sábado, 31 de outubro de 2009

Jesuítas e medicina no Brasil colonial


Jesuítas e medicina no Brasil colonial

Daniela Buono Calainho
Professora Adjunta do Departamento de Ciências Humanas da UERJ-FFP. E-mail: calainho@globo.com



RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar a ação dos jesuítas na área da saúde no Brasil colonial. Os inacianos incorporaram esta tarefa aos árduos ideais missionários e educacionais, mantendo em seus colégios boticas e enfermarias e atuando informalmente como físicos, sangradores e até cirurgiões. A escassez de médicos, pelo menos até o século XVIII, o alto preço das drogas e dos remédios oriundos de Portugal e do Oriente e a sua freqüente deterioração nos navios e nos portos obrigaram-nos a se voltarem para os recursos naturais oferecidos pela terra e para os saberes curativos dos indígenas.

Palavras-chave: Jesuítas- Catequese- Medicina


Formada em 1540, por iniciativa de Inácio de Loyola, a Companhia de Jesus se configurou como uma ordem-modelo de um novo momento da cristandade na Europa. O início dos chamados Tempos Modernos foi de grande renovação espiritual, caracterizado por uma ofensiva da Igreja romana em deter o avanço protestante através da reafirmação de seus dogmas e sacramentos, da hierarquia eclesiástica, da disciplina do clero e do combate a resquícios de paganismo, superstições e comportamentos sexuais vistos como desviantes. Desenhava-se, assim, um amplo projeto de cristianização das massas, de reordenação social e moral, ancorado nos valores legitimamente cristãos, e a Companhia de Jesus surgia neste contexto1.

Estabelecidos em Portugal, coube aos jesuítas a tarefa missionária e educacional em seus domínios ultramarinos, e sua ação na área da saúde integrou estes ideais, onde quer que se tenham fixado2, atuando no tratamento de doenças e epidemias, fundando hospitais, estudando as plantas curativas da região e mantendo eficientes boticas e enfermarias em seus colégios na Europa, na África, no Oriente e no Brasil3.

Os grandes desafios que se impuseram aos portugueses recém-chegados à então Terra de Santa Cruz foram muitos, como a implantação de uma estrutura administrativa, a progressiva ocupação territorial, o assentamento dos colonos, a organização dos primeiros engenhos açucareiros e o enfrentamento de uma geografia, uma flora e uma fauna desconhecidas. Os jesuítas integraram-se ao esforço da travessia atlântica em direção às novas terras americanas. O primeiro Governador-Geral do Brasil, Tomé de Souza, trouxe consigo, em 1549, alguns inacianos, liderados por Manuel da Nóbrega, primeiro Provincial em terras coloniais. Verdadeiro estrategista da catequese, empenhou-se na organização dos aldeamentos para a conversão dos indígenas e na fundação, em 1553, do primeiro estabelecimento de ensino, o Colégio da Bahia, marcando, assim, os ideais que iriam desenvolver no Brasil: a atividade missionária e educacional. A incorporação espiritual do novo território foi missão fundamental a que se dispuseram os jesuítas, viabilizada pelo projeto catequético, expressão de uma vocação universal que caracterizou esta nova cristandade, a partir do século XV, com a expansão do missionarismo4.

Desbravadores da natureza indômita do Brasil quinhentista, os soldados da Companhia de Jesus enfrentaram duros desafios e árduas condições de subsistência: um clima instável, exércitos de insetos, animais selvagens, peçonhentos e mortíferos, como escorpiões, aranhas e cobras e ainda violentos ataques de grupos de nativos agressivos. Ao lado de um discurso edenizador acerca da natureza colonial, inspiradora de tantos encantamentos, descritos pelas penas de cronistas e viajantes, que louvaram à farta sua opulência e riquezas5, os terrores de se viver no Trópico foram também constantemente lembrados. Mas a grandiosidade do projeto missionário de conversão do gentio superaria as inúmeras dificuldades com que se depararam estes clérigos. A força destes ideais foi expressa por ninguém menos do que o Pe. Antônio Vieira, quando afirmara que "o português tem obrigação de ser católico e de ser apostólico. Os outros cristãos têm obrigação de crer a fé; o português tem a obrigação de a crer e mais, de a propagar"6.

Além de trabalharem incansavelmente na difusão da fé cristã, os jesuítas também foram uma grande âncora da saúde na colônia, atestada pela vastíssima documentação das correspondências que mantiveram com seus irmãos em Portugal e no Brasil. Alguns deles vinham de Portugal já formados nas artes médicas, mas a maioria acabou por atuar informalmente como físicos, sangradores e até cirurgiões, aprendendo, na prática, o ofício na colônia, como José de Anchieta, João Gonçalves ou Gregório Serrão. Outros, em meio a obras e cartas, onde comentavam sobre a natureza colonial, dedicaram várias páginas à descrição de ervas e plantas curativas, inaugurando os primeiros escritos sobre a farmacopéia brasileira7. Fernão Cardim, por exemplo, descreveu as propriedades curativas de várias espécies de plantas e árvores em seu livro Tratados da terra e gente do Brasil, escrito entre 1583 e 1601, quando desempenhou o cargo de secretário do padre visitador Cristóvão de Gouveia8.

A escassez de médicos leigos, formados por escolas de medicina na Europa, pelo menos até o século XVIII, fez dos jesuítas os responsáveis quase que exclusivos pela assistência médica no primeiro século de colonização do Brasil9. Ao longo do tempo, foram aperfeiçoando seus conhecimentos mediante contatos com os profissionais leigos residentes na colônia, e ainda pela leitura de importantes obras de medicina, encontradas em muitas das bibliotecas de seus colégios. O do Maranhão, por exemplo, entre seus cerca de 5 mil volumes, vários tomos eram dedicados às artes médicas. Além das obras que vinham de Portugal, muitas foram adquiridas por compra ou doações10.



Boticas e medicamentos

As boticas dos colégios jesuítas foram inigualáveis, em qualquer parte onde estivessem. A do Colégio do Pará, segundo inventário datado de 1760, além de 20 tomos de medicina, continha recipientes diversos, estantes com mais de 400 remédios, fornalhas, alambiques, almofarizes de mármore, ferro e marfim, armários, frascos e potes de várias cores e tamanhos, balanças, pesos, medidas, tachos de cobre, de barro, bacias, prensas, tenazes, enfim, todo um aparato técnico para a confecção dos medicamentos. E com tudo isto era tida como uma botica modesta, comparativamente às existentes nos Colégios da Bahia e do Rio de Janeiro11. Constituídas em geral por uma sala e uma oficina, tinham ainda uma espécie de loja, onde disponibilizavam seus produtos gratuitamente ao público, salvo para os que tinham melhores condições financeiras e os podiam comprar. Os recursos oriundos destas vendas eram reinvestidos na própria botica e na aquisição de novos medicamentos e livros12. Em muitas cidades e vilas, eram as únicas disponíveis e, nas regiões onde existiam outras farmácias, proviam-nas, como foi o caso da botica do Colégio do Rio de Janeiro, que, em 1706, era dirigida por um Irmão, com grandes conhecimentos e estudos, e autor de inúmeras receitas13. Os inacianos possuíam também embarcações que transportavam remédios ao longo da costa, como foi, por exemplo, o caso do Colégio do Maranhão, que, através de sua "Botica do Mar", abastecia o litoral em direção ao norte, até o Pará14.

Os medicamentos que supriam suas boticas vinham do Reino, mas a pouca freqüência de chegada dos navios, as eventuais perdas por deterioração nas embarcações e nos portos e os altos preços obrigaram-nos, ao longo do tempo, a se voltarem para os recursos naturais oferecidos pela nova terra, ajudados pelos conhecimentos dos indígenas na decifração desta natureza estranha. Os jesuítas foram exímios observadores da fauna e da flora brasileira, identificando variadas espécies e cultivando as de efeitos curativos. Estudavam seu modo de ação para os inúmeros males que acometeram a população colonial, elaborando fórmulas e receitas, organizadas metodicamente com o nome do Colégio onde foram criadas, do autor, dos ingredientes utilizados, o peso e a finalidade15.

Levaram para a Europa o conhecimento das virtudes terapêuticas de raízes, caules, folhas, cascas, sumos, polens, minerais e óleos, a exemplo da quina, planta da região da Amazônia, que curava a malária e era conhecida como "mezinha dos padres da Companhia de Jesus"16. A quina chegou a Roma em 1649, levada pelas mãos de um Irmão, e, depois, difundiu-se rapidamente pelo continente; também era chamada de água febrífuga, cuja fórmula básica foi feita no Colégio de Santo Antão, em Lisboa17. De igual modo, a ipecacuanha, erva excelente para problemas respiratórios, teve suas virtudes divulgadas na Europa em 1625, através de um manuscrito de autoria do Pe. Fernão Cardim, onde estavam arroladas várias receitas do Irmão Manuel Tristão, enfermeiro do Colégio da Bahia18. O Pe. Manoel da Nóbrega, por exemplo, remeteu a Portugal algumas conservas de efeito terapêutico, como suco de ananás verde, para "pedras e areias na urina", recomendando que viessem ao Brasil os que deste mal sofressem. E, sobre o tabaco, escreveu que "nesta terra do Brasil todas as comidas são difíceis de desgastar, mas Deus remediou isto com uma erva cujo fumo muito ajuda a digestão e outros males corporais e a purgar a fleuma do estômago"19.

Das fórmulas medicinais dos inacianos, com uso privativo em suas farmácias, citemos uma compilação, datada de 1766, e de autor até então desconhecido, intitulada Coleção de várias receitas e segredos particulares das principais boticas da nossa companhia de Portugal, da Índia, de Macau e do Brasil, compostas e experimentadas pelos melhores médicos e boticários mais célebres que têm havido nessas partes. Aumentada com alguns índices e notícias muito curiosas e necessárias para a boa direção e acerto contra as enfermidades. Este extenso receituário, de mais de duzentos títulos, organizado em ordem alfabética, trazia em cada fórmula o nome do colégio onde foi preparada, a dose dos ingredientes, a indicação e o modo de administrá-la. Dos Colégios no Brasil, por exemplo, constavam trinta e oito receitas da Bahia20, sete do Recife e duas do Rio de Janeiro, a partir das quais é possível levantar alguns dos problemas que assolavam a população colonial: doenças de pele; males venéreos, como a sífilis; verminoses variadas; problemas oculares; anemia; febres; chagas; tumores; dores de cabeça; paralisias; cólicas; males do estômago, do coração e dos ossos; mordidas de cobra; insônias, sem contar, é claro, as enfermidades epidêmicas, como varíola e outras21. Destacou-se desta Coleção de receitas a célebre Triaga Brasílica, composta de dezenas de ervas, plantas, raízes, gomas, sais minerais e óleos, para cura de envenenamentos, ocasionados tanto por ervas e plantas como por animais, além de outras tantas enfermidades: quaisquer dores internas, verminoses intestinais, febres, doenças epidêmicas, doenças "de mulheres", etc. De largo consumo no Brasil e na Europa, vendida a preços altos, foi elaborada no Colégio da Bahia e gerou recursos consideráveis para a instituição22.

As boticas dos outros colégios jesuítas também integraram esta Coleção, a exemplo dos Colégios de Lisboa, Évora, Macau e Goa23. Além das suas próprias, os jesuítas incluíram ainda as elaboradas por médicos afamados, como Curvo Semedo, Jacob de Castro Sarmento, Luis Gomes Ferreira, João Cardoso de Miranda e outros24.

