quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O NASCIMENTO DA MEDICINA SOCIAL


por Heraldo Elias Montarroyos

O NASCIMENTO DA MEDICINA SOCIAL

Segundo Foucault (2008, p.79-98), a Medicina Social já existe no século XVIII. O controle da sociedade sobre os indivíduos não começa pela consciência ou pela ideologia, mas no corpo e pelo corpo. Em outras palavras, o corpo se apresenta como objeto biopolítico. E a Medicina, igualmente, torna-se uma estratégia biopolítica, institucionalizada por força da Soberania do Estado. De acordo com Michel Foucault (ibidem), no capítulo que discute o Nascimento da Medicina Social, há três etapas históricas que delimitam a relação temática Saúde-doença: 1- a fase da Medicina de Estado; 2- da Medicina urbana; 3- e da Medicina da força de trabalho.

Na Alemanha, a Medicina de Estado reflete o fortalecimento da Soberania naquele país, cuja maior preocupação era controlar a morbidade entre os súditos através da contabilidade realizada pelos médicos nos hospitais. O conhecimento sobre os diferentes fenômenos epidêmicos que viessem a eclodir dentro das fronteiras geopolíticas do Soberano torna-se um saber estratégico, biopolítico. Começa, nesse momento histórico, a normalização do ensino médico, através do controle do Estado, que passa a ter o monopólio da regulamentação e da expedição dos diplomas para o exercício legal da carreira de médico. Segundo a análise original de Foucault (ibidem), o médico foi normalizado pelo Estado antes de ser o paciente normalizado pelo médico, como tradicionalmente se pensa. Os funcionários médicos nomeados para cada região, como administradores da saúde, representavam o Soberano dentro de suas fronteiras políticas.

Na França, a Medicina Social foi destinada ao enfrentamento da questão urbana: havia cemitérios no meio da cidade, matadouros, amontoados de favelas e ossuários particulares que ameaçavam a estética e a qualidade de vida da Paris no século XIX. Foi essa a preocupação, aparente, da reforma empreendida por Napoleão III que transformou o espaço da capital com largas avenidas e monumentos a fim de evitar, essencialmente, as aglomerações sociais perigosas.

Ainda no século XVIII, explica Foucault (ibidem), os terrenos de Paris eram possuídos por senhores feudais, pela Igreja, pelas corporações, pelos representantes parlamentares e por herdeiros da aristocracia. Todos eles tinham autonomia e jurisdição próprias. A necessidade de organizar o espaço urbano de Paris se tornou uma necessidade emergencial a partir de 1850, mas poderia ser praticada apenas através de um poder único que fosse hábil na execução das políticas públicas, sem perturbar a tradição urbana e rural da propriedade privada francesa. O processo estatal de higienização do espaço urbano veio, nesse sentido, organizar e disciplinar a localização e o funcionamento dos cemitérios que se tornariam exclusivamente públicos, encerrando a tradição das Igrejas e dos castelos medievais.

O Estado na França do século XIX lutava para acabar com os amontoados de miseráveis, eliminando o medo e angústia da cidade grande, o medo das epidemias, das revoltas, dos esgotos, dos subterrâneos, o medo do desmoronamento dos prédios mal construídos. Inventou-se, nesse período, a quarentena para impedir a circulação de suspeitos portadores de doenças dentro de seus próprios bairros. As novas autoridades sanitárias e epidemiológicas deveriam garantir a vigilância, o esquadrinhamento do espaço controlado, ganhando poder de controle sobre o povo através do exercício de uma verdade verdadeira, ou seja, através da prevenção técnica ou física da doença. Qualquer resistência política contra essa nova forma de dominação, significaria resistência contra uma nova forma de salvação racional em prol da humanidade.

Os administradores da saúde pública relatavam tudo o que viam ao prefeito da cidade. As casas dos pobres eram controladas mais facilmente, onde entravam os inspetores para fazer a desinfecção através da limpeza, aromatização e desobstrução física das vias no interior das favelas. A higiene pública nasce neste contexto. A má circulação da água e do vento como já sugeriram os gregos, eram veículos de patologias. A cidade passa, então, a ser medicalizada a partir dos elementos físicos ambientais. É a Medicina das coisas, das condições de vida, do meio de existência e não das pessoas. Essa relação entre organismo vivo e meio será feita no domínio das Ciências Naturais e da Biomedicina. Emerge a noção de salubridade na Medicina Urbana, que quer dizer, o estado favorável para desenvolver a saúde, estado das coisas, dos meios, dos elementos – em outras palavras, salubridade e insalubridade são noções fundamentais para a Medicina francesa no século XIX.

