O campo, entendido como as faixas de chão distantes dos mais densos aglomerados urbanos, mostra, sob aspecto do relacionamento dos homens entre si e destes com a natureza, nas várias partes do mundo, traços de similaridade. Um dicionário, tomemos o Aurélio , traz em primeiro plano, um significado para o vocábulo sertão: “região agreste, distante das povoações e das terras cultivadas”. Nos mais diversos trópicos e meridianos, há gente vivendo em lugares assim. As condições às quais são submetidas esculpem neles o comportamento, a maneira de ver o mundo. Sem prejuízo do devido respeito para com todas as formas de vida, parece difícil abordar o sertão sem que se recorra ao ser humano como ingrediente, sem prescindir do sertanejo e suas matizes, a começar de sua forma mais original – o indígena.
A família empobrecida submetida à seca do inóspito Nordeste brasileiro, tão bem descrita por Graciliano Ramos, o ribeirinho do Amazonas, o gaúcho embrenhado nos Pampas, o indígena do Altiplano dos Andes, o núcleo cazaque, nômade por natureza, nas estepes da Mongólia, o índio carajá, nas beiradas do Araguaia, o pantaneiro do Mato Grosso do Sul, o aborígene australiano, o agricultor russo, enfim, inumeráveis exemplos de seres humanos que trazem como traço comum a vida de proximidade com a natureza. Não há como dissociar o sertanejo da mãe terra, do meio ambiente que a tudo provê. O respeito às condições ambientais é condição fundamental de sua sobrevivência. Seu relacionamento com o espaço e o tempo traz um compasso peculiar, moldado no compasso próprio de quem tem a exata idéia da pequenez humana diante do mundo.
Não obstante o valor da generalidade, talvez seja pertinente adotar, nesta abordagem, certo afunilamento, de modo a focalizar, tendo como cenário os sertões do Planalto Central, um pouco de nossa história.
Desde as primeiras manobras portuguesas pelo litoral brasileiro, intuiu-se que havia muito chão para o poente, na direção da Linha de Tordesilhas. Largos espaços onde coexistiriam ricas flora e fauna, além de indígenas de diversas nações. Muitos destes, à medida que mantinham contato com os brancos, em obediência à natural postura de preservação da cultura, passaram a recuar para o interior. Sabese, pelos anais da história, que, tempos depois, na esteira do escravagismo, várias incursões exploratórias foram encetadas para o interior do Brasil. Aqui, no centro desse vasto território, sob o silêncio próprio das regiões primitivas, subsistia incólume um mundo diferente do conhecido pelos exploradores.
Sabe-se que esse chão aquém do Rio Grande, e sobretudo aquém do Paranaíba, preenchido por campinas, cerradões e mataria próximas aos veios d’água, enorme diversidade vegetal e animal, se constituía em cenário para algumas nações indígenas.
As penetrações dos bandeirantes em tais espaços se transformavam em verdadeiro aprendizado de sobrevivência, que, não raro, vitimava os exploradores com a morte. Morte pelas febres, pela desnutrição, pelo cansaço, pelas bordunas dos grupos Jê, senhores dos Cerrados. Estes, segundo se lê, seriam nações alienígenas ao tronco TupiGuarani, habilidosos na convivência com as condições do sertão, guerreiros cruéis, na defesa de suas fronteiras. Desses grupos, relatos dão conta da violência na nação Caiapó. Um dos governadores da Província de Goyaz teria dito, em meados do século XVIII sobre esse povo que se tratava do “mais bárbaro e indômito dos quantos produziu a América”. Há quem afirme serem os Caiapós os responsáveis pela redução dos índios Goiá, antes numerosa, a cerca de uma centena de pessoas.
O termo Tapuio talvez represente antítese de Tupi, com os quais se depararam os primeiros visitantes do litoral. TupiTapuio; TapuioTupi. Tupi está para a costa assim como Tapuio está para o sertão. Há quem afirme que os indígenas da nação Carajá seriam exceção aos demais povos Jê, e teriam origem nos povos Tupi. Assim, constituirseiam em povos alheios às nações Jê do Planalto Central. Concentrados no Vale do Araguaia, com língua e cultura próprias, desenvolveram rara habilidade na caça e na pesca. A índole pacífica desses povos teria levado o capitão-mor Antônio Telles, em 1789 a emitir o conceito, fundado na desumana visão de explorador: “moles e patifes”. Tapuios, povo embrutecido do sertão, onde, nas secas, as cigarras soam estridentes; nas águas, rios e grotas rugem ladeira abaixo. Sertão, onde o vento desliza ladeira acima, curvando as copas dos ipês, das caraíbas, das guarirobas. Sertão, ornamentado por descomunais buritis próximos aos veios de água límpida, que acolhe seus cocos; estes depois de amolecidos, alimentam lambaris e piabas. O sertão nunca esteve. O sertão é. Absoluto, numa imobilidade milenar, a não ser em eras geológicas impensáveis, quando talvez tenha sido mar. Esse espaço, até as primeiras pegadas das botas dos exploradores, não era conhecido como sertão em si, posto que a idéia veio em oposição à realidade européia dos descobridores; em contraposição à vida costeira neste país tropical. Sertão: um novo elemento a ser desafiado.
Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhangüera Filho, na dolorosa expedição empreendida em busca das paragens onde estivera com seu pai, contou com um relato exclusivo, do alferes José Peixoto da Silva Braga, entrevistado pelo padre Diogo Soares, em 1734. Bartolomeu, paulista motivado a embrenharse nos sertões, à procura de gentios e de ouro, nutria inimizade pelos emboabas, como eram conhecidos os portugueses; contudo, dependia do concurso destes para a estruturação da comitiva. O alferes Silva Braga acompanhou a expedição até as imediações, segundo Paulo Bertran, do atual Distrito Federal. A partir daí, teria desistido das perambulações, descendo o Tocantins até Belém do Pará.
Os sertões do planalto impuseram severas privações à expedição do Anhangüera Filho. Silva Braga conta que, ainda nas imediações do Rio Mogy, a tropa teria cobrado dele uma resenha da expedição, para se certificarem se, de fato, teria o descobridor domínio da rota a ser empreendida. Bartolomeu, a princípio prometeu explicitála; contudo, percebendo a impaciência dos integrantes, resolveu que não iria prestar contas da resenha prometida, alegando que os emboabas não era gente digna de consideração.
Depois da transposição do Rio Grande, na divisa dos atuais Estados de Minas e São Paulo, os mantimentos começaram a faltar. Daí em diante, por certo trecho, se limitaram a comer o que a espingarda alcançasse: pássaros, macacos, palmitos. Algum mel. Estabelecida a dissensão entre os membros da comitiva, sobretudo porque, a maioria dela era composta por emboabas, odiados pelo Anhangüera, várias desordens se sucederam. Parte dela se deixou ficar de arribada, com o propósito de fazer roças e apurar algum mantimento. A centenas de léguas de São Paulo, a expedição sem orientação geográfica precisa, passaram por padecimentos até então inéditos. Veja o trecho do relato do alferes Silva Braga:
Nesta ocasião demos em umas grandes chapadas com falta de todo o necessário, sem matos nem mantimentos, só sim com bastante córregos em que havia algum peixe; dourados, traíras e piabas, que foram todo o nosso remédio; achamos também algum palmito que chamam jaguaroba, que comíamos assados e ainda que é amargoso, sustenta mais que os demais. Aqui nos começou a gente a desfalecer de todo; morreramnos quarenta e tantas pessoas, entre brancos e negros, ao desamparo, e se pude ficar com vida eu a devo ao meu cavalo que para me montar nele pela nímia fraqueza em que me achava, me era preciso o lançarme primeiro nele de braços levantados sobre o primeiro cupim que encontrava.
Silva Braga, depois de perecer em demasia, sentindo a repulsa e o boicote do Anhangüera, aproveitouse do fato da comitiva se encontrar às margens de um rio que corria para o norte. Resolveu abandonar a expedição.
Neste sítio ouvindo dizer ao cabo [Bartolomeu] que nos ficava já perto do Rio Maranhão, resolvi a deixálo, e rodar rio abaixo buscando alguma terra já povoada para não perecer a fome e sede no meio daqueles matos.
Cumprida arriscadíssima viagem por água, Silva Braga e parte de seus seguidores chegaram exaustos a Belém do Pará, tempos depois. O sertão reinava absoluto.
O fato é que Bartolomeu redescobriu as paragens em que tinha estado com seu pai, o Anhangüera Sênior, há tempos atrás. Surgiu então o Arraial de Santana, às margens das generosas aluviões auríferas do Rio Vermelho. Novas levas de mineradores acorreram aos sertões do Goyazes. Na segunda metade do século XVIII, entretanto, depois que o Arraial de Santana já passara à condição de vila (Villa Boa, em homenagem a Bueno), o ouro começa a declinar. As empresas são cada vez mais onerosas. O prejuízo na mineração e a tributação exorbitante forçaram muitas pessoas a se embrenhar nas roças, enfrentando as precariedades e as ameaças dos gentios.
Entre 1770 e 1780, severa seca reduziu drasticamente a caça, a pesca e a coleta. Com isso, algumas tribos indígenas, que, mesmo experimentadas às precariedades do sertão, resolveram entregarse, famintas. Seguiu-se a criação do Aldeamento de São José de Mossâmedes, que abrigou índios capturados ou entregues, para a catequização à maneira da cultura dos brancos, sob a liderança de d. Damiana da Cunha, uma descendente de Caiapó.