Foram obra dos jesuítas a fundação e a reforma de algumas instituições de saúde no Brasil. Em março de 1582, a armada do almirante espanhol Diogo Flores Baldez, que rumava para o Estreito de Magalhães, aportava no Rio de Janeiro com uma tripulação doentíssima: escorbuto, febres, beribéri, dentre outras, fazendo o Pe. Anchieta mobilizar-se para tratar dos enfermos num barracão toscamente construído na orla do Morro do Castelo. Embora já existisse, desde os inícios da história da cidade, a Santa Casa da Misericórdia foi ampliada e reformada a partir deste episódio25. Já a Santa Casa de São Luís do Maranhão foi criada na última metade do século XVII, considerada pelo Pe. Antônio Vieira como fundamental, tendo que funcionar "perto da casa dos Missionários, aonde se curem todos os enfermos da Aldeia com toda a caridade a quem não tem suas casas por extrema miséria, e pouca caridade dos seus, a qual os nossos procurarão suprir"26.



Desafios

A nova colônia americana assistiu à chegada impiedosa de inúmeras moléstias trazidas pelos portugueses e, ainda, pelos escravos vindos de África, precariamente atochados nos tumbeiros desde finais do século XVI. Assolada por surtos epidêmicos de doenças como malária, sarampo, febre amarela, disenteria e varíola, contou com a enorme habilidade dos jesuítas na observação dos sintomas, na evolução destas moléstias e na aplicação da terapêutica possível. Todos os aldeamentos indígenas na colônia foram alvo da ação jesuítica na área da medicina e da saúde. Em 1574, o Provincial Inácio de Tolosa determinou que em todas as aldeias fossem criadas enfermarias e casas isoladas, que funcionassem como hospital27. O trabalho era intenso: além das epidemias e outras doenças, cuidavam também de índios feridos pelas guerras, de parturientes, drenavam pântanos para melhorarem as condições dos aldeamentos e reforçavam a alimentação dos doentes.

Exemplo notável foi a passagem do Pe. José de Anchieta pelo Brasil, cuja correspondência deixou relatos impressionantes. Tendo como estímulo e exemplo o Pe. Francisco Xavier e sua atuação no Oriente, chegou à Bahia em 1553, aos 20 anos, com o segundo Governador-Geral do Brasil, Duarte da Costa, e neste mesmo ano ajudou na fundação da vila de Piratininga, criando um colégio de nome "São Paulo", em homenagem ao apóstolo. Escrevendo ao próprio Inácio de Loyola, narrou as primeiras dificuldades desta empreitada: "E aqui estamos às vezes mais de 20 dos nossos numa barraquinha de caniço e barro, coberta de palha (...). Isto é a escola, a enfermaria, o dormitório, refeitório, cozinha, dispensa"28. Anchieta aprendeu tupi, escreveu uma gramática, autos teatrais e criou uma "língua geral", no intuito de facilitar a catequese29. Escreveu, em 1554, a alguns irmãos enfermos de Coimbra, que, em Piratininga, servia de médico e barbeiro, curando e sangrando muitos índios "dos quais viveram alguns de que se não esperava vida, por serem mortos muitos daquelas enfermidades"30. Narrou em suas cartas o quão fundamentais eram os jesuítas para os gentios, não só no socorro "com as medicinas", mas também no fornecimento de alimentos, no quadro de escassez que grassava na colônia neste momento. E mesmo para os portugueses, que "parecem que não sabem viver sem nós outros, assim em suas enfermidades próprias, como de seus escravos". Nos soldados da Companhia de Jesus, bradava Anchieta, tinham "médicos, boticários e enfermeiros; nossa casa é a botica de todos, poucos momentos está quieta a campainha da portaria, uns indo, outros vindo, a pedir diversas coisas"31.

Descreveu com detalhes dezenas de animais, a exemplo das diversas espécies de cobras venenosas: sua aparência, como atacam, onde se escondem, de que modo o veneno atua e ainda o tempo de sobrevivência das vítimas. Uma delas era chamada de boicininga, que significa "cobra que tine", "paralizando com seu veneno a vista, o ouvido, o andar e todas as ações do corpo (...), até que no fim de vinte e quatro horas se expira". Em meio a esta multidão de répteis, porém, desabafou que "só o Senhor nos conserva incólumes, e confiamos mais nele do que em contra-veneno ou poder algum humano; só descansamos em Jesus, Senhor nosso, que é o único que pode fazer com que nenhum mal soframos, andando assim por cima de serpentes"32.

Um dos grandes desafios enfrentados pelos jesuítas na prática de suas artes médicas foram as epidemias de varíola que devastaram a população ameríndia33. Tendo atravessado os mares, trazida pelos colonizadores, iniciou seu flagelo no Brasil em 1559, na costa, para depois se alastrar para o norte. No Espírito Santo, por exemplo, dizimou, neste ano, cerca de seiscentos escravos indígenas, e chegou ao auge em 1662, quando faleceram mais de 30 mil dos que estavam submetidos aos portugueses no litoral. Também foram incontáveis os que pereceram no sertão, fugidos das terríveis condições das regiões litorâneas, à medida que a epidemia se alastrava. Nas aldeias jesuíticas, as perdas foram de um terço e, nos engenhos, a mortalidade foi igualmente devastadora34. O padre Leonardo do Vale, numa cruzada inglória contra a doença, acudiu a muitos, narrando as mazelas vividas dramaticamente pelas comunidades ameríndias35. A observação arguta deste cotidiano devastador fê-los perceber variações da doença: algumas brandas, de tratamento mais fácil, outras mais virulentas e mortíferas36.

Anchieta tratou-os com sangrias e com extirpação das partes do corpo já "corrompidas" pela doença, procedimentos, por sinal, considerados como os mais eficazes pelo médico Simão Pinheiro Mourão, quando, em 1694, escreveu o Tratado único das bexigas e sarampo, na época o trabalho mais completo e original sobre o assunto. A chamada água cordial bezoártica contra bexigas e sarampo, cuja fórmula era de autoria do famoso Curvo Semedo, também foi recurso utilizado no tratamento da varíola, constando das boticas jesuíticas e citada na Coleção de várias receitas, como esta: flores de papoulas vermelhas, esquibas (excremento) recentes de cavalo, bezoártico do Curvo, arrobe de bagas de sabugo e água comum. É interessante observar que os jesuítas, como já foi dito, faziam uso de terapêuticas diversas, fundamentados em tratados médicos importantes37.

Também implacável foi a epidemia de sarampo, que, em 1563, agravou a crise demográfica indígena, afetando a economia colonial, nestes tempos dependente da mão-de-obra escravizada nos engenhos açucareiros e da produção de gêneros alimentícios nativos38.



Medicina indígena, pajés demônios

Os olhos dos jesuítas estavam diante de uma sociedade extremamente diferente, cujos costumes, crenças e ritos por vezes os assombraram, exigindo persistência e determinação ao lidar com o canibalismo, com a poligamia, com o incesto, com suas crenças e com a organização, para eles caótica, do modo de vida do indígena. O Novo Mundo povoava-se de ameríndios tidos como bárbaros, ferozes, quase animais, intensificando-se os propósitos jesuíticos de resgatá-los desta espúria condição39. Nóbrega, indignado, via-os como "cães em se comerem e matarem, e são porcos nos vícios e na maneira de se tratarem", "gente de condição mais de feras bravas que de gente racional"40. Para Anchieta, inclusive, a própria integração e convivência tranqüila do indígena com a natureza colonial, para ele avassaladora, perigosa e misteriosa, era claro indício de animalidade41.

À percepção brutalizada e animalesca dos indígenas, associou-se a visão demoníaca, freqüentemente referida nas considerações dos inacianos ao lidar com este outro mundo. Sua habitação era a própria visão do Inferno, como narrou Fernão Cardim, diante de tal ajuntamento de índios: "E como a gente é muita, costuma ter fogo de dia e noite, verão e inverno, porque o fogo é a sua roupa e eles são mui coitados sem fogo. Parece a casa um inferno ou labirinto, uns cantam outros choram, outros comem, outros fazem farinhas e vinhos, etc. e toda casa arde em fogos"42. A incompreensão daquele espaço, gigantesco, cuja entrada eram "buracos", superpovoado, sem distinções de nenhuma espécie, sem ordem, sem hierarquias, sem divisões de tarefas aparentes, sem normas familiares, causou enorme espanto e a certeza de que os aldeamentos, estes sim, território cristão, corrigiriam estas distorções43. A ausência de leis, o desconhecimento total de regras, levando-os à exposição de seu corpo nu e à ingestão de outros, eram os responsáveis pelo sentimento de repúdio ao ameríndio44.

Outro exemplo do quão intenso foi o olhar demonológico dos jesuítas e de muitos cronistas leigos e eclesiásticos sobre o Brasil está na percepção das práticas mágico-religiosas dos gentios, cujos principais protagonistas eram os pajés, agentes do espaço do sagrado, mas também agentes satânicos. A possibilidade de compreensão daqueles fenômenos estava na associação com os rituais sabáticos da feitiçaria européia, assimilando estes cronistas o que viam através de seus códigos culturais45. Assim, a empreitada hercúlea da catequese esbarrou ainda na ação nefasta do xamanismo tupi, destacando-se, no conjunto destes ritos, variados procedimentos curativos, vistos pelos inacianos como ilegítimos e demonizados. Este conflito se deu tanto no plano espiritual, como nas artes terapêuticas, pois os pajés eram considerados feiticeiros e embusteiros46. Citemos Nóbrega novamente, quando, em 1549, na Informação da terra do Brasil, descreve um ritual das chamadas "santidades" ameríndias47:

Acabando de falar ao feiticeiro, começam a tremer, principalmente as mulheres, com grandes tremores em seu corpo, que parecem demoninhadas (como de certo o são), deitando-se em terra, e escumando pelas bocas, e nisto lhes persuade o feiticeiro que então lhes entra a santidade; e a quem isto não faz tem-lho a mal. Depois lhe oferecem muitas coisas e em as enfermidades dos gentios usam também estes feiticeiros de muitos enganos e feitiçarias48.

Detentores do saber nas comunidades indígenas, o pajé era alvo importante do projeto missionário. Era preciso desmascará-lo, mostrá-lo nos seus embustes e falsidades, apresentá-lo como instrumento demoníaco e também convertê-lo, abrindo espaço para o verdadeiro e único saber, que era do Deus cristão49. Suas práticas curativas foram duramente detratadas pelo próprio Anchieta:

Já não ousas agora servir-te de teus artifícios, perverso feiticeiro, entre povos que seguem a doutrina de Cristo: já não podes com mãos mentirosas esfregar membros doentes, nem com lábios imundos chupar as partes do corpo que os frios terríveis enregelaram, nem as vísceras que ardem de febre, nem as lentas podragas nem os baços inchados. Já não enganarás com tuas artes os pobres enfermos que muito creram, coitados! Nas mentiras do Inferno50.



Cura e catequese

Os inacianos viam-se como médicos espirituais e corporais, expressando, assim, uma inequívoca correlação entre a cura dos corpos e a perspectiva da conversão à fé cristã51. O discurso jesuítico, presente nas várias correspondências, vai mostrar que o último suspiro de muitos foi precedido de batismos, como narrou Anchieta sobre o caso de uma índia, que, já sem esperanças de sobrevivência, pediu o sacramento e rapidamente recuperou a saúde. Anchieta dizia ainda que o batismo "apagava a malignidade das doenças", causando verdadeiros milagres de cura52.

Em uma de suas cartas, escrita em 1554, contou que um índio fora gravemente ferido no braço. O sangue escorria-lhe das veias sem parar, não havendo meio de estancá-lo e "depois de breve expiração de seus pecados recebeu o santíssimo corpo de Cristo, e repentinamente o moribundo reviveu"53. A intenção era mostrar a recompensa da cura pela conversão ao cristianismo, como afirmou em outra carta, de 1556, explicitando claramente esta correlação: "fazemos isto na intenção de preparar o recebimento do batismo (...), por igual motivo é que desejamos assistir as parturientes a fim de batizar mãe e filho. Assim acontece atender-se a salvação do corpo e da alma"54.