A terceira direção histórica da Medicina Social aconteceu na Inglaterra, destinada ao atendimento dos pobres e dos trabalhadores. Segundo Foucault (ibidem), o primeiro alvo foi o Estado; depois, foi a cidade; agora o alvo é o trabalhador, que é transformado em objeto de medicalização.

No caso inglês, o pobre jamais poderia ser excluído da cidade porque ele constituía a base do cotidiano. Não havia, até então, correio público, e as correspondências eram transportadas pelos populares, os mesmos que aproveitavam o lixo e os entulhos das vias urbanas. Ainda no século XVIII, as casas não tinham numeração e eram justamente as pessoas do povo que melhor conheciam o espaço urbano porque estavam sempre vagando pela cidade. Eram úteis, escreve Foucault (ibidem).

Mas no século XIX, os pobres desempregados e miseráveis serão transformados em criaturas socialmente perigosas. Além de serem potenciais atores revolucionários contra a Monarquia, a exemplo da Revolução Francesa, os trabalhadores poderiam facilmente disseminar epidemias fatais para a produtividade das fábricas. Dentro desse contexto, a criação do sistema postal e do sistema de carregadores de lixos públicos acabou gerando um paradoxo: trazia o progresso, mas provocava a exclusão social na cidade. Ou seja, a mudança extinguiu uma fonte tradicional de sobrevivência popular, expulsando e não compensando aqueles que até então viviam desse tipo de trabalho. Introduz-se a Modernidade em um setor específico do cotidiano, mas por trás da racionalidade dos serviços, achava-se uma nova forma de exclusão social.

O medo político e sanitário justificou, mais tarde, a divisão de bairros ingleses entre pobres e ricos. Foi decretada a Lei dos Pobres, em 1870, quando o Estado passa a oferecer serviços de assistência e de intervenção coletiva, direcionando seu olhar paternalista para os bairros subalternos. Nessa época, destaca Foucault (ibidem), houve uma série de resistências contrárias à padronização pública. Grupos de dissidência religiosa, de diferentes modos, lutaram contra a medicalização da vida social, reivindicando o direito das pessoas de não passarem, obrigatoriamente, pelo domínio da Medicina oficial. Reivindicavam o direito sobre seu próprio corpo. Lutavam pelo direito de viver, de morrer e de curar suas doenças livremente. Esse desejo de escapar da medicalização autoritária marcou o comportamento de vários grupos religiosos. Na peregrinação à gruta de Lourdes, por exemplo, essa resistência era declarada por meio de uma linguagem teológica.

O NASCIMENTO DO HOSPITAL

De acordo com Foucault (2008, p.99-111), a partir do ano de 1780 o Hospital passa por uma grande reavaliação teórica. Não se limita mais à avaliação puramente arquitetônica, mas se torna objeto de análise funcional e racional. As elites iluministas desejam melhorar a ventilação e a temperatura; separam os doentes que têm febre, das mulheres grávidas à beira do parto; estabelecem, além disso, a roupa branca como sinal de limpeza; separam panos e lençóis; enfim, buscam disciplinar a instituição médica.

O Hospital deve ser, a partir de então, uma máquina de curar. Antes do século XVIII, o Hospital é um lugar paradoxal. O pobre que estava morrendo era o principal objeto dessa instituição, alguém que precisava dos últimos cuidados e do sacramento. No imaginário popular, o hospital era um lugar onde se morria assistido, pelo menos, espiritualmente. O pessoal caridoso do Hospital oferecia a oportunidade da salvação espiritual e não exatamente a cura física. O Hospital também servia como depósito de loucos, devassos, prostitutas e de leprosos. Era público e notório que se tratava também de um espaço produtor de cruel segregação social.

Até o advento do Iluminismo, o médico deveria enfrentar a doença e a Natureza sem possuir conhecimentos sistemáticos do caso que tratava. Dominava a prática médica intuitiva, não racional, não sistematizada, não científica e arbitrária.