Vila Boa tem, daí em diante um destino de estagnação. Fincada em paragens tão interiores, os governadores e demais funcionários que para lá se dirigiam, em missão oficial, não levavam suas mulheres. No precioso romance Chegou o governador, Bernardo Élis considera:
De qualquer maneira, Vila Boa (Goiás atual) era um mundo maravilhoso, onde se instalara um pólo de civilização lusobrasileira quase totalmente isolado do restante do mundo. Dali à cidade mais próxima, que era Vila Rica, distavam 130 léguas (780 km); das cidades mais próximas da orla litorânea, Rio de Janeiro ou Bahia, distanciavase em 200 léguas ou 1.200 km. No rumo norte, a única povoação era Belém do Pará, distante 400 léguas, e para oeste, o único núcleo de povoação seria Cuiabá, longe 160 léguas (960 km). Entretanto, apesar de tamanhas extensões territoriais, apesar da ausência de estradas ou rios navegáveis, apesar da absoluta falta de meio de transporte, uma vez que só havia o transporte por meio de cavalos e mulas, raríssimos ao tempo, num breve lapso de cinco anos aí se reuniram cerca de 10.000 homens, na maioria escravos, que ali chegaram na sua totalidade levados pelos próprios pés, pois Goiás só conheceu qualquer veículo de rodas em 1820. E o adventício tinha que trazer de um tudo, desde a farinha de mandioca, que na terra nada se produzia, quer de mantimentos, quer de manufatura.
No século XIX reinou a estagnação nos sertões de Goiás. A população, cada vez mais ruralizada, vivia à míngua, sem recursos para produzir nem mercados para comerciar. A agricultura e a pecuária se davam basicamente para a subsistência. Passou a predominar, no meio rural, o trabalho familiar. A produção de excedentes não se constituía na regra – era exceção. Visasse a autosuficiência em alimentos e vestuário, este, constituído de peças artesanais. O gado, percorria solto as ilimitadas campinas à procura de capim e salitre. A população de Goiás passou a tomar gosto pelo mundo sertanejo, entendida como tal a vida incrustada no meio rural. A fazenda goiana, de ordinário, sem titularização adequada consolidavase com base na posse física sobre a terra, vez que as sesmarias eram concedidas a poucos homens. Por outro lado, muitos se acomodaram nos grandes latifúndios, a serem considerados agregados, uma espécie de morador de favor.
A organização sertaneja baseou-se então na pecuária extensiva e na agricultura de subsistência. Os agregados e os fazendeiros acabaram por desenvolver certa proximidade, irmanados forçosamente por um pacto de mútua ajuda, sem que se tornassem nítidos elementos característicos de formação de classes. Na fazenda goiana, em regra, fazendeiros e agregados compartilhavam a rotina e a comida, como se desaparecesse a hierarquia.
O contato com o litoral praticamente desaparecera. Nova maneira de viver a vida foi se consolidando, em respeito às condições do sertão. Para os padrões europeus, segundo consta em determinados relatos, tal comportamento soava como indolente e preguiçoso. Vários viajantes alarmaram-se com a apatia goiana e o marasmo do caboclo. O general Cunha Matos, notável historiador, registrou que, das 60.000 almas que povoavam a Província em seu período de governo, 54.000 viviam na completa ociosidade. Testemunhou ainda enorme quantidade de desocupados a circularem pelas fazendas, levando viola ou espingarda.
Próximo da virada para o século XX, alguma transformação foi sinalizada para o sertão goiano, sobretudo com o advento das cidades do Triângulo Mineiro, embaladas pela linha de ferro Mogiana, que chegou até Araguari, em 1896. Com isso, abriu-se razoável mercado para o gado, que seguia, das fazendas de cria até os invernistas do Triângulo Mineiro e daí para os frigoríficos de São Paulo. O centro consumidor do Sudeste passou a demandar a produção dos sertões de Goiás.
Daí para cá muitas transformações se passaram. Hoje, no Planalto Central, os silvícolas foram quase dizimados ou fugiram para as áreas intocadas do Mato Grosso e do Pará. Pelas chapadas goianas e matogrossenses o agronegócio tomou conta das atividades. Mas o sertão continua em todos nós, soando como a velha música escrita em Vila Boa:
Quando o Pau d’Arco floresce
Fazendo sombras no chão
Meu coração entristece
Saudades lá do sertão
Se lá pudesse voltar
E ver o Rio Araguaia
E ver o índio rolar
Na branca areia da praia...
1 Formada em História, é titular da 14ª Superintendência Regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Revista UFG
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