De importância fundamental para a catequese, o batismo era o signo por excelência de um novo e verdadeiro nascimento, que não é físico, mas espiritual. Signo da aceitação da conversão e de sucesso, para os missionários, de seu papel de evangelizadores55. Nas cartas jesuíticas datadas dos anos difíceis em que a varíola devastou parte da população indígena, para além do trabalho insano de percorrer léguas e léguas acudindo os doentes, a angústia dos padres voltava-se para o grande número dos que faleciam sem os sacramentos.

A associação entre vida, saúde, conversão e salvação pressupunha o oposto: a recusa da fé cristã poderia levar à morte. Escrevendo em 1560, de Piratininga, ao Provincial Geral da Companhia, contou Anchieta que, chegando a uma aldeia para acudir a um índio gravemente enfermo, "para lhe dar algum remédio, principalmente para sua alma" (grifos meus), persuadiu-o a que aceitasse o batismo e abandonasse seus "costumes passados". Rebelde, indignado, negou veementemente a oferta por várias vezes, até que, já bem agravado seu estado, "e permanecendo na mesma obstinação, no outro dia, morreu"56.

A cura trazida pelo jesuíta, intermediada pelo batismo, era a legítima, proporcionada, em última instância, pelo Deus cristão57. A efervescência dos costumes ameríndios, no discurso dos padres da Companhia, poderia ser punida com o castigo divino, por doenças e morte, "porque os que se apartaram de nós outros não fazem senão morrer aqui e acolá, por suas malditas habitações, sem confissão, uns amancebados; outros levados e comidos por seus contrários"58.

Em síntese, a vastíssima documentação jesuítica descreveu lendas indígenas, línguas, tipo físico dos nativos, seus costumes e modo de vida, religião, embates entre tribos. Ao longo do tempo e dos caminhos que trilharam para o estabelecimento e a consolidação da Companhia de Jesus no Brasil, fundando colégios e seminários, e tentando cumprir com o máximo êxito sua missão evangelizadora e educacional, perceberam o Brasil com os olhos de naturalistas, botânicos, zoólogos, geólogos, etnógrafos, médicos, sangradores, cirurgiões. Os padres da Companhia de Jesus cumpriram com precisão seu modelo de atuação, constituindo-se um de seus princípios básicos a capacidade de serem "polivalentes", realizando um pouco de tudo para o bem correr de sua divina missão59.

Para além do que vinha da farmacopéia européia e oriental, a natureza brutalizada e violenta do mundo colonial ofereceu aos inacianos ervas, raízes, enfim, os remédios para as curas, auxiliados pelos conhecimentos dos nativos, graças a quem os jesuítas adensaram suas fórmulas e práticas curativas. No entanto, foram estas mesmas práticas que serviram de apoio ao projeto catequético inaciano, projeto aculturador, que, em nome da fé cristã, marcou presença decisiva no mundo colonial.
Notas
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-77042005000200005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Revista Tempo - UFF

A arte de sangrar na Lisboa do Antigo Regime


A arte de sangrar na Lisboa do Antigo Regime

Georgina Silva dos Santos
Professora Adjunta do Departamento de História da UFF. E-mail: georginasantos@uol.com.br


RESUMO

A sangria teve papel preponderante no repertório das práticas curativas utilizadas em Portugal, na Época Moderna. Este artigo analisa as matrizes do pensamento médico que autorizaram sua adoção em larga escala e demonstra, a partir do estudo circunstanciado da cidade de Lisboa, entre os séculos XVI e XVIII, a técnica e o perfil profissional dos barbeiros sangradores, responsáveis pela execução da flebotomia.

Palavras-chave: Barbeiros Sangradores – Lisboa – Época Moderna


"Sangrai e purgai-o e se morrer enterrai-o". O adágio popular que se ouvia na voz dos portugueses do Antigo Regime expressa com realismo o tratamento médico dispensado a muitos homens e mulheres em Lisboa, entre os séculos XVI e XVIII. À primeira vista, pode-se supor que estavam todos expostos ao pior dos cuidados terapêuticos. Esta impressão seria exata, caso a sangria não fosse considerada pelo saber douto e universitário da época como um procedimento altamente eficaz.

A medicina ensinada em Portugal, nos Tempos Modernos, baseava-se nos princípios da escola hipocrática e nos ensinamentos galênicos, divulgados na Península Ibérica quando passou no domínio do Islã no século VIII2. Ao lado dos inúmeros contributos legados pela medicina árabe, que aliou um imenso conhecimento teórico a uma observação aguda dos casos clínicos, aperfeiçoando os estudos de uroscopia e preconizando a aplicação do cautério e do ferro em brasa no tratamento de feridas crônicas3, os fundamentos greco-romanos constituíram o alicerce de toda a doutrina médica e da prática clínica em terras lusitanas.

Desde a formação do Estudo Geral, em 1290, na cidade de Lisboa, até o fim do setecentos, gerações de médicos emitiram diagnósticos e receitaram mezinhas, considerando que cada ser vivo ou bruto era resultado da composição de quantidades variáveis de terra, água, fogo e ar. Guiados pelos pressupostos da medicina antiga, entendiam que a combinação destes quatro elementos no organismo humano dava origem a quatro humores distintos: o sangue e a bílis amarela, produzidos pelo fígado, a fleuma, produzida pelo cérebro e a atrabílis (bílis negra), produzida pelo baço4. Como suas qualidades originais – o quente, o frio, o seco e o úmido – estavam sujeitos a forças internas ou externas capazes de alterá-los, os pneumas, asseguravam que a origem de todas as doenças residia no acúmulo destes líquidos orgânicos em uma região do corpo. Mas, os médicos portugueses defendiam, tal e qual os antigos, que o organismo era portador de uma força curativa que lhe era inerente e, por isto, o próprio corpo procurava libertar-se espontaneamente dos efeitos nocivos de qualquer descompasso humoral através de secreções. Deste modo, a fleuma, fria, úmida e transparente, era expelida pelo nariz, nos resfriados; a bílis, amarela, quente e seca, era expulsa pelo vômito, nas alterações digestivas; a atrabílis, escura, fria e seca, era excretada junto com as fezes, nas afecções intestinais, enquanto o sangue, vermelho, quente e úmido, se desprendia das feridas e acompanhava a expectoração das doenças pulmonares5.

Em outras palavras, para os médicos portugueses, a saúde era conseqüência de uma combinação humoral harmônica e a doença era o sinal de um desajuste, de uma ruptura neste equilíbrio natural. Orientados pelo sistema hipocrático e pelos escritos de Avicena, estabeleciam uma relação de causa e efeito entre a enfermidade e seus sintomas, diagnosticavam e tipificavam as doenças de acordo com os sinais externos que produziam. Instruídos por estes princípios, não vacilavam em afirmar que as mazelas de um ser humano tanto poderiam advir do excesso de exercício, da inércia, constante, das dietas impróprias, ou da impureza do ar, isto é, a repetição contínua dos mesmos hábitos, um ambiente infecto, uma alimentação inadequada, contrária ao clima das estações do ano, poderiam debilitar o corpo. O tratamento que dispensavam a qualquer achaque visava neutralizar a ação dos humores corruptos, provocados por estas condições. Então, combatiam o mal-estar alheio receitando regimes alimentares e medicamentos compostos de elementos com qualidades opostas às substâncias nocivas que dominavam o organismo e/ou através da sangria.

Os primeiros tratados hipocráticos reconheceram na flebotomia uma das principais armas na luta contra os humores doentios. Recomendavam-na no caso de luxações musculares ou na ocorrência de problemas na coluna vertebral. Mas esta técnica de tratamento alargou realmente seu leque de prescrições no início da era cristã, quando Celsus (c. 35 a.C.) descreveu os sinais indicadores da inflamação: rubor et tumor cum calor et dolor6. Encarada de início apenas como uma defesa do corpo, como uma reação orgânica, a acumulação de humores passou a ser compreendida em si mesma como uma doença. Logo, uma vez identificada pela aparência deixada na área atingida, realizava-se a sangria com o intento de dar vazão aos humores perniciosos que circundavam a área afetada.

Indicada no caso de contusões, dores reumáticas e inflamações, a sangria assumiu progressivamente a linha de frente das técnicas de tratamento médico, tornando-se inseparável do repertório das práticas curativas. A obra de Galeno contribuiu decisivamente para esta orientação. Na acepção do médico, o sangue não fazia um movimento circular e sim centrífugo, convergindo para os tecidos sem retornar ao ponto de origem. Por negar a circulação do sangue, sua tese justificou definitivamente o emprego da flebotomia. Ao secionar uma veia, acreditava-se que o desvio do fluxo sangüíneo, do seu local de destino para a zona do corte, permitia que todos os humores danosos que entravam em contato com o sangue em sua jornada pelo corpo fossem recolhidos.

Derivada dos incipientes conhecimentos do saber médico antigo, a arte de sangrar popularizou-se no medievo e adentrou incólume os Tempos Modernos. A aversão ao experimento, o apego aos tabus do corpo, traduzidos na censura imposta à dissecação de cadáveres pela Igreja Medieval, inibiram qualquer reavaliação do sistema hipocrático-galênico, transformando-o numa tradição. Nem mesmo a suspensão das sanções pontifícias aos estudos anatômicos, motivada pela pandemia que ceifou milhares de almas, às portas da Época Moderna, foram suficientes para destroná-lo.

O saber médico conheceu, porém, progressos incontestáveis, insuflado pelo Humanismo e ancorado em uma política régia que trouxe para si o patrocínio de obras hospitalares. Em 1543, a obra do belga Andrea Vesalius (1514-1564), De Humanis Corpori Fabrica, desmentiu inúmeras descrições anatômicas de Galeno. Em 1628, o inglês William Harvey (1587-1657) comprovou a circulação sangüínea, fornecendo as bases para que a sangria fosse questionada7. Paradoxalmente, médicos e cirurgiões portugueses afamados continuavam a considerar a flebotomia como uma técnica de cura eficiente e indispensável.

A formação e a nomeação de um oficialato subordinado ao Estado português para atender à população enferma e carcerária, no início do século XVI, já havia institucionalizado o uso da sangria. Os conhecimentos produzidos por uma medicina de ponta depararam-se com os cânones já consagrados, dificultando sua assimilação. Os tratados médicos resultantes de uma observação sistematizada estavam em margem oposta aos poderes constituídos pelas cátedras universitárias, conquistadas graças a um conhecimento ancorado na tradição. A resistência em adotar teorias oriundas de estudos experimentais persistiu inclusive após a Reforma da Universidade, empreendida pelo Marquês de Pombal, em 17728.

A prática clínica em Lisboa desenvolveu-se rigorosamente dentro deste quadro. Prescrita por médicos e executada por barbeiros, a sangria impôs-se e manteve-se como a soberana das técnicas de tratamento, nas tendas, nos domicílios, nos cárceres e nos hospitais lisboetas durante todo o período moderno.



1. A clínica médica no Hospital Real de Lisboa

Em 1492, quando D. João II lançou em cerimônia pública a primeira pedra para a construção do Hospital de Todos os Santos, sua intenção era dotar Lisboa de uma casa hospitalar que pudesse assistir à população que vivia na cidade e em seu termo. Erguido no Rossio, sobre o chão do antigo cemitério dos mouros e às custas da desapropriação de construções que serviam de morada e de oficinas artesanais, o primeiro Hospital Real português foi concluído em 1504, no reinado de D. Manoel. A obra desativou as modestas instalações que serviam de enfermaria para os oficiais mecânicos no fundo das lojas e foi um passo decisivo para a transformação do conceito das unidades hospitalares em Portugal.