No século XVIII, a medicalização do Hospital foi, portanto, a primeira medida iluminista visando eliminar os efeitos negativos e irracionais do local. Deveria ser purificado e ordenado. Desordem significa, nesse contexto, doença mental e desperdício que poderiam ser perigosos para toda sociedade. A desordem financeira também prejudicava a qualidade do hospital. Começa, aqui, a racionalização da administração hospitalar.

A medicalização foi inaugurada curiosamente nos hospitais militares, que eram locais de tráfico constante de mercadorias, de especiarias e de saques trazidos das colônias. Os traficantes se diziam doentes para escapar da alfândega. A partir do século XVII, na França e Inglaterra, obriga-se a inspeção dos cofres dos hospitais, dos marinheiros, médicos e dos boticários, acontecendo, assim, o esquadrinhamento econômico da instituição hospitalar. Preocupação não com a cura, adverte Michel Foucault (ibidem), mas com a desordem. Nota-se, claramente, que a reorganização do Hospital não foi por meio da técnica médica, mas da técnica genuinamente política: a disciplina e a vigilância constante sobre os indivíduos, a fim de submetê-los a uma pirâmide de olhares. No sistema medieval, sabe-se que a disciplina política era uma atividade genérica, confusa, não sistemática e descontinua. A introdução dos mecanismos disciplinares, por meio da Política, vai medicalizar o Hospital, declarando sua normalidade.

Até o século XVIII, a doença é produto da relação do homem com o meio. A doença como sugere Lineu, tem várias espécies, cursos, desenvolvimentos como toda planta. A base das doenças pode refletir a combinação do ar, do fogo, da terra, da alimentação e da água. A partir do Iluminismo, o médico deve intervir não mais na crise do paciente (que faz parte do modelo medieval), mas sim no meio que o circunda. A doença é um produto natural e obedece às leis da Natureza. Nasce, nesse contexto, a filosofia ambientalista do Hospital, visando atender melhor ao paciente. Seus espaços são divididos, e não podem ser uma região sombria, escura e mal cheirosa, Não podem mais concentrar miasmas, nem água podre, nem lixo. Precisam ser ventilados e possuir camas separadas. O Hospital deve ser um local da promoção da cura, não mais da caridade, da salvação espiritual e do descaso.

A soberania do Hospital passa a ser responsabilidade de quem sabe mais, o Médico, aquele que detém o poder e o saber. Novos rituais são instituídos. O punho do paciente recebe, agora, etiquetas de identificação. Ao pé da cama consta o registro diário de acompanhamento, de saída e morte do paciente. Nasce um novo campo de documentação ou arquivologia do poder e do saber registrando, acumulando e sedimentando a autoridade do Hospital. Essa prática deverá ser obrigatória na formação dos novos médicos, agora criaturas soberanas no território do Hospital.

A LUTA PELO PODER NA MEDICINA CARTESIANA

A partir dos anos de 1950, a luta pelo poder na Medicina cartesiana não é mais contra os adversários externos, entre o científico e o popular, entre o medieval e o moderno, mas se dirige, agora, contra si própria, internamente, envolvendo os pares científicos no exercício da prática clínica. Verifica-se, a partir de então, uma luta progressiva dentro do paradigma cartesiano entre o Humanismo e o Tecnologicismo, que são duas vias de acesso ao problema do paciente. Duas maneiras de ligar o saber com o sofrer da pessoa. O Humanismo Cartesiano desenvolve a intuição maquínica como critério de acesso ao interior do paciente. Por analogia, o ser humano é tratado pelo médico de forma semelhante a uma máquina ou autômato, repetindo-se, aqui, as mesmas considerações filosóficas de Descartes (Discurso do Método, Parte V):

[...] De modo algum parecerá isto estranho aos que, sabendo quantos autômatos diferentes ou máquinas móveis pode produzir a indústria dos homens, empregando apenas um número de peças bem reduzido em comparação com a quantidade enorme de ossos, músculos, nervos, artérias, veias, e todas as outras partes de que se compõe o corpo de cada animal, considerarem esse corpo não como uma máquina que tendo sido feita pelas mãos de Deus é incomparavelmente mais bem ordenada do que qualquer das que possam ser inventadas pelos homens [...].

