aspectos, novas formulações do problema, que de hoje em diante deverão ser considerados pelos historiadores.
De qualquer modo, para abordar devidamente o estudo do sr. Mauricio Goulart é inevitavel partir e, um pouco, participar daquela controversia. "Neste assunto, negros," - diz-nos ele (à pg. 98) - "têm sido desprezadas as verdades mais corriqueiras, postas de lado, sumariamente, as conclusões do bom senso". O bom senso manda, por exemplo, que em toda tentativa de fixação do volume do trafico, só se considerem os elementos comprobatorios no seu conjunto e em sua inter-relação. É sobretudo o exame parcial e isolado de tais elementos que conduziu historiadores diversos, e dos mais ilustres, a resultados extremamente divergentes.
Simonsen, por exemplo, fundou-se principalmente no calculo da vida efetiva e da produtividade dos escravos nos engenhos e minas. Calogeras, na taxa negativa de sobrevivencia, aplicada ao total dos negros existentes no país às vesperas da Independencia. O primeiro avalia em três milhões e trezentos mil o numero de escravos importados: o segundo, em dez a doze milhões, na melhor hipotese em oito a nove milhões.
Colocado em face de soluções tão discrepantes, o sr. Goulart inclina-se decididamente para a primeira, a de Simonsen, visto como Calogeras se limitara a um elemento, e elemento que não apresenta correlação com os outros dados do problema. Sua solução - cerca de 3.600.000 negros importados - é semelhante à de Simonsen e rigorosamente coincidente com a de Taunay, na versão final dos seus valiosos "Subsidios para a Historia do Trafico", publicados no tomo X dos Anais do Museu Paulista (o autor serve-se de versão anterior e menos completa, a dos Anais do Terceiro Congresso de Historia Nacional).
Para chegar a tal cifra, ele não deixa fugir nenhum dos numerosos dados da questão, entre eles o numero de escravos necessarios em cada engenho; a produção media anual dos negros, na lavoura do açucar, nas minas, nos cafezais; a porcentagem dos que se aplicariam em outros misteres; a taxa de sobrevivencia; a massa dos que se exportaram da Africa... E é a consideração atenta, bem desenvolvida e documentada, desses elementos, ainda mais do que o motivo central do estudo, que faz, no meu entender, sua admiravel riqueza. Em mais de um caso, pode-se mesmo lamentar que a absorvente presença deste motivo central não deixe o autor fixar-se melhor, mais livremente, naqueles aspectos parciais. Em outras palavras, seria desejavel que os abordasse um pouco menos na medida em que valem como argumento e mais na medida em que possam constituir objeto direto da pesquisa. Pois que a ambição, justificavel em si, de consertar enganos alheios pode conduzir insensivelmente a outro tipo de engano quando se torna empolgante: engano ou exagero correspondente, de algum modo, àquilo que na ciencia linguistica recebeu o nome de ultracorreção.
Quando, por exemplo, no enumerar os calculos quinhentistas, naturalmente imprecisos, sobre os escravos que viveriam então na colonia, é caracteristico de sua prudencia que prefira as cifras mais modestas de um Fernão Cardim e de um Gabriel Soares, às de Anchieta, duas vezes mais altas, ou quase tanto.
Uma das razões propostas, e que me parece má, para a preferencia, está em que a estimativa anchietana contraria os outros dois testemunhos, e que estes, vindos de fontes bem distintas, se harmonizariam bem entre si. A verdade, diga-se de passagem, é que não se harmonizam tanto, pois Gabriel Soares apresenta mais negros para Pernambuco (quatro a cinco mil contra quatro mil), Cardim, mais para a Baía (três a quatro mil contra dois mil). Por outro lado, o total de dez mil, que Anchieta indica para Pernambuco (contra três mil para a Baía), parece condizer melhor com a circunstância de, segundo diferentes depoimentos, existirem mais engenhos na primeira do que na segunda dessas capitanias (66 contra 36, di-lo o proprio Cardim, que faz avultar o numero de negros da Baía). E tambem com o fato das possibilidades de recorrerem os senhores de engenho ao braço indigena serem aparentemente muito menores em Pernambuco, onde Cardim já encontrou bem diminuido o numero de indios em 1583 ("os indios da terra já são poucos", escrevia na "Narrativa Epistolar"), quando no Reconcavo ainda eram fartos e densos seus aldeamentos.