Entregue à proteção de Todos os Santos, porque reuniu os antigos hospitais, identificados por patronos celestes, a instituição pretendia ser uma casa de saúde. Embora oferecesse os serviços de um capelão para conforto espiritual e psicológico de seus pacientes, seu desiderato não se restringia a abrigar doentes para que tivessem uma boa morte e os últimos cuidados religiosos. Definidos por Regimento em 1504, o perfil e a atuação do quadro funcional e o próprio dia-a-dia hospitalar revelavam que o propósito maior do estabelecimento era a recuperação do interno9.

O rigor com a limpeza do hospital, a manutenção de condições necessárias para prover a alimentação adequada a cada paciente, o controle do excesso de ruídos, a postura a ser assumida pelos funcionários diante da doença e da morte, assim como a disposição calculada dos leitos nas instalações, davam a tônica do discurso médico-administrativo do Hospital Real.

A equipe médica era formada por dois físicos, dois cirurgiões, um barbeiro e sangrador, um boticário, uma cristaleira, além dos enfermeiros e de uma ajudante da enfermaria feminina. Com exceção de um dos físicos, um dos cirurgiões e do barbeiro, todos os outros oficiais moravam nos alojamentos do Hospital, para acudir de imediato os internos. Os físicos e os cirurgiões realizavam, diariamente, cada qual por sua vez, duas visitas aos doentes. A primeira tinha lugar logo ao raiar do sol, a segunda ocorria até as duas horas da tarde. Nestas diligências, os quatro eram acompanhados pelo boticário, pelo barbeiro e pelo vedor. Após os procedimentos de costume, ou seja, a verificação do pulso e o "exame das agoas" (urina), o enfermeiro-mor registrava no prontuário do paciente – uma tábua de madeira presa à cama com os dados de identificação do interno – as mezinhas a serem preparadas pelo boticário, a dieta prescrita pelo médico, que o vedor encaminharia à cozinha, e as sangrias a serem executadas pelo barbeiro.

A estipulação de uma rotina hospitalar, com horários de atendimento determinados pelo regulamento, e a manutenção de um quadro funcional fixo, com funções interligadas, disponível a qualquer hora, por residir na instituição, articulada à remoção discreta e imediata do paciente após o óbito, por ser a prova maior do fracasso do tratamento, fizeram do Hospital de Todos os Santos um ícone das tecnologias disciplinares implementadas pela Coroa portuguesa no século XVI. Sobretudo, se comparado à experiência da França, segundo Michel Foucault, onde a organização hospitalar só prevê um cuidado especial com o regime alimentar dos internos, a identificação dos doentes, o plantão de seu corpo médico e a adaptação das instalações aos serviços da instituição, no século XVIII10.

A compreensão do hospital como um lugar de cura e promotor da construção do saber médico talvez tenha sido tardia entre os franceses e só se completou em Portugal, realmente, no oitocentos, quando a direção dos hospitais foi entregue a um licenciado em Medicina. Mas as bases institucionais da clínica médica já estavam presentes no projeto do Hospital de Todos os Santos, porque seu Regimento considerava o espaço hospitalar um ambiente privilegiado para o aprendizado. Nas duas sessões diárias em que visitava os pacientes, o cirurgião que vivia na Casa trazia consigo dois moços e lia para seus ajudantes uma lição de cirurgia para "aprenderem theoria e pratica e poder[em] ficar ensinados [...] para as curas e chagas dos doentes"11.

Esta face do projeto hospitalar manuelino só se completou de fato em 1556, no reinado de D. João III, quando o monarca definiu em pormenores os termos deste ensino, no alvará em que nomeou o Dr. Duarte Lopes como cirurgião residente do Hospital Real.

Eu, o rei, faço saber a vós provedor [...] que, confiando eu da bondade letras e saber do doutor Duarte Lopes, morador na dita cidade, e por folgar de lhe fazer mercê, hei por bem de encarregá-lo daqui em diante [de] ler uma lição de Guido cada dia nesse hospital, em uma casa que lhe vos ordenares para isso. E lerá uma hora pouco mais ou menos e depois de ler a dita lição estará meia hora [à disposição] para dúvidas que os ouvintes lhe puserem. E assim me apraz que ele faça as anatomias que parecerem necessárias e vos ordenardes dos corpos mortos dos que na dita casa falecerem e assim as que se houverem de fazer aos corpos dos que padecerem por justiça nesta cidade (...)12.

Restrita a uma sentença, nos dias da redação do Regimento, a instrução que o cirurgião deveria dar aos seus aprendizes tornava-se, nos tempos de João III, uma obrigação inelutável, com horário para o início e término das aulas e tempo previsto para o esclarecimento das eventuais dúvidas. As lições seriam, agora, ministradas em um local designado pelo provedor do Hospital e contemplavam o estudo da Anatomia. Para que o dito tivesse efeito, os corpos dos indigentes que faleciam dentro do Hospital, ou dos que padeciam nas mãos da justiça régia, passavam a ter outra utilidade.

Decalcada dos escritos de Avicena e Galeno, as lições de Guido, nome aportuguesado do francês Guy de Chauliac, orientavam o diagnóstico e os tratamentos recomendados em caso de extrações dentárias, feridas, ulcerações, apostemas (escrófulas, cancros, erisipelas) e outras mazelas cutâneas e subcutâneas que atingiam os internos do Hospital. O antidotário, por conseguinte, também era fiel à tradição antiga: cautérios, purgantes, clisteres e sangrias. A remoção de dentes e a seção de uma ferida crônica com ferro em brasa eram assunto para o cirurgião, mas, em se tratando das incisões venosas, a tarefa era confiada a outro oficial da instituição: o barbeiro.

A lida do barbeiro e sangrador do Hospital Real ia além de sangrar os internos em "todas as horas e tempos" em que fosse requerido e ordenado pelo físico. Cabia-lhe, ainda, "fazer a barba e tosquiar" os doentes todas as vezes em que fosse solicitado, livrando os internos do incômodo dos piolhos e preparando-os para receber, na face ou na cabeça, os emplastros do cirurgião, as mezinhas do boticário e suas próprias ventosas13.

A arte da barbearia e da sangria em Lisboa não estavam entre as técnicas ensinadas no Hospital Real nos dias de D. João III, nem tampouco antes, nos anos de D. Manuel14. O aprendizado nada tinha de livresco ou teórico, era oral, empírico e obtido nas tendas dos mestres barbeiros. Ao contrário da prática cirúrgica, o ofício de sangrar estava submetido às regras da confraria de São Jorge e aos regulamentos que norteavam o exercício legal desta profissão na cidade.



2. Lancetas, sanguessugas e ventosas: a cura para todos os males

A partir de 1572, por ordem da Câmara Municipal, o barbeiro que cuidasse de sangrar deveria primeiro comprovar dois anos de experiência, supervisionados pelo mestre, para que pudesse receber do cirurgião-mor a carta de examinação, que o habilitava a exercer o ofício por conta própria15. Os que descumprissem a lei pagavam multa à cidade. A medida visava inibir a atuação dos oficiais sem licença e que sangrassem sem orientação prévia de um médico ou cirurgião. A rigor, cabia a estes profissionais a prescrição terapêutica e, ao barbeiro, apenas executá-la. Mas é difícil crer que a prática fosse esta, longe das instalações hospitalares. Nem todos os casos requeriam internação e nem todos podiam arcar com os custos do atendimento médico e mesmo com as receitas passadas ao boticário. Preconizada pela cultura médica da época e corrente no vulgo como um tratamento eficaz, a sangria, pelo contrário, não discriminava as gentes.

Munidos de uma lanceta, bacias, pós restritivos para estancar o corte e ventosas de tamanhos variados para sangrias no pescoço e abdome, os barbeiros socorriam qualquer um. A facilidade de encontrá-los nas lojas da cidade e o preço acessível do serviço contribuíam para que estabelecessem uma clientela cativa16. Tais comodidades faziam muitos recorrerem a um barbeiro por iniciativa própria. Não obstante, alguns médicos, viciados pelo hábito ou por incúria, receitavam o mesmo procedimento.

João Curvo Semedo, médico da Câmara de sua Majestade, dos Cárceres do Santo Ofício e autor de vários tratados de medicina, deixou registrada em uma de suas obras uma crítica ao uso indiscriminado da flebotomia17. Em 10 de dezembro de 1668, foi chamado à casa de D. Cecília Maria de Menezes para curá-la de uma "febre podre" e um "calor hectico", que a deixaram pálida, muito magra, "tossitosa", com suores noturnos e pele áspera. Até aquela data, a moça já havia sido sangrada cento e vinte vezes. Suspeitando do tratamento aplicado à paciente, João Curvo foi taxativo:

Não me atrevo a afirmar que tão excessiva efusão de sangue fosse a causa de se fazer de tão robusta, tão fraca e de tão sadia, tão enferma. Mas Galeno, que tem maior autoridade que eu, o insinua dizendo: ainda que alguns doentes não sintam logo os danos que as muitas sangrias lhe fazem, depois que as forças se enfraquecem com ela, caem os doentes em enfermidades teimosas e ficam toda a vida enfermos, descorados, com febres, balofos, fracos de vista, de estômago, de fígado, de nervos e por esta causa uns se fazem hidrópicos, outros apopléticos, outros paralíticos e com qualquer leve enfermidade morrem ou chegam a grandíssimos perigos, o que não sucederia, se os houvessem sangrado com mais cautela e moderação18.

Pioneiro no uso e na vulgarização dos remédios de formulação química em Portugal, João Curvo conseguiu livrar Dona Cecília da moléstia, conjugando uma receita à base de elementos metálicos com infusões e dietas de inspiração galênica. E não poderia deixar de sê-lo. Como um médico típico da medicina barroca, acatava as novidades, mas mantinha intocadas certas tradições. Sua voz não se opunha à sangria, somente criticava a utilização abusiva das lancetas, das ventosas e das sanguessugas.

Havia, entretanto, quem a recomendasse como precondição para aplicação de qualquer tratamento. Manoel Leitão, cirurgião do Hospital Real de Lisboa, incluía-se neste rol. No prólogo da obra Prática dos Barbeiros, impressa pela primeira vez em 1604, reeditada em 1667, e que se tornaria uma verdadeira bíblia para os homens do ofício, deixou dito:

(...) entre os remédios mais proveitosos, de que a assim na Medicina como na cirurgia, costumam os Médicos mais usar, é a sangria, porque conforme a doutrina de todos, antes que o remédio bocal se [aplique], primeiro procede[-se] a evacuação da sangria, pressuposto [o uso do] clister, e assim a sangria he o melhor remedio & o primeiro que às enfermidades se pode aplicar"19.

Enfático e objetivo, o discurso de Manoel Leitão esclarece, naturalmente, sobre os procedimentos terapêuticos empregados no Hospital de Todos os Santos e revela o grau de importância que os médicos do século XVII atribuíam à sangria. O procedimento era usado para expelir os humores danosos que atuavam sobre um ponto específico do corpo (evacuação), para enganar o fluxo sangüíneo e conduzi-lo para o lado oposto, evitando derrames na parte afetada (diversão). Era também utilizado para levar o humor a uma parte específica (atração), provocando o mênstruo, por exemplo, e para modificar a qualidade do humor maligno predominante (alteração). Era empregado ainda para conservar os humores sãos, prevenindo uma enfermidade (preservação), e para amenizar dores ou baixar a temperatura do corpo, no caso de febres (aliviação).

Utilíssima para prevenir e remediar, segundo Manoel Leitão, a flebotomia era empregada como anestésico, antiinflamatório e até como abortivo. Com um amplo leque de recomendações, que incluíam desde simples cefaléias a tumores e hemorragias, sua execução dependia, entretanto, de imensa precisão.

A intenção de Manoel Leitão em escrever os quatro tratados que compõem sua obra não foi a de ensinar seus pares e sim a de instruir os sangradores que atuavam na cidade, depois de constatar que, após três, quatro anos de iniciados na arte de sangrar, a maioria desconhecia os nomes e a distribuição das veias, além de ignorar quais delas eram passíveis de incisão e quais as complicações advindas de um corte impróprio.