Mais adiante, completa o autor (ibidem):

[...] E, nesse particular, decidira, em especial, demonstrar que, se houvesse máquinas assim, que tivessem os órgãos e a figura de um macaco ou de qualquer outro animal sem razão, nenhum meio teríamos para reconhecer que elas não seriam em tudo da mesma natureza desses animais. Se, ao contrário, houvesse outras que apresentassem semelhanças com os nossos corpos e imitassem tanto nossas ações quanto moralmente fosse possível, teríamos sempre dois meios muito seguros de reconhecer que nem por isso elas seriam verdadeiros homens. Desses meios, o primeiro reside no fato de que jamais poderiam empregar palavras ou outros sinais, compondo-os, como nós o fazemos para transmitir aos outros os nossos pensamentos. De fato, é possível conceber uma máquina construída de tal forma que possa proferir palavras e até proferir algumas a respeito das ações corporais que causem alguma mudança em seus órgãos. Por exemplo, a ser tocada em uma parte determinada, que pergunte o que se lhe pretende dizer; gritar, ao ser tocada uma outra, a qual ferimos, e assim por diante. Isso, porém, não significa que ela possa arranjar as palavras de vários modos para responder ao sentido de tudo o que se disser em sua presença, como mesmo os homens mais embrutecidos o podem fazer.O segundo meio consiste em verificar que, embora tais máquinas pudessem fazer muitas coisas tão bem ou talvez melhor do que alguns de nós, falhariam infalivelmente em algumas outras, pelas quais se descobriria que não agem pelo conhecimento, mas apenas em virtude da disposição de seus órgãos [...].

Adotando a analogia maquínica, o médico desenvolve suas atividades metodicamente, construindo o diagnóstico da doença a partir das informações mais simples visando alcançar o entendimento complexo, começando, portanto, no relativo para depois, terminar no conhecimento universal. Nessa caminhada metódica, são fundamentais a intuição e a dedução das idéias. Segundo Descartes (Regras para Direção do Espírito, III):

Esta evidência e certeza da intuição se exigem não só para as enunciações, como também para qualquer classe de raciocínios. Assim, por exemplo, dada esta conseqüência: 2 e 2 é igual a 3 mais 1, não só é preciso intuir que 2 e 2 são 4, e que 3 e 1 são 4 também, mas além disso, que destas proposições se segue necessariamente aquela terceira; distinguimos portanto, aqui, a intuição intelectual da dedução certa, fato de que nesta se concebe certo movimento ou sucessão, mas na outra, não, além disso, para a dedução não é necessária a evidencia atual, ao passo que a intuição recebe melhor da memória sua certeza; de onde resulta que se pode dizer que aquelas proposições que se seguem imediatamente dos primeiros princípios são conhecidas por um ponto de vista diferente, ora por intuição, e ao contrário, as conclusões remotas, unicamente por dedução.

Explica, textualmente, Descartes (Regras para Direção do Espírito, VI) que não se deve começar os estudos pela investigação das coisas difíceis, mas antes de nos expor a abordar algumas questões determinadas, convém receber, sem distinção, as verdades que, espontaneamente, se ofereçam e depois, pouco a pouco, ver se através dessas verdades se pode deduzir outras, e dessas outras mais outras, e assim sucessivamente. Com a ajuda da enumeração, destaca o autor, poderá ser proferido um juízo certo e seguro sobre a situação estudada.

Em outra regra, de número XI, Descartes recomenda, textualmente, que depois da intuição de algumas proposições simples, se delas tirarmos outra conclusão, é útil percorrê-las por meio de um movimento contínuo do pensamento (e em nenhum lado interrompido), refletindo, portanto, sobre suas mútuas relações, fazendo todo o possível para conceber distintamente várias coisas ao mesmo tempo. É assim que nosso conhecimento se torna muito mais certo e aumenta a capacidade do espírito, como afirma, textualmente, Descartes (ibidem).

1 Modelo analógico

Na Medicina Cartesiana Humanista, o ensino da anatomia na graduação do estudante funda a relação ideal entre médico e corpo do paciente (cf. BASTOS, 2004). Corpo morto, facilidade maior para pegar, dominar, esquadrinhar, através da técnica da dissecação que revela o interior da máquina, sem perturbações psicológicas (ibidem). O cadáver é o primeiro paciente do aluno. Paciente ideal porque permite que seu corpo seja invadido, sem protestar ou criar qualquer problema, aceitando passivamente a sua objetificação (cf. BASTOS, 2006, p. 79). Através da anatomia, o aluno começa a pensar o ser humano através das partes, dividindo o corpo em pedaços cada vez menores, até a estrutura molecular (ibidem, p. 81).

