domingo, 28 de março de 2010

Roma - AS DUAS CLIENTELAS


AS DUAS CLIENTELAS

Em suma, a classe governante procura recrutar menos governantes capazes que indivíduos que lhe mostrem num espelho o conjunto das qualidades privadas que ela aprecia em si mesma: opulência, educação, autoridade natural. Prefere julgar tais qualidades com os olhos, pois não saberia defini-las com critérios regulamentares; por isso a cooptação continua sendo o princípio que tacitamente domina o ingresso nessa classe e as promoções em dignidade. Só que não é a classe em bloco que procede à escolha dos eleitos: cada um de seus membros tem sua fileira de protegidos, que recomenda aos confrades, mediante a troca do mesmo bom procedimento; o próprio imperador nomeia para altos cargos de acordo com tais recomendações. O sistema assegura a cada personagem importante o prazer de reinar sobre um rebanho de postulantes. Clientela, portanto; mas tomemos cuidado com esse termo vago e enganoso. Há duas espécies de clientela: ora é o cliente que precisa de um patrono; ora é o patrono que corre atrás do cliente para sua própria glória. No primeiro caso, o patrono realmente exerce poder; no segundo, disputa com seus pares os clientes, que são os verdadeiros senhores. É então o patrono que precisa do cliente.
Nem toda clientela, infelizmente, era da mesma espécie. "Em Ístria", conta Tácito, "a casa dos Crassus sempre tinha clientes, terras e um nome sempre popular." Nos campos reinava por toda parte um patronato comparável ao caciquismo sul-americano; por toda parte os grandes proprietários tiranizavam e protegiam os camponeses dos arredores; aldeias inteiras entregavam-se a um desses protetores, para ao menos estar ao abrigo de outras. Às vezes o patronato constituía mais uma aposta sobre o futuro que um efeito do estado de coisas; durante uma guerra civil, conta o mesmo Tácito, a cidade de Fréjus uniu-se ao bom partido para seguir um de seus filhos, que se tornou personagem importante; assim agiu "por zelo de compatriotas e na esperança de que um dia ele fosse poderoso".
A bem da verdade, "clientela" e "patronato" são palavras que os romanos usam a torto e a direito; com elas pensam as mais diferentes relações. Uma nação protegida será "cliente" de um Estado poderoso, um acusado será defendido na justiça [pág. 100]
pelo patrono, a menos que inversamente não reconheça como patrono o homem que se dispõe a defendê-lo. Não há nada mais falacioso que os estudos de vocabulário. Ora se protege porque se domina de outro modo; ora se é escolhido como patrono a fim de proteger. O segundo caso é o do patronato das carreiras: o jovem ambicioso que procura uma promoção não pertence à classe dos pobres coitados que sofrem a influência de algum vizinho poderoso, amam-no, servem-no e recorrem a seu apoio. Esse jovem se pergunta que patrono deve escolher: um compratiotas?, um velho amigo bem posicionado?, o homem que protegeu os primeiros passos de seu pai na carreira? O protetor assim eleito o recomendará pela única razão de que o jovem, ainda na véspera talvez um desconhecido, se confiou a ele, sabendo que, se não aceitar essa fidelidade que lhe é oferecida, outro a receberá. Os romanos costumavam transformar uma relação geral em relações individuais ritualizadas; a geração ascendente dividia-se em mil clientelas e todas as manhãs ia saudar os patronos.
Em troca de sua proteção o patrono ganhava o prazer de não ter menos protegidos que seus pares. A circulação das elites políticas se processava através de canais de conhecimento pessoal que criavam deveres de homenagens verbais e pecados de ingratidão. Os patronos tinham a ilusão de construir por pura amizade a carreira de jovens respeitosos; tinham prazer em aconselhá-los (Cícero assume com o jovem Trebácio um tom condescendente que não se permite com seus outros correspondentes); escreviam numerosas cartas de recomendação a seus pares. Transformadas quase em gênero literário, tais cartas em geral são vazias: basta informar o nome do protegido; cada patrono confia em seus pares e troca com eles sua parte de influência, sem dúvida à custa de uma censura preliminar que cada um exercia sobre si mesmo: sob pena de perder todo crédito, devia-se recomendar apenas os postulantes que a opinião da classe governante podia aceitar. Ora, o crédito faz tudo: quem tem muitos protegidos e postos para distribuir recebe todas as manhãs a saudação de uma pequena multidão. Em contrapartida, quem renuncia a qualquer papel público será abandonado por todos, "não terá mais séquito, nem escolta ao redor de sua liteira, nem visitantes em sua antecâmara". Uma clara divisão entre a vida pública e a vida privada não decorria nem da lei nem do costume; só a prudência podia decidir. "Deixa, pois, teus clientes e vem jantar tranquilamente em minha casa", diz a um amigo o sábio Horácio.

História da vida privada, 1: do Império Romano ao ano mil / organização Paul Veyne ; tradução Hildegard Feist; consultoria editorial Jonatas Batista Neto. — São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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