Compreender o intrincado mapa do sistema venoso era mesmo tarefa difícil. Segundo o cirurgião, podia-se sangrar quarenta e duas veias: dezoito na cabeça, doze nos braços e doze nos pés (fl. 29). De acordo com suas recomendações, sangrava-se atrás das orelhas (veias parótidas) para combater catarros antigos e as chagas de cabeça (fl. 42); na testa (veias temporais) para curar oftalmias (fl. 45); no canto dos olhos (veias "aspicientes") para sanar enfermidades na face e vermelhidão na vista, debaixo da língua (veias "leonicas") para livrar o doente das dores de garganta (fl. 50). E ainda dentro e fora do nariz e nos lábios. Apenas o "sovaco" (fl. 30) deveria ser poupado de incisões.

Austero, Manoel Leitão não economizava exigências, ao traçar o perfil de um bom barbeiro. Tinha de ser "mancebo", para que não lhe tremessem as mãos e tivesse boa vista. Deveria ser "experimentado", tanto na prática quanto na teoria, para que soubesse diferir uma veia de uma artéria, conhecendo quantas veias existiam no corpo humano e quais eram sangráveis. E, evidentemente, bem "aparelhado de lancetas". Desde que reunisse todos estes atributos, juventude, experiência e algum cabedal, poderia seguramente exercer o mester (fl.19).

A debilidade física afastou alguns sangradores do ofício, inclusive precocemente. Mas o maior desafio de qualquer aspirante a barbeiro, o domínio da rede venosa, pouco significava sem que se observasse "o modo e a maneira de sangrar" (fl. 19).

Os procedimentos preliminares à picada, se acertados, eram a base para o sucesso da incisão. Por isto, primeiro o barbeiro amarrava uma atadura bem feita acima do sangradouro, para que a veia, uma vez comprimida, se levantasse e ele pudesse ter melhor tato e visão. Então, friccionava-a com os dedos, dava-lhe um pique rápido, nunca muito profundo, para que não atingisse um nervo, uma artéria ou um tendão e a picada fosse precisa e indolor. Depois de retirada a quantidade de sangue recomendada, o barbeiro estancava a ferida com um chumaço de pano, envolvia o corte com uma atadura, amarrando-a por cima do braço ou do pé, conforme o caso, de modo que o curativo não desatasse logo. A operação, entretanto, exigia delicadeza. A fita nunca haveria de ser muito justa, sob o risco da pressão levantar a artéria, a pulsação ser perdida e o barbeiro picar a artéria em vez da veia, conduzindo a um fluxo de sangue impossível de estancar e capaz de levar o paciente à morte.

A demonstração da habilidade do barbeiro media-se, portanto, por sua atenção na seqüência destes procedimentos. Os barbeiros desenvolveram, entretanto, meios e modos para exibir sua competência, em alguns casos pondo em risco o êxito da sangria. Avesso à prática dos oficiais mecânicos, o cirurgião explicava aos aprendizes que seu objetivo maior era realizar uma incisão bem feita, um pique seguro. Sangrar "de pancada, & com ligeireza", para "florear com a lanceta" (fl.22) e/ou usar o dorso da mão, porque assim diziam que era mais "fermoso" (fl.20), em vez de pressionar a veia com a palma da mão virada para baixo, era um passo para o fracasso da flebotomia e poderia causar desastres irremediáveis.

Os cuidados antes, durante e após a sangria naturalmente consideravam, outrossim, o paciente e o próprio instrumento de trabalho. Sendo "delgada e delicada", a lanceta era própria para tecidos macios. Sangrar sobre calos tanto era incorreto como poderia resultar na perda do material de trabalho. Observada a ressalva, a sangria deveria ser realizada sempre com o paciente deitado, nunca de pé. Todos os adornos, fossem jóias de pedra, de metal ou cilícios, deveriam ser retirados, pois, de acordo com a "doutrina de Guido de Cauliaco" [sic], retinham o sangue. Depois de sangrado, era mister que o paciente guardasse total repouso. Contudo, não poderia dormir antes de uma hora transcorrida, nem lhe era recomendado deitar sobre a ferida ou ingerir alimentos indigestos. Cabia-lhe fazer uma dieta "sutil e delgada", de acordo com a prescrição médica.

A escolha do instrumento a ser usado pelo sangrador obedecia, necessariamente, aos objetivos da incisão. Por princípio, a lanceta, a sanguessuga, assim como a ventosa – um vaso de vidro ou osso com um tubo estreito e de fundo largo – prestavam-se à evacuação dos humores. Todavia, como atingiam a carne em níveis diferentes, as duas primeiras eram indicadas para uma remoção mais profunda, e a segunda, para os humores que estavam entre "o couro e a carne" (fl. 72).

As sanguessugas eram recomendáveis nos casos em que o doente já estava muito debilitado e não suportava mais os cortes (fl. 68). Para que os vermes cumprissem o papel de sugar o sangue, o certo era deixá-los de molho em água limpa desde a véspera para que deitassem fora qualquer excrescência e ficassem com "o ventre vazio" (fl. 70). Na hora da aplicação, friccionava-se a pele até provocar vermelhidão, ou untava-se a região com sangue de galinha ou de qualquer outro animal, para que os bichos cedessem ao seu apetite natural.

Se as sanguessugas eram indicadas apenas para sangrar "os beiços, nariz, gengivas" e as veias do ânus (fl. 69), as ventosas tinham um leque variado de prescrições. Como a sangria, neste caso, era feita por vácuo, aquecia-se a parte bojuda do vidro com o auxílio de uma estopa e, depois, depositava-se o orifício da parte oposta sobre a pele (fl. 70). Aplicando a ventosa sobre o ventre curavam-se colites, colocando-a sobre as costas, tratavam-se dores ciáticas e incorreções na coluna vertebral; dispondo-as nas coxas, debaixo (ou sobre) os seios da mulher, provocava-se o mênstruo. O método servia ainda para sanar doenças pulmonares em estágio avançado, mau hálito, chagas abertas, esquinências, mordidas de animas venenosos (fl. 64), enfim, praticamente todo o elenco de achaques que pudesse acometer um ser humano.

Os barbeiros tinham conhecimentos rudimentares e restritos à execução da sangria. Segundo a divisão do trabalho à época, que apartava com nitidez as artes mecânicas e as artes liberais, isto nada tem de absurdo. Inseridos no primeiro grupo, os barbeiros eram antes de tudo trabalhadores manuais. O próprio Manoel Leitão dizia que o conhecimento anatômico mais pormenorizado era inteiramente supérfluo para um barbeiro. Tanto que, prevenindo-se de leitores excessivamente curiosos, o cirurgião escudou-se nos objetivos que presidiram a redação de sua Prática. Não era seu propósito explicar o movimento e/ou a inércia de órgãos como o coração e o fígado, porque "bast[ava] saber o barbeiro porque se mov[ia] a artéria e a veia não" (fl. 26).

Manoel Leitão foi, de fato, um advogado da sangria e de seus benefícios terapêuticos, mas também da hierarquia entre os saberes de médicos, cirurgiões e barbeiros. Em sua avaliação, aos primeiros caberia a prescrição e aos últimos, a execução. Logo, "barbeiros flebotomanos" (fl. 11) nunca deveriam sangrar sem ordem dos médicos. Caso contrário, corriam o risco de provocar estragos irremediáveis, como o de que fora vítima um mancebo, que, ao se deixar sangrar por um barbeiro duas vezes no pé – porque tinha um fleimão nos testículos – quase perdeu a vida, pois os humores retidos no abscesso, atraídos pelo corte, espalharam-se pelo corpo, causando-lhe uma apnéia. Conta o cirurgião que, se ele não tivesse sido acudido com copiosas sangrias, teria morrido.

O autor de Prática de Barbeiros alinhava-se entre os partidários da sangria derivativa, ou seja, da incisão realizada no local mais próximo da inflamação, pois acreditava que o humor doentio poderia espalhar-se pelo corpo, caso o corte fosse feito distante da região afetada, como costumavam fazer os adeptos da sangria volumosa. A considerar o número de edições de sua obra, que acabou tornando-se a "bíblia dos barbeiros", nos séculos XVII e XVIII, e inspirando outros manuais famosos, como o de Leonardo de Pristo, publicado em 171920, pode-se inferir que esta era a técnica mais utilizada entre os sangradores formados na escola do Hospital Real e dos barbeiros que agiam sob a supervisão de um médico. Porém, levando-se em conta a tabela de preços que o barbeiro Manoel dos Santos apresentaria ao Santo Ofício, quase cem anos depois, na qual só estavam previstas as sangrais de braço e de pé, pode-se concluir que esta não era a prática de todos os barbeiros. Nos cárceres da Inquisição, o que predominava mesmo era a sangria volumosa e, considerando o teor deste conjunto de argumentos, a mais arriscada.



3. O atendimento médico nos cárceres inquisitoriais

O Regimento da Inquisição de 1640 previa que médicos e cirurgiões deveriam acudir com pontualidade todas as vezes que fossem chamados à cadeia.21 Tanto cirurgiões quanto médicos eram expressamente instruídos para ouvir os sentenciados com "paciência" e tratá-los com "caridade", de modo que os próprios presos vissem o cuidado que o Santo Ofício tinha com sua saúde. Deveriam mandar-lhes preparar as mezinhas e remédios prescritos para aplicá-las a tempo e, caso algum prisioneiro manifestasse uma doença grave, era mister informar de pronto à mesa do Tribunal, bem como informá-la a respeito da evolução da enfermidade, pois, se o diagnóstico indicasse a iminência da morte, o confessor deveria ser acionado o quanto antes.

Na prática, o tratamento se resumia à sangria executada pelo barbeiro, que, ao fim e ao cabo, também tratava de outras mazelas, embora fosse contratado pelo Santo Ofício apenas para sangrar e barbear. O resultado desta prestação de serviço, que ultrapassava os limites do saber de um único ofício, quase nunca tinha um final feliz.

Em novembro de 1643, Margarida Vaz sofreu na carne a imperícia do barbeiro Valentim Ferreira, que lhe extraiu um dos dentes e deixou as raízes retidas em seu maxilar. Como a detenta se contorcia em dores após o atendimento, o barbeiro foi chamado novamente aos cárceres para concluir a extração. Valentim, no entanto, foi incapaz de corrigir o malfeito, alegando que não tinha os "ferros" necessários. Diante do imponderável, o alcaide dos cárceres apelou para a ajuda de um saca-molas estrangeiro, residente em Lisboa, para realizar o trabalho22. Margarida foi conduzida pelo guarda José da Silva até à casa do próprio alcaide e lá o profissional resolveu o problema23.

O episódio foi registrado no livro pelo alcaide, mais para notificar que Margarida fora atendida longe da cadeia, e que para ela retornara, do que para questionar a habilidade do barbeiro, pois, apesar de ter sido o pivô do transtorno, Valentim continuou cuidando dos encarcerados. Mas se os inquisidores de Lisboa pouco se importaram com as peripécias de seu barbeiro e sangrador, os presos, por sua vez, passaram a recusar seu atendimento.

Cinco anos após o incidente que vitimara Margarida, durante a visita que fazia aos presos, o médico e cirurgião-mor Francisco Borges receitou novas sangrias a Francisco Leitão. O sentenciado se dispôs a submeter-se às sessões, mas não quis fazê-las com Mestre Valentim, afirmando que, de outra vez em que andara adoentado, fora sangrado pelo barbeiro e que este fizera muito mal as incisões. Alegando que os inquisidores lhe haviam assegurado que, na próxima ocasião, mandariam outro barbeiro, o preso declarou que só se entregaria à lanceta de outro oficial, pois preferia "morrer sem ser sangrado do que morrer obrigado"24. O clamor de Francisco não foi ignorado pelo Tribunal. A bem da verdade, a queixa foi direto aos ouvidos do inquisidor Diogo de Souza, que consentiu que ele fosse tratado por outro barbeiro que assistia os cárceres.