A técnica de observação visual do médico através da ectoscopia acompanha essa prática anatômica inspirada no modelo da máquina. O olhar cartesiano do médico e sua capacidade de fazer hipóteses baseado no bom senso do entendimento maquínico tem como eixo gravitacional a relação epistemológica entre o objeto paciente e o sujeito médico. Mais que um olhar, existe no olho clínico do Humanismo Cartesiano uma visão intuitiva do problema e da solução que só aparece através da maximização do contato humano com o paciente, através de suas informações e manifestações concretas no consultório.

Esse olhar positivista busca controlar as partes problemáticas do indivíduo, e depois sintetizar o diagnóstico, baseado na prova das evidências obtidas por meio da analogia maquínica, onde o cheiro, o toque, a altura da voz, o gemido, o relato, a postura corporal e a intuição do médico são alguns referenciais que podem localizar e abordar o problema físico do paciente.

O diálogo clínico desenvolve um método racional. O médico deve ser capaz de separar o universal de tudo aquilo que é relativo e distinguir, assim, o particular do supersticioso. Inicialmente, há revelações mais simples e relativas proporcionadas pelo paciente. O médico vai conduzir o diálogo no sentido de aumentar as informações através da anamnese. Essa técnica lança para fora do paciente o que tem importância física para o diagnóstico maquínico. Nesse processo de análise, como já argumentou Descartes, a imaginação, os sentidos e a memória atrapalham, provisoriamente, o funcionamento do entendimento racional. Segundo Descartes (Regras para Direção do Espírito,IX):

[...] aqueles artífices que se exercitam em trabalhos delicados, e que estão acostumados a dirigir atentamente o seu olhar sobre cada ponto em particular, adquirem com o costume, a capacidade de distinguir perfeitamente as coisas, por insignificantes e sutis, que sejam; também aqueles que nunca distraem o pensamento com vários objetos de uma vez, mas que o ocupam completamente na consideração das coisas mais simples e fáceis tornam-se perspicazes.

2 O modelo tecnológico

O Tecnologicismo Cartesiano defende, por outro lado, o uso extremo da racionalidade instrumental das máquinas, através de exames especializados, objetivando, do mesmo modo, ter acesso ao problema físico do corpo do paciente. A partir do desenvolvimento dos computadores, e da tecnologia médica digital, o discurso da tecnologização recomenda que o médico deve possuir dados objetivos e aplicar os métodos científicos, compatibilizando esses dados clínicos com o saber universal da Saúde-doença, através de exames detalhados do corpo, não mais através da intuição.

Além do processo da cientificização da prática do médico dentro do Hospital, há também um processo paralelo de economização (BASTOS, 2006, cap. 1), ou seja, o médico deve saber identificar e gerenciar os custos e benefícios de cada tratamento, saber administrar a sua clínica como empresa; gerir pessoas; ser racional; pensar no lucro e até mesmo no prejuízo dos atendimentos gratuitos, quando for extrapolada a quota social de atendimento.

A fórmula informação-tecnologia, na qual a MBE [Medicina Baseada em Evidência] se baseia, seria incompleta, uma vez que a tecnologia é um dos produtos (mas não o único) de um processo de produção peculiar denominado ciência, e a informação é uma das fases intermediárias desse ciclo produtivo. Para Almeida Filho, a MBE, ao se calcar no paradigma cartesiano, não é capaz de dar conta da complexidade do campo de intervenção em saúde (BASTOS, p. 53)

Na década de 1980, existem, portanto, dois extremos éticos que representam fontes de conflito na comunidade médica cartesiana: a sensibilidade e a tecnologicidade. Um extremo defende a observação demorada no atendimento, a sensibilidade do médico, a personalização do atendimento e a intuição racional operante por meio da analogia maquínica. O outro extremo defende a máxima objetividade, tecnicidade e eficiência, onde o tempo deve ser protegido do desperdício provocado pelas especulações e relativismos do paciente. Os dois discursos cartesianos têm a mesma origem: a visão maquínica do corpo que pode funcionar bem ou mal fisicamente, onde a doença é um somatório ou síntese dos problemas que são descobertos, analiticamente, através do estudo das partes.

