quinta-feira, 25 de março de 2010

PORTUGAL SEM SOTAQUE


PORTUGAL SEM SOTAQUE

Publicado na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 20 de dezembro de 1990

Coimbra guarda relíquias do passado remoto e do presente

FLORESTAN FERNANDES

As relações dos brasileiros com Portugal são atravessadas por emoções e pensamentos complicados. Eu próprio sou brasileiro da primeira geração. Convivi intensamente com a família de meu avós maternos (na maioria vinda de Portugal); estive sujeito às explosões de verdades cruas da minha mãe ("saímos de Portugal tangidos pela fome") e pertenci prolongadamente, com o comandante Sarmento Pimentel, Miguel Urbano Rodrigues e outros bravos companheiros, ao movimento pela anistia dos presos políticos de Portugal e de Espanha. Esse movimento criou laços morais e afetivos profundos, iberizando e aportuguesando ainda mais o meu modo de ser.

Sem detratar a metrópole, interpretei de maneira objetivamente crítica as construções da herança do antigo sistema colonial. Ela nos atou a uma servidão permanente, à dominação externa e ao monopólio da riqueza, da cultura e do poder pelos privilegiados. Entretanto, a revisão sociológica da formação histórica do Brasil não interferiu na condição de "portuguesinho": quando avistei Lisboa e sobrevoei a cidade, em 1965, as lágrimas brotaram e logo jorraram impetuosamente, indo às favas as boas maneiras e o machismo. Ali estava, linda e luminosa, uma jóia da civilização, que arrasou minha ignorada identidade lusitana.

Não existem duas Lisboas no mundo! Mas em Coimbra me envolvi no mesmo alvoroço. A "cidade dos doutores", de um fato inconfundível e uma poesia que exalta o complexo de Electra, possui várias histórias superpostas, apresenta duas fisionomias (com suas partes alta e baixa) e contém muitas relíquias do passado remoto ou do presente. Ela mostra que o fascismo salazarista não respeitou nem a morfologia nem a arquitetura de uma universidade multicentenária. Mas esbarrou na resistência da duração. Essa resistência ainda não foi estudada como tal nem pelos arqueólogos e antropólogos nem pelos historiadores. Contudo, sem levá-la em conta não se explicará nunca porque cada porção de Portugal - os camponeses em sua faina, as pequenas aglomerações aldeãs, um almoço em um restaurante ou uma festa, cidades como Lisboa, Coimbra ou Sintra, mesmo um personagem secundário de ficção, como o Titó, etc. - transmite a totalidade psicocultural por inteiro.

Em Coimbra o antigo, o moderno e o pós-moderno não aparecem no que se preservou, no que se destruiu ou no que se reconstrói passo a passo, na batalha pela continuidade da vida humana. Eles interagem no mesmo espaço histórico e mental. São grandes espetáculos: as galerias romanas; Conimbriga com seu museu, seus monumentos e, em particular, seus preciosos mosaicos; as igrejas, os conventos, os aquedutos, as casas e os bairros em subidas e descidas, o Mondego; os padrões de cortesia; a comida doce e salgada, finíssima, servida com generidade; a bebida rica e variada, que não se toma fora da região com o mesmo prazer; as artesanias. Acima de tudo, contam o sítio urbano e seus arredores, a universidade e o ser humano.

A universidade granjeou fama e se inscreveu também nas tradições de saber dos nossos letrados (até a vinda da Corte). Ela foi e é uma espécie de diamante, engastado em Coimbra. Sob Salazar, essa articulação sofreu um estilhaçamento. Todavia, ela se ilumina internamente, por sua renovação e pelo entrelaçamento que vincula seus institutos e professores com os ritmos do crescimento do saber no exterior (de que é exemplo seu Centro de Estudos Sociais). O pioneirismo gravita, pois, na seiva que corre por dentro ou procede dos vínculos com a revolução da ciência e da tecnologia em nossa era. Isso nos obriga a constar: a Universidade de Coimbra não "teve sua grandeza" e tampouco reflete apenas os lucros amealhados. Como a cidade, recria o seu esplendor.

A dimensão do ser humano resulta de muitas variáveis. Não tive a oportunidade de penetrar no horizonte intelectual dos camponeses e dos moradores pobres da cidade e sua periferia. Conversei com alguns deles. São desempenados, com olhos abertos para a transformação da sociedade portuguesa e suas perspectivas. Preocupam-se com a integração ao Mercado Comum Europeu e com os custos sociais que ela acarreta para os de baixo. Mas não se intimidam: esperam o nascimento de um "novo Portugal". Os camponeses permanecem um mistério. Do palácio em que fui alojado via-os na labuta, mulheres e homens humildes, mal vestidos e sombrios, ou tocando suas carretas na ida e na volta do trabalho cotidiano. Poderiam lembrar meus avós, minha mãe ou meus tios? Não. Seu aspecto não era o de estarem atados à miséria e ao desespero de buscar além-mar outros destinos. Na roda dos professores e dos estudantes fervilha um lusismo universalista do intelectual-semeador, voltado para as suas lides como para os "seus" combates. A "revolução dos cravos" dissolveu-se. O Mercado Comum pavimenta o caminho do capitalismo monopolista, com leves compensações sociais-democratas. Para muitos, no entanto, o socialismo subsiste como aspiração real. Em Coimbra, os focos dessa disputa concentram-se entre os jovens, como escolha em vir a ser. Nela, pulsa, como no passado, o coração de Portugal. Só que, agora, o saber não é fonte de colonização. Volta-se para a autoemancipação coletiva.

Folha de São Paulo

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