A indignação de Francisco tinha, de fato, seus fundamentos. Mesmo que se desconheçam as circunstâncias exatas que motivaram suas afirmações, não há dúvidas de que teve sua vida em perigo, exatamente como Margarida, havia alguns anos. Ao que tudo indica, Valentim estava entre os tais barbeiros que desconheciam a diferença entre uma veia e uma artéria e que gostavam de "florear com a lanceta". Além de tudo, era afoito, porque, mesmo sem os instrumentos adequados, dispôs-se a faturar alguns réis, macerando a arcada dentária de sua paciente. Entretanto, para tranqüilidade geral dos detidos, era pouco assíduo. Por isto, desde julho de 1639, passou a ser substituído, em casos de impedimento, por Manoel Cosmo25, um barbeiro experiente, com mais de vinte anos de ofício e que tinha uma tenda na Rua das Flores.

Mestre Cosmo estava entre os oficiais mecânicos que desmentiam a fama de ignorantes, que o mestre em artes e cirurgião Manoel Leitão imputou aos oficiais de sangrar e barbear, em sua Prática de Barbeiros. Embora não fosse o titular do cargo de sangrador do Santo Ofício, dominava muito bem a arte de sangrar, tanto assim que conquistou depressa a confiança dos presos. O preso Francisco Leitão deixou-se sangrar por ele, quando somava apenas quatro meses de trabalho nos cárceres. É possível que o barbeiro da Rua das Flores tenha entrado nos cárceres para conter a animosidade que seu irmão de ofício despertava nos presos. Após os brados do encarcerado a quem atendera mal, Valentim parece ter sido suspenso. E, se assim não foi, é muito provável que se tenha tornado alvo de total rejeição entre os encarcerados, pois somente em 29 de abril de 1641, por ordens expressas da Mesa inquisitorial, o barbeiro retomou suas atividades na prisão. Entretanto, desde então, passou a dividir a meias as sangrias com Manoel Cosmo, que se tornou funcionário do quadro, ainda que sem provisão26.

Profissionais sem qualquer formação universitária, os barbeiros foram, no entanto, personagens de enorme importância para as práticas curativas no Portugal do Antigo Regime. O contato estreito com médicos e cirurgiões distinguia-os dos demais oficiais mecânicos e não era incomum que muitos se fizessem passar por estes últimos. Em meados do século XVIII, perderam de vez a primazia para os cirurgiões-sangradores, prova de que a sangria ainda levaria uma centúria para ser contestada pelo saber médico oficial em território português.
Revista Tempo - UFF