O corpo maquínico – do qual a medicina moderna e sua continuação pós-moderna tratam – é um objeto de discurso do campo disciplinar médico. A construção dos objetos de discurso não tem nada de natural. O discurso científico pressupõe caminhos retóricos em que cada afirmação científica feita demanda apoio de outras, numa sucessão de controvérsias [...] Em virtude das controvérsias é que as verdades científicas são mutáveis [...] (BASTOS, p. 30)

No paradigma cartesiano, os tecnologicistas querem radicalizar a experiência médico-paciente em favor do experimento tecnológico impessoal por meio dos instrumentos laboratoriais. A abordagem experimental é importante para padronizar, com eficiência, os procedimentos de combate à doença. Os Humanistas cartesianos, por outro lado, desejam valorizar o contato pessoal com o paciente, investem na conversação, e buscam conhecer o problema desenvolvendo um processo de exposição dos valores, dos traumas, das percepções que o paciente é constituído; caminhando metodicamente no sentido de promover a separação analítica das partes, e depois, alcançar a síntese, limpando os relativismos da pessoa para depois atingir a clarividência da certeza sobre as causas da doença. Esse método analógico é eficaz para os Cartesianos clássicos, mas ineficiente para os Neocartesianos.

Segundo Bastos (2004) a crise da Medicina ocidental (leia-se neste estudo, Medicina Cartesiana) reflete a oposição entre o conhecimento universal do Médico versus a prática clínica do cotidiano. Nessa dialética, emerge o conflito. Pacientes e médicos refletem essa dialética do Poder no seu encontro crítico, envolvendo a Soberania, que confere autoridade social máxima para o médico, e a autonomia democrática, que, por sua vez, reivindica para o paciente maior controle e participação no processo do cuidar de si.

A Medicina Baseada em Evidência (MBE) surge na década de 1980 na Inglaterra. Refuta o paradigma tradicional, que chamamos aqui de Cartesianismo Clássico, centralizado na figura do médico sempre imaginado como máquina do saber. Para os neocartesianos, o médico é um gerenciador das informações que são produzidas tecnologicamente, através das máquinas reais. Dentro desse novo subparadigma cartesiano, o médico é uma máquina de gerenciamento do saber, do poder e da verdade, usando aqui a linha de pensamento de Michel Foucault (ibidem). A Tecnologia ganha poder. O médico, nesse quadro, passa a ser mediador entre a máquina e o Paciente. No modelo clássico, o médico é o produtor do conhecimento analógico.

Existe, por outro lado, uma corrente intelectual na Inglaterra, Nova Zelândia e Austrália onde o diagnóstico clínico é derivado da interpretação do médico sobre a fala do paciente. É a chamada Medicina Baseada em Narrativas (MBN). Nesse paradigma adversário, a doença e a dor dependem das representações humanas (BASTOS, 2006). Obviamente, o modelo cartesiano não atribui valor científico aos elementos não lógicos, antropológicos, simbólicos e psicológicos dessa corrente. Todavia, antropólogos clássicos, do início do século XX, como Marcel Mauss, já mostraram que a dor é inventada culturalmente para simbolizar a perda de alguém que morre. Esse conteúdo empírico para os cartesianos em geral são relativismos e superstições que somente atrapalham o entendimento racional dos fatos.

DIMENSÃO POLÍTICA

A história da Medicina Cartesiana apresenta uma luta constante entre a Soberania do Médico e a Autonomia do paciente. A soberania se funda na centralização do poder e do saber, onde a Clínica, o Hospital e a Academia são lugares nobres do exercício da superioridade hierárquica e da padronização dos corpos. No modelo cartesiano clássico, o médico tem grande poder para formular o quadro clínico do paciente por meio da analogia. No novo modelo, a tecnologia passa a dominar a produção artificial do saber e, aos poucos, é institucionalizada a soberania instrumental na relação médico-paciente. Em contraposição, a autonomia do sujeito busca a descentralização do poder e a máxima liberdade de atuação da pessoa na escolha de seu próprio destino. A liberdade é reivindicada juntamente com a participação direta do cidadão na aquisição das informações vitais.