A outra razão sugerida contra o calculo de Anchieta, de que "dez mil negros para os 55 ou 66 engenhos de Pernambuco, seriam negros demais", um "esbanjamento de negros", parece relacionar-se à tendencia, constante no autor, para diminuir a importancia numerica dos que não se empregavam no negocio do açucar. Reiteradas vezes se avaliam aqui em 70% do total os negros que trabalhavam em engenhos de cana (e em 80% , mais tarde, os que se aplicariam na mineração). Ora, considerando que um mínimo de 20 e mesmo de 30% dos pretos desembarcados da Africa seriam "peças femeas", alheias, por conseguinte, àqueles trabalhos, quantos pretos machos ainda ficariam para outros misteres: milicia, serviços domesticos, familiares ou caseiros, todo genero de fabrica e manufatura, sem falar em outras lavras ou lavouras? E sem falar na parte, nada irrelevante, dos que, destinados primeiramente aos engenhos, neles não permaneciam. Dos negros, já dizia em uma das suas cartas, de agosto de 1608, o governador d. Diogo de Menezes, que sendo eles "a maior parte da pobreza dos homens", porque em adquiri-los gastam quanto têm, "quando cuidam que têm cinquenta negros (...) acham-se com menos da metade, porque fogem e metem-se pelos matos, e são tantos os que desta maneira andam, que já fazem aldeias, e andam alevantados e ninguem pode com eles..."
Com razão, opõe-se o autor à cronica de Calogeras, de que das 53.053 peças saidas de Angola para o Brasil, entre 1575 e 1591, conforme o relatorio de Abreu e Brito, todas, ou quase todas, se destinavam ao Brasil. Pondera bem que, nessa epoca, a maior parte iria para as Indias de Castela. Por outro lado, não parece levar na devida conta que o relatorio fala em negros embarcados, e que muitos deles não terão chegado nem à America Espanhola, nem à Peninsula Iberica, nem ao Brasil. Sobre esse ponto, são acordes todos os depoimentos da epoca: um deles ousa dizer que, dadas as más condições de transporte, onde "el mismo olor basta a matar los más", era maravilha que a vigesima parte dos embarcados pudesse chegar ao seu destino. "Não ha quatro meses", exclama, "dois mercadores tiraram para a Nova Espanha, de Cabo Verde, quinhentas em uma nau, e só em uma noite amanheceram mortas cento e vinte..." Esse depoimento está na obra de Tomas del Mercado intitulada Tratos y Contratos de Mercadores, publicada em 1569 e que pode ser consultada em nossa Biblioteca Nacional. O sr. Mauricio Goulart, em outra parte de sua obra (à pg. 275), toma conhecimento de noticias semelhantes, mas desconfiado por principio das cifras muito generosas, associa-as a exageros, liricos ou interessados, de abolicionistas e de traficantes.
Se em determinadas ocasiões, no Quinhentos, sobretudo, a America espanhola recebeu sem duvida mais africanos do que o Brasil, não parece exato que isso tenha ocorrido sempre, como tende a presumi-lo o autor (às pgs. 51, 101,111, 117 etc.). As restrições de carater religioso à introdução de escravos negros, que prevaleceram de inicio em dominios de Castela, e não em terras de Portugal, teriam contribuido, no primeiro caso, para certos escrupulos dos reis catolicos com relação ao seu comercio. E quando esses escrupulos se afrouxaram, não deixariam os soberanos espanhóis de reservar o privilegio do trato a particulares e companhias, que para isso pagavam taxas consideraveis. A proprosito de um dos mais antigos textos conhecidos de acordo para a introdução de negros no Novo Mundo - o acordo de 1542 entre Fernão Cortes e o marquês del Valle, só ultimamente publicado - consta que o intermediario genovês pagava então a soma de sete ducados para cada um dos novecentos africanos que negociasse. E em meados do seculo seguinte, segundo mostra o historiador Clarence Haring, os contratadores deveriam pagar à Coroa de trinta a quarenta ducados por cabeça, alem de uma taxa suplementar de três a trinta reais.
Observa o sr. Mauricio Goulart, para mostrar a maior importancia do trafico com as possessões espanholas, que os assentistas tinham muito mais empenho "em amealhar proveitos com a venda de negros para as Indias de Castela" do que para o Brasil. Mas isto é claro, pois que desfrutavam no primeiro caso de um monopolio exclusivo, que não lhes era dado no segundo, e monopolio que lhes custara avultadas somas. E quanto às constantes queixas dos nossos lavradores sobre a escassez de negros disponiveis, creio que essa escassez deva ser interpretada, não em sentido absoluto, mas apenas em relação com as grandes exigencias da lavoura.
Tudo isso nos leva a hesitar um pouco diante de alguns argumentos usados pelo autor em beneficio da tese defendida. Mas as objeções que seu estudo possa merecer só atingem aspetos parciais do problema e não modificarão sensivelmente os seus resultados. No conjunto, trata-se de contribuição exemplar e já hoje de consulta obrigatoria para quem se disponha a estudar o mesmo problema.

Folha de São Paulo

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