O Imperialismo, Hoje



O Imperialismo, Hoje

Pablo González Casanova
Ex-reitor da Universidade Nacional Autônoma do México


No fim do século XX, o imperialismo, que é a formação mais avançada do capitalismo, domina no mundo inteiro, com exceções como Cuba, muito pouco explicadas na teoria das alternativas.
Desde os anos 1970 e 1980, as redefinições ou reestruturações do imperialismo deram uma força especial ao processo conhecido como “globalização”. Sob esse processo se delinearam as novas formas de expansão das grandes potências, em particular dos Estados Unidos.
Na década de 1970, os Estados Unidos tomaram a ofensiva no controle mundial ao impor o dólar em vez do ouro, que até então tinha sido o referente de todas as moedas. Os Estados Unidos, juntamennte com a Europa e o Japão, formaram uma Tríade (que o primeiro país encabeçou) e com ela promoveram uma política de endividamento interno e externo dos governos que enfrentavam uma crise fiscal crescente ou uma crise na balança de pagamentos.
Suas principais vítimas foram os governos dos países dependentes, incapazes de alterar a relação de intercâmbio desfavorável, ou o sistema tributário regressivo, e coagidos ao mesmo tempo a satisfazer demandas populares mínimas para manter sua precária estabilidade. A política global de endividamento dos poderes públicos e nacionais renovou o velho método de submissão dos devedores pelos credores, e ocorreu em nível macroeconômico mundial, incluindo muitos governos das cidades metropolitanas. O processo de endividamento correspondeu ao desenvolvimento de um capitalismo tributário e à submissão financeira renovada dos países dependentes. Com taxas de juros móveis, que podiam aumentar à discrição do credor, a política de globalização impôs um sistema de renovação automática de uma dívida crescente e impagável que fez da dependência um fenômeno permanente de colonialismo financeiro, fiscal e monetário.
Desde 1973, após o golpe de Estado de Pinochet, implantou-se no Chile o neoliberalismo. Desde os anos 1980, o neoliberalismo se converteu na política oficial da Inglaterra, com Thatcher, e dos Estados Unidos, com Ronald Reagan. As forças dominantes enalteceram o neoliberalismo como uma política econômica de base científica e de aplicação universal, reafirmando e renovando a ofensiva anglo-saxã, que desde o século XVII impulsionara a Inglaterra, sob o manto do liberalismo clássico, a aproveitar as vantagens que o fato de ser o país mais industrializado lhe dava no comércio mundial.
A globalização neoliberal iniciada no fim do século XX também teve como objetivos centrais: a privatização dos recursos públicos; a desnacionalização das empresas e patrimônios dos Estados e povos; o enfraquecimento e a ruptura dos compromissos do Estado social; a “desregulagem” ou supressão dos direitos trabalhistas e da previdência social dos trabalhadores; o desamparo e a desproteção dos camponeses pobres em benefício das grandes companhias agrícolas, particularmente as dos Estados Unidos; a mercantilização de serviços antes públicos (como a educação, a saúde, a alimentação, etc.); o depauperamento crescente dos setores médios; o abandono das políticas de estímulo aos mercados internos; a instrumentação deliberada de políticas de “desenvolvimento do subdesenvolvimento” com o fim de “tirar do mercado” globalizado os competidores das grandes companhias.
O neoliberalismo globalizador exportou a crise para as periferias do mundo ao mesmo tempo em que se apropriou dos mercados e meios de produção e serviços que tinham sido criados no pós-guerra, substituindo os que não fossem rentáveis e estabelecendo um neocolonialismo cada vez mais acentuado e repressivo, em que compartilhou os lucros com as oligarquias locais, civis e militares, e negociou com elas privatizações e desnacionalizações para associá-las ao processo.
A negociação, como concessão, cooptação e corrupção, adquiriu características macroeconômicas e esteve constantemente vinculada a novos fenômenos de paternalismo, de humanitarismo caritativo, de cooptação e corrupção de líderes e clientelas, fenômenos que abarcaram até mesmo as populações mais pobres e castigadas, contra as quais se preparou um novo tipo de guerra chamada de baixa intensidade, com o emprego de contingentes militares e paramilitares, e com as mais variadas formas de terrorismo de Estado por conta das “forças especiais”, encarregadas de “operações encobertas” realizadas por agências governamentais, ou por agentes subsidiados e contratados pelas mesmas. Os negócios da droga aportaram contribuições milionárias na montagem de um teatro de confusões e à perda de sentido das lutas alternativas. Também serviram para consegur a criminalização, real ou fingida, de líderes e movimentos populares, sistêmicos e anti-sistêmicos.
Nos anos 1990, a guerra econômica entre as grandes potências substituiu o projeto de governabilidade do mundo pela Trilateral. Os Estados Unidos subjugaram em poucos anos o Japão e os Tigres Asiáticos. O grande capital impôs uma política de apoio fiscal, político e militar crescente aos contribuintes mais ricos, muitos deles possuidores dos bancos e das megaempresas, amiúde também integrantes dos altos cargos públicos e das velhas e novas elites dominantes. Os privilégios para o grande capital legalizaram formalmente a apropriação de recursos públicos e privados no centro e na periferia do mundo capitalista, incluindo o direito a especulações gigantescas como a que esteve a ponto de falir o Banco da Inglaterra.
Passados pouquíssimos anos do início do processo, o complexo militar-empresarial dos Estados Unidos, expressão máxima do capitalismo organizado dominante, confirmou que suas mediações, instituições e recursos de dominação ideológica, política e econômica tinham chegado a um ponto de crise ameaçadora ao seu domínio e interesses. Isso o levou a endurecer sua política e empreender novas ações que lhe permitissem se manter na ofensiva e ampliar sua situação de privilégio.
A crise das mediações do capitalismo organizado se manifestou: em um crescente desprestigio de seu projeto de democracia de mercado; nos graves escândalos de corrupção de que foram atores os principais gerentes e proprietários das megaempresas – supostamente mais honrados do que os funcionários populistas e socialdemocratas dos governos dos Estados “minimizados”; no insuportável mal-estar de uma cidadania sem opções, aprisionada entre os mesmos programas e políticas de democratas e republicanos, e vítima da insegurança social e do desemprego em ascensão; da deterioração e da insuficiência das escolas públicas; da falta de serviços médicos e de remédios; da criminalidade generalizada em zonas urbanas e rurais. As eleições fraudulentas e elitistas em que Bush perdeu a presidência dos Estados Unidos por 500.000 votos e pouco depois a ganhou pela decisão de uma
minoria de quatro juizes a favor e três contra, foram o ponto de partida de um processo de lógica totalitária em que as mentiras não são ditas para que se acredite nelas mas, sim, para que sejam obedecidas. E como à crise de instituições e de mediações se somou o perigo de uma recessão que não cedia, os Estados Unidos levaram a Europa à guerra econômica com a qual já tinham controlado o Japão. Ao mesmo tempo, aceleraram uma ofensiva geopolítica mundial que já tinham iniciado anos antes. Com a invasão do Iraque culminaram suas intervenções na Europa Central (Kosovo), na Ásia Central (Afeganistão) e no Oriente Médio, esta última por conta de Israel, um elemento da estratégia militar do “Ocidente” cada vez mais instrumentalizado pelos
Estados Unidos. Dez anos de bombardeios contra o Iraque, apoiados pelas próprias Nações Unidas, após debilitar e empobrecer terrivelmente este país, facilitaram a ocupação de seu território e, sobretudo, de suas imensas riquezas petrolíferas. Os Estados Unidos mostraram cada vez mais estar na posição de líder da globalização neoliberal e inclusive fizeram gestos simbólicos e prepotentes que confirmaram seu caráter de “Soberano” que pode estar acima das Nações Unidas para declarar a guerra, da Suprema Corte da Justiça para violar os direitos humanos, dos acordos de Kioto para não assinar um compromisso que os obrigasse a tomar as medidas necessárias para a preservação da Terra.
A nova política globalizadora diante da crise interna e externa consistiu em dar prioridade ao neoliberalismo de guerra e à conquista de territórios, empresas e riquezas mediante o uso da força. No campo ideológico os Estados Unidos complementaram sua ideologia de luta pela democracia e pela liberdade, gravemente desprestigiada, pela ideologia de uma guerra preventiva contra o terrorismo. Adjudicaram-se o direito de definir o que seria terrorismo e de incluir na definição todos os opositores de que precisassem se desfazer, bem como de excluir dela todos os delinqüentes de que tivesse necessidade e seus próprios corpos especiais militares e paramilitares “com direito a matar” e “torturar”. A guerra não esteve incluída nos atos de terrorismo, nem o bombardeio e extermínio das populações civis, de povos, cidades e países inteiros. Pelo contrário, os Estados Unidos afirmaram empreender uma guerra do Bem contra o Mal, dispondo-se a travá-la em todas as partes do mundo e por um tempo indefinido.
Nem todos os falsos mitos da Idade Moderna foram destruídos. Muitos, como a democracia com sangue, foram impostos pela força. O governo dos Estados Unidos fingiram que tinham ido ao Iraque para impor a democracia e construir um país independente mediante a conquista. Seus enganos premeditados mostraram tanta violência quanto a que exerceram sobre a população do Iraque com o argumento de que seu verdadeiro objetivo era aprisionar Sadam Hussein, enquanto, para tanto, destruíam o país, cidade por cidade e casa por casa, e se apoderavam de seus ricos poços de petróleo.
A consternação mundial diante dessa política desumana se manifestou no desfile de milhões de pessoas nas grandes capitais do mundo. Também apareceu no desconcerto e na sensação de impotência que viveram os movimentos sociais partidários da paz e em luta por “outro mundo possível”.
Ao mesmo tempo, os Estados Unidos se propuseram a demonstrar sua decisão de atuar sozinhos quando fosse necessário, e de associar aos seus projetos de intervenção mundial os governos dos países altamente desenvolvidos e das potências intermediárias, assim como as demais burguesias e oligarquias do mundo que se submetessem a aceitar e apoiar “os seus valores e os seus interesses”. Mediante concessões e repressões, trataram de forjar um complexo imperialista. Pelo sentido comum entenderam que a repartição do butim e das zonas de influência deveria conceder prioridade sempre aos Estados Unidos, com pequenos ajustes prévia ou posteriormente negociados.
A política de repressões e de negociações abarcou todos os atores e todas as ações. Orientada sempre pela política de privatização, incluiu a privatização das empresas de guerra e dos exércitos, e a privatização em profundidade e em extensão, incluindo a terra e o subsolo, as fontes energéticas, a água e os mares, o ar e o espaço aéreo.
Nesta etapa da globalização neoliberal, os Estados Unidos e seus complexos e redes de associados e subordinados continuaram aproveitando a crise atravessada pelos movimentos de libertação e aqueles favoráveis à democracia e ao socialismo. Os movimentos alternativos, sistêmicos e não sistêmicos, continuavam padecendo da desestruturação e alienação de ideologias e estruturas e dos fluxos de informação e ação. Embora desde os anos 1990 começasse o movimento universal por uma nova alternativa, que procurava combinar e enriquecer as experiências das lutas anteriores, a clareza de idéias e a eficiência da organização de povos, trabalhadores e cidadãos mostraramse muito ineficientes para enfrentar a terrível ofensiva. Muitos deles tinham pensado que a crise crescente do capitalismo em si mesma os favorecia. Não tinham imaginado a imensa capacidade de reação e de violência de que era capaz o capitalismo. Ou não quiseram vê-la. A “guerra preventiva de ação generalizada” não constituiu somente uma mudança profunda em comparação com a “estratégia da contenção” que tinha predominado durante a guerra fria: foi também a forma mais adequada – a curto prazo – para que o grande capital e as potências imperialistas impedissem o desenvolvimento da consciência e a organização das forças alternativas emergentes.
Nessas circunstâncias, umas contradições começaram a atropelar as outras sem que se destacassem as lutas pela libertação, pela democracia e pelo socialismo como aquelas capazes de dar um novo sentido à História. Juntamente com as grandes manifestações de protesto contra a guerra, apareceram movimentos locais e globais de uma riqueza teórica e organizativa extraordinária; mas suas lutas tenderam a limitar-se a ações de protesto, e quando muito a ações de pressão passageira, ou de lenta construção de alternativas.
Em sua maioria, continuaram a mostrar-se incapazes de diminuir o ímpeto da política neoliberal que, na paz e na guerra, está levando o mundo a uma catástrofe generalizada.
A tais movimentos, ao mesmo tempo alentadores e incipientes, somaram-se outros, de um pensamento religioso e fundamentalista, que tendem a reproduzir a situação anterior de opressão e alienação dos povos oprimidos e fanatizados. Os líderes da resistência raramente se mostraram líderes de um pensamento crítico e radical; ou, freqüentemente, o representaram em suas formulações mais autoritárias e confusas, como no caso dos maoístas do Nepal, que voltaram a agir como líderes de movimentos armados incapazes de construir um mundo alternativo. Em muitos outros casos, os movimentos guerrilheiros foram penetrados pela contra-insurgência que, com o narcotráfico e os agentes especiais, os desabilitaram a empreender a necessária revolução ético-política. Numerosas guerrilhas se transformaram em grupos de foragidos sem outra lei nem ideologia além da pilhagem e da dominação repressiva das próprias populações em que se inseriam, às quais por vezes chegavam a impor políticas clientelistas e de privilégios excludentes, étnicos ou lingüísticos. Pareciam estar feitas à imagem e semelhança dos “terroristas bestializados” pelo terrorismo de Estado. Por todas as partes, e nas mais diversas culturas, desenvolveram-se instintos autodestrutivos, individuais e coletivos, muitos deles vinculados a uma violência do desespero. No campo das lutas políticas e sociais, dos partidos e das organizações da sociedade civil, os modelos de corrupção e repressão, de conformismo e de alienação anularam diversos movimentos que, de início, indicavam uma saída aos povos.
Seus líderes foram cooptados ou corrompidos, ou simplesmente se adaptaram a um mundo controlado em que predominam as filosofias individualistas segundo as quais cada um “defende o seu”.
É verdade que, ao mesmo tempo, foram surgindo grandes movimentos como os de Chiapas no México, Seattle nos Estados Unidos, Porto Alegre no Brasil, o outro Davos na Europa, Mombay na Índia e muitos outros, que tentam unir o local e o universal e criam os novos projetos de um mundo livre, eqüitativo e independente que se aproxima da verdadeira democracia, do verdadeiro socialismo e da verdadeira libertação.
Todas as lutas mencionadas, porém,ocupam um espaço pequeno demais no tocante às necessidades da mudança sistêmica e da sobrevivência humana, ameaçada por uma guerra contra os pobres que pode terminar em guerra bacteriológica e nuclear.
Apareceram ao mesmo tempo, por conseguinte, as contradições entre o imperialismo e os países dependentes, neocoloniais e recolonizados; as contradições entre os trabalhadores e o capital, muitas delas mediatizadas e estratificadas; as contradições entre as etnias e as nações-Estado; as contradições entre as potências atômicas e nucleares e entre os próprios integrantes da comunidade imperialista, zelosos de suas zonas de influência e temerosos de perder poder e privilégios. Todas estas e muitas outras contradições se esboçaram em um imperialismo dominante mais ou menos coletivo, que tende a identificar-se com o capitalismo como sistema global. O desfecho das contradições não pareceu assegurar-se no sentido de que um sistema mais
justo e livre do que o sistema capitalista mundial pudesse ser atingido no tempo de uma geração de lutadores políticos, sociais ou revolucionários. Ainda mais, a ameaça à sobrevivência da humanidade fez com que os governantes obrigatoriamente pensassem em uma alternativa ainda mais sinistra, capaz de manter seus privilégios e seu poder: a destruição de uma parte da humanidade para a sobrevivência do resto dela. Este raciocínio levou à imposição paulatina e constante de um regime de “nazismo-cibernético”, com a eliminação de povos inteiros pelo mundo afora, à maneira de Pol-Pot, ou do equivalente aos sete milhões de judeus vitimados pelo nazismo anterior, que agora desponta no campo de concentração e eliminação em que o imperialismo e seus associados converteram a Palestina.
A imoralidade e a criminalidade doentias dos novos dirigentes do sistema, como as dos antigos nazis, combinadas com o conhecimento e o uso que fazem das tecnociências e dos sistemas auto-regulados, adaptativos e criativos, anunciam obscuramente um futuro negro para a humanidade, caso os povos das periferias, e inclusive os das metrópoles, não consigam impor a transição para um sistema de produção e democracia pós-capitalista que assegure a vida humana e a sobrevivência da espécie.
Todas as redefinições do imperialismo de hoje parecem dirigir-se à construção de um império liderado pelos Estados Unidos, seus associados e subordinados, em que é mais provável uma guerra entre as potências nucleares do que uma revolução social, ou do que uma mudança de rota em direção à socialização, democratização e independência real das nações, cidadãos e povos. Deste fato derivam, em parte, as afirmações irresponsáveis de Michael Hart e Antonio Negri no sentido de que seja necessário substituir o conceito de imperialismo pelo conceito de império e o de luta de classes pelo de uma luta da “multidão” contra o “império”. A superficialidade desta interpretação se deve em grande medida a uma conjuntura histórica em que é evidente que a construção do império mundial pelos Estados Unidos ocupou o primeiro plano da cena. Também se deve ao fato evidente de que a luta de classes original e atual tem sido fortemente mediatizada por outras lutas políticas, econômicas, ideológicas e sociais, e de que as organizações que lutaram contra o sistema de dominação e acumulação característico do Capitalismo foram mediatizadas e derrotadas, primeiramente no século XIX, depois no século XX.
No início do século XXI ainda se vive a desorganização das forças alternativas e de suas próprias organizações ou meios para alcançar o socialismo, a democracia, a libertação. O caráter relativamente desestruturado e multitudinário que as forças alternativas ainda apresentam é evidente. Mas, nem do projeto norte-americano de um Império Global, nem da crise mundial das alternativas se pode derivar que, em vez de pensar e agir contra o imperialismo, se deva pensar e agir contra o império, e que, em vez de pensar nas novas organizações da resistência e da organização do poder alternativo, se deva lutar nos termos vagos de um pensamento libertário ou neoanarquista conservador que pretenda enfrentar a multidão desorganizada ao capitalismo mais organizado de toda a História.
A origem da formulação mistificadora de Hart e Negri provém de uma lógica das disjuntivas que geralmente tem sido reacionária. Consiste em pensar que as novas características do imperialismo acabem com o imperialismo, ou que os novos aspectos da luta de classes se expressem em uma luta histórica empreendida pelas multidões – este outro termo que o pensamento conservador e elitista sempre aplicou aos povos que teme agressivamente.
A verdade é que hoje, mais do que nunca, o conceito do imperialismo como uma etapa do capitalismo e da História da humanidade continua sendo um conceito fundamental. Ao articular a História dos impérios com a História das empresas, o conceito de “imperialismo” pôs a descoberto o poder crescente das empresas monopolistas e do capital financeiro. Também reformulou a luta antiimperialista combinando a luta das nações oprimidas com a luta das classes exploradas.
Se hoje estamos assistindo à construção de um império mundial pelo complexo militar-empresarial dos Estados Unidos (e a palavra império lhes parece grata desde a rainha Vitória), tal projeto de Império corresponde às mais avançadas políticas imperialistas e capitalistas: combina a força crescente das megaempresas e das potências, em que se apoiam e de que se servem, com as novas formas de dominação e exploração dos povos e dos trabalhadores.
De fato, o projeto mencionado articula cada vez mais o imperialismo ao capitalismo, até tornar cada um deles incompreensível sem o outro. Ainda mais, permite explorar as contradições na construção do império mundial norte-americano em pugna inevitável com outros impérios dada sua crescente apropriação e dominação de territórios, recursos e populações, bem como o fato de que apareça como o beneficiário principal da nova acumulação original e ampliada de capitais, formulando problemas de insegurança às grandes potências e às potências intermediárias.
A luta contra o imperialismo e o capitalismo, encarada como uma luta pela democracia, pela libertação e pelo socialismo, corresponde, por sua parte, a um fenômeno alternativo de sistemas emergentes, e, tanto por suas tendências naturais como pelas que serão encaminhadas para atingir tais objetivos, pode ter um crescimento exponencial que inclua a própria população dos Estados Unidos, sem mencionar a do resto do mundo. Nesse futuro o exemplo de Cuba, longe de ser “excepcional”, tem características universais que se tornarão cada vez mais evidentes conforme se descubra nela a necessidade ético-política que todo movimento pela libertação, pela democracia e pelo socialismo deve priorizar na organização de seu pensamento e de suas ações.