Historicamente, a relação entre Soberania e Autonomia, envolvendo Médico e Paciente, gira em torno de um dilema social: - o médico deve ter soberania máxima para decidir o destino do paciente‽ Ou seria melhor o contrário, o paciente é quem deve dispor do poder absoluto para decidir sobre seu destino biológico‽ No cotidiano, esse dilema é resolvido de muitas maneiras. Algumas denominações religiosas não autorizam a transfusão de sangue; outras igrejas recusam o aborto, independentemente da justificativa legal; povos indígenas, por sua vez, não aceitam as regras do Hospital do branco; na legislação brasileira, o médico tem soberania absoluta para decidir a intervenção cirúrgica de emergência, mas não possui esse mesmo poder quando o cidadão doente se encontra lúcido e esteja acompanhado de seus responsáveis; em outras situações, também, o médico não possui soberania para fazer cirurgia na criança, entretanto, os pais têm esse poder soberano, mesmo quando a criança não aceita a sua própria internação no hospital.

A pesquisa dessa relação de poder ao longo da História, entre Autonomia e Soberania, conforme sugere Michel Foucault (ibidem), deve descrever o poder nas extremidades do Todo social, observando as instituições locais e regionais do cotidiano. É importante descrever as práticas reais do poder, sua face externa, e assim descobrir seus objetos e sujeitos, seus alvos de aplicação e efeitos. Em outras palavras, é preciso descrever como surge a relação entre dominantes e dominados, considerando que o poder circula e está sempre em movimento passando pela existência dos indivíduos que funcionam como microrreceptores e microtransmissores do poder. A análise ascendente propicia a observação das técnicas e dos procedimentos práticos do cotidiano, mostrando que a tradição reforça ou resiste politicamente ao sistema de poder da Medicina e do Estado.

CONCLUSÃO

O programa de pesquisa tridimensional da Medicina Cartesiana apresenta uma ontologia política, uma metodologia histórica e uma teoria epistemológica. A ontologia ou filosofia geral do programa de pesquisa aponta na direção do poder. Apresenta como tese política a certeza de que a História da Medicina Cartesiana é uma luta constante entre dominação e resistência, envolvendo atores sociais diversos na relação de poder e saber: Estado, médicos, pacientes e ordenamentos não estatais.

A metodologia do programa de pesquisa aponta na direção da verdade. A partir do modelo de Thomas Kuhn, em seu livro A Estrutura da Revolução Científica, sabe-se que todo paradigma é uma comunidade de valores e de procedimentos. Normalmente, no seu interior, existem subgrupos disputando a hegemonia do saber. Até certo ponto, essa disputa é saudável para o progresso do paradigma, entretanto, pode resultar numa situação extraordinária incômoda, originando um novo paradigma dissidente. No caso específico do Cartesianismo, até o presente momento, domina a sensação de que ele é um bloco homogêneo e ultrapassado, quando na realidade, argumentamos, de forma inédita, que o cartesianismo é um paradigma instável, e reflete, agora, o avanço contemporâneo da ideologia da Medicina Baseada em Evidências (Tecnológicas).

A filosofia cartesiana é facilmente encontrada no cotidiano hospitalar. No modelo clássico, o médico busca o problema da máquina humana através de um processo demorado de investigação, orientado pela intuição analógica que é reconhecida como um método eficaz de pesquisa do corpo. No sistema neoclássico, por outro lado, o médico aborda o problema da máquina humana através de um processo objetivista, baseado na crença tecnológica que deverá ser mais eficaz e eficiente. Nesse aspecto, há uma sofisticação científica e econômica que o modelo clássico não contém na sua estrutura, digamos, cientificamente artesanal de abordagem do paciente.

Do ponto de vista epistemológico, existem duas fontes de conhecimento na relação médico-paciente que se referem à dimensão do saber: a analogia e a tecnologia. No modelo analógico, a investigação do corpo é comandada pela intuição de que as partes constituem uma sofisticada máquina humana. Ganha destaque a evidência analógica da doença e da saúde. No modelo da Tecnologia, por outro lado, a pesquisa do problema é dirigida pela informação produzida pelas máquinas reais. Ganha popularidade a evidência tecnológica.

REFERÊNCIA

BASTOS, Liana. Corpo e Subjetividade na Medicina: impasses e paradoxos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004.

DESCARTES, René. Discurso do Método & Regras para a Direção do Espírito. São Paulo: Martin Claret, 2003.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2008.

KUHN, Thomas. A Estrutura da Revolução Científica. São Paulo: Perspectiva, 2003.

LLOYD, Crhistopher. Estruturas da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahaar Editores, 1995.

[1] Professor Adjunto 2 do Campus de Marabá (UFPA); Filósofo e Cientista Político; Especialista em História da Amazônia. E-mail: elias@ufpa.br

Revista História e-História

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