Revista Tempo - UFF

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Escola primária de meninas e a educação da mulher no Brasil, em meados do século XIX


ESCOLA PRIMÁRIA DE MENINAS – EDUCAÇÃO DA MULHER NO BRASIL


Pouca coisa tenho também a dizer sobre a escola para as meninas. Em geral, no Brasil, pouco se cuida da educação das mulheres, o nível de ensino dado nas escolas femininas é pouquíssimo elevado; mesmo nos pensionatos freqüentados pelas filhas das classes abastadas, todos os professores se queixam de que lhes retiram as alunas justamente na idade em que a inteligência começa a se desenvolver. A maioria das meninas enviadas à escola aí entram com a idade de sete ou oito anos; aos treze ou quatorze são consideradas como tendo terminado os estudos. O casamento as espreita e não tarda a tomá-las. Há exceções, sem dúvida. Alguns pais mais esclarecidos prolongam a permanência no pensionato ou fazem dar instrução em casa até dezessete ou dezoito anos; outros mandam as filhas para o estrangeiro. Habitualmente, porém, salvo uma ou duas matérias bem estudadas, francês e música, a educação das jovens é pouco cuidada e o tom geral da sociedade disso, se ressente. Claramente, na sociedade brasileira há mulheres cuja inteligência recebeu alto grau de cultura; mas a minha afirmação não é menos verdadeira; são meras exceções e nem outra coisa poderia ser com o atual sistema de educação; e as mulheres que o personificam sente amargamente a influência deste sistema sobre a situação que para o seu sexo criam os costumes nacionais.

Efetivamente, nunca conversei com as senhoras brasileiras com quem mais de perto privei no Brasil sem delas receber as mais tristes confidências acerca de sua existência estreita e confinada. Não há uma só mulher brasileira, que, tendo refletido um pouco sobre o assunto, não se saiba condenada a uma vida de repressões e constrangimento. Não podem transpor a porta de sua casa, senão em determinadas condições, sem provocar escândalo. A educação que lhes dão, limitada a um conhecimento sofrível de francês e música, deixa-as na ignorância de uma multidão de questões gerais; o mundo dos livros lhes está fechado, pois é reduzido o número de obras portuguesas que lhes permitem ler, e menor ainda o das obras a seu alcance escritas em outras línguas. Pouca coisa sabem da história de seu próprio país, quase nada do de outras nações, e nem parecem suspeitar que possa haver outro credo religioso além daquele que domina no Brasil; talvez mesmo nunca haja ouvido falar da Reforma. Não imaginam que um oceano de pensamentos se agita fora de seu pequeno mundo e provoca constantemente novas fases na vida dos povos e dos indivíduos. Em suma, além do círculo estreito da existência doméstica, nada existe para elas.

Estávamos um dia numa fazenda, quando avistei um livro em cima de um piano. Um livro é coisa tão rara nos aposentos ocupados pelas famílias que fiquei curiosa em saber qual seria o conteúdo daquele. Era um romance, e, ao virar-lhe as páginas, veio o dono da casa e disse em alta voz que aquela não era uma leitura conveniente para mulheres. – "Aqui está (entregando-me um pequeno volume), uma excelente obra que comprei para minha mulher e minhas filhas". Abri o precioso volulme, era uma espécie de pequeno tratado de moral, cheio de banalidades sentimentais e de frases feitas em que reinava um tom de condescendência e proteção à pobre inteligência feminina, porquanto, apesar de tudo, as mulheres são mães dos homens e exercem um pouco de influência sobre sua educação. Após essa mostra do alimento intelectual que lhes ofereciam, não me poderia admirar que a esposa e as filhas do nosso anfitrião demonstrassem um gosto dos mais moderados pela leitura. Nada impressiona tanto o estrangeiro como essa ausência de livros nas casas brasileiras. Se o pai exerce uma profissão liberal, tem pequena biblioteca de tratados de medicina ou direito; mas não sem vêem os livros espalhados pela casa como objetos de uso constante; não fazem parte das coisas de necessidade corrente. Repito que há exceções; lembro-me de ter encontrado, no quarto de uma jovem senhora cuja família nos dera afetuosa hospitalidade, uma biblioteca bem escolhida das melhores obras de história e literatura, em francês e alemão; mas foi o único exemplo desses que encontramos durante um ano de permanência no Brasil. Mesmo quando as brasileiras receberam os benefícios da instrução, há, em sua existência doméstica, tanta compressão, tão pouco estão em ligação com o mundo exterior, que isso basta para pôr obstáculo a seu desenvolvimento intelectual; seus prazeres são tão mesquinhos e raros como meios de instrução.

Exprimindo essas duas verdades faço-me eco simplesmente de grande número de brasileiros inteligentes que deploram esse estado de coisas, mau e perigoso, sem saber como reformá-lo. E se, dentre os nossos amigos do Brasil, alguns que, baseados nos progressos e transformações que se operam na vida social do Rio de Janeiro, ponham em dúvida a exatidão de minhas asserções, tenho resposta bem simples para dar-lhes: é que não conhecem as condições sociais das pequenas cidades do norte e do interior. Nunca vi em parte alguma, para as pessoas do meu sexo, condição tão triste como a das mulheres dessas pequenas localidades. É uma existência horrivelmente monótona, privada desses prazeres sadios que proporcionam vigor; um sofrimento passivo, entretido, é verdade, mais por falta absoluta de distrações do que por males positivos, mas que nem por isso é menos deplorável; um estado de completa estagnação e inércia.

Além do vício dos métodos de ensino, há também uma ausência de educação doméstica profundamente entristecedora: é a conseqüência do contato incessante com os criados pretos e mais ainda com os negrinhos que existem sempre em quantidade nas casas. Que a baixeza habitual e os vícios dos pretos sejam ou não efeito da escravidão, inegável é que existem; e é estranho ver pessoas, aliás cuidadosas e escrupulosas em tudo o que se refere aos filhos, deixarem-nos constantemente na companhia de seus escravos, vigiados pelos mais velhos e brincando com os moços. Isso prova quanto o hábito nos torna cegos mesmo para os perigos mais evidentes, um estrangeiro vê logo os perniciosos resultados desses contatos com a grosseria e o vício; os pais não o percebem. Na capital, perigos já são menores, pois todos os que conheceram o Rio de Janeiro há quarenta anos são acordes em proclamar que notáveis melhoras se deram nos costumes sociais. Não devo esquecer de dizer que a mais alta autoridade se pronunciou em favor da educação liberal das mulheres. Todos sabem que a instrução das princesas imperiais não foi apenas superintendida, mas mesmo, em parte, ministrada pessoalmente por seu pai.


(Agassiz, Louis. Viagem ao Brasil, 1865 – 1866. p.277-279)
Revista Jangada Brasil

África


África
Henrique Raposo


J. Clark Leith, Why Botswana Prospered
Montreal, McGill-Queen’s University Press, 2005, 150 pp.


Dado que é uma das poucas democracias consolidadas e – relativamente – prósperas de África, o Botswana (1,8 milhões de habitantes) nunca aparece na imprensa ocidental. O Botswana é um factoempírico que não encaixa na narrativa apocalíptica que o Ocidente gosta de reproduzir sobre África. Hoje, depois de quarenta anos a apresentar uma das mais altas taxas de crescimento do mundo, o Botswana já é um middle-incomecountry. O maior factor de crescimento tem sido a riqueza mineral do país (diamantes). Outros países africanos com um subsolo igualmente rico continuam a ser marcados pela pobreza, violência e autoritarismo. O Botswana, como salienta Sipho Seakamela (South African Institute of Internacional Affairs), «continua a ser a excepção na instabilidade que assalta os países africanos ricos em recursos». Para perceber por que razão o Botswana escapou à maldição dos recursos, J. Clark Leith (University of Western Ontario; foi consultor no Ministério das Finanças do Botswana e no Banco Central do Botswana) escreveu WhyBotswana Prospered. A resposta de Leith foi encadeada em três fases. (1) A elite do país geriu de forma prudente a sua riqueza mineral, fazendo investimentos em infra-estruturas e no capital humano. Mas, pergunta Leith, por que razão estas medidas económicas resultaram? (2) Ora, o sucesso económico do Botswana não se deve apenas à perícia técnica na gestão macroeconómica; essa gestão foi possível devido à estabilidade político-institucional garantida pelo sistema político; várias instituições (ex.: Banco Central) criaram a confiança necessária para a actividade das empresas que investiram no Botswana (ex.: a gigante sul-africana dos diamantes, DeBeers). (3) A democracia perse não explica o rápido crescimento económico do Botswana. A democracia triunfou no Botswana porque respeitou a tradição do povo Tswana. Por exemplo, o tradicional fórum de consulta tribal, o Kgotla, continua activo e faz parte do sistema político. Por outras palavras, existe uma coabitação entre a modernidade institucional da democracia de inspiração britânica e a tradição local (mesmo antes do advento da democracia moderna, a cultura tswana já era marcada pela noção de accountability). A história de sucesso do Botswana não resulta da sorte; outros países africanos também tiveram a sorte de encontrar diamantes e outros recursos naturais, e, mesmo assim, continuaram na rota da violência. O sucesso do Botswana deve-se ao seu sistema político e às escolhas da sua elite política. Ou seja, a política pode vencer o fado africano.


John F. Clark, The Failure of Democracy in the Republic of Congo
Boulder, Lynne Rienner Publishers, 2008, 308 pp.


John F. Clark (Universidade Internacional da Florida) apresenta aqui um casestudy sobre o Congo-Brazzaville (República do Congo), o mais pequeno e menos mediático dos Congos. Aliás, podemos dizer que este livro, do ponto de vista metodológico, representa uma vigorosa defesa do case study como método de estudo; Clark defende que a sensibilidade histórica (garantida pelo casestudy e desprezada pelas abordagens parcimoniosas) é a única forma de compreendermos os actores políticos.

O livro procura responder a uma pergunta: por que razão a experiência democrática (1991-1997) falhou na República do Congo? (Depois da guerra civil, o antigo chefe de Estado, Denis Sassou-Nguesso, regressou ao poder de forma não democrática). Na resposta, Clark recusa explicações estruturais para o fracasso da democracia em Brazzaville. Até porque este país detinha alguns bons indicadores de desenvolvimento, dado que Brazzaville era um ponto vital do império francês em África. Clark afirma que a responsabilidade pelo fracasso da democracia neste país assenta na mediocridade e na ganância da elite política. Os dirigentes congoleses encararam o poder como uma forma de enriquecimento pessoal, nomeadamente através do saque da riqueza petrolífera do país. Clark é acutilante na forma como responsabiliza a agência dos actores políticos, recusando desculpabilizar os ditos actores com factores estruturais – supostamente – inelutáveis. Ou seja, a experiência democrática não estava destinada a terminar em guerra civil; a República do Congo não estava predestinada a regressar ao autoritarismo. Sassou-Nguesso teve a oportunidade de seguir um caminho democrático; teve a oportunidade de criar uma reconciliação nacional entre os diversos grupos étnico-religiosos. Porém, Sassou-Nguesso escolheu a via do oportunismo, da manutenção no poder a todo o custo. Sassou-Nguesso optou por este caminho porque teve receio de enfrentar uma competição eleitoral. E, acima de tudo, Sassou-Nguesso manteve-se no trilho do oportunismo porque nunca revelou o patriotismo necessário para reconhecer que o futuro do país não dependia apenas dos desideratos de um único indivíduo.

Se a elite do Botswana – personificada por Seretse Khama – escolheu actuar de forma patriota (a excepção em África), a elite da República do Congo – personificada por Sassou-Nguesso – escolheu o caminho do oportunismo pessoal (a regra em África). O Botswana não estava predestinado ao sucesso. A República do Congo não estava predestinada ao fracasso. O sucesso de Gaborone e o fracasso de Brazzaville resultaram de escolhas políticas feitas de forma consciente. Em política, não existe destino ou predeterminações estruturais.

Instituto Português de Relações Internacionais