terça-feira, 6 de outubro de 2009

A França Antártica, o corso, a conquista e a "peçonha luterana"


Maria Fernanda B. Bicalho

Departamento de História – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia – UFF – 24210-380 – Niterói – RJ – Brasil. E-mail: mfbicalho@uol.com.br.


"Lexpérience brésilienne de la France, qui sétend à tout le XVIe siècle, définit donc dans ses moindres linéaments un certain type de colonisation et en fixe par avance les limites historiques. Mais limportance du Brésil ne tient pas seulement au fait quil assigne aux colonisateurs futurs un cadre daction et toute une série de contraintes. Linfluence dun tel modèle déborde de domaine de la géopolitique pour embrasser plus largement lhistoire culturelle"

(LESTRINGANT, Frank. Le Huguenot e le Sauvage. Paris: Aux Amateurs de Livres, 1990, p. 29).


Os relatos e descrições lusas da Baía da Guanabara ao longo do século XVI são testemunhos significativos para a compreensão da mentalidade e do empenho colonizador na região. Assim como as cartas e ordens régias, provisões, e toda sorte de correspondência oficial, permitem uma apreensão específica da experiência e do contato com o novo espaço a ser desbravado e ordenado. Aliada à evocação da natureza – a beleza da paisagem, a formosura da enseada emoldurada por altas serranias, a temperatura amena, a riqueza e fertilidade do solo, a abundância de gêneros –, refletiam uma preocupação com a intervenção estratégica, militar e urbana na região. Enunciavam o projeto de fortificar o território para a segurança e afirmação definitiva da presença portuguesa no centro sul da América, ponto estratégico de defesa de sua hegemonia sobre mares desde sempre tão infestados de piratas e corsários, sobretudo franceses.

Na carta que Tomé de Souza escrevera ao rei em junho de 1553, enviando notícias das vilas e povoações que visitara na costa do Brasil, pode-se perceber uma profunda admiração pelas riquezas naturais que emolduravam a Baía da Guanabara, somada à precaução e aos cuidados necessários diante do intenso assédio dos franceses:

"[...] tudo é graça o que desse se pode dizer, senão que pinte quem quiser como deseje um rio, e isso tem este de Janeiro. Parece-me que V. A. deve mandar fazer ali uma povoação honrada e boa, porque já nesta costa não há rio em que entrem Franceses senão neste."1

Em correspondência anterior, datada de julho de 1551, o mesmo governador se referia àquela região como "a maior escala de corsários".2

Em 1560, no calor da guerra com os franceses, o padre Manuel da Nóbrega, em carta ao Cardeal Infante D. Henrique, endossava a necessidade de

"povoar-se o Rio de Janeiro e fazer nele outra cidade como a da Bahia, porque com ela ficará tudo guardado, assim esta capitania de São Vicente como a do Espírito Santo que agora estão bem fracas, e os franceses lançados de todo fora, e os índios se poderão melhor sujeitar. E, para isso, mandar mais moradores do que soldados".3

Podemos perceber nas palavras do jesuíta a solidariedade entre Fé e Império, que caracterizou a bifrontalidade do processo colonizador português, calcado, entre outras estratégias, numa política urbanizadora da Coroa em terras ultramarinas. Nesse sentido, a fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro se fez sob o signo da disputa do território – e de suas riquezas – por portugueses e franceses, católicos e protestantes, estes últimos representados por homens e mulheres que projetaram suas vidas – e esperanças – na França Antártica.

Esse trabalho tem como objetivo pensar de que forma a França Antártica se constituiu numa ameaça igualmente bifronte ao empenho colonizador português. Em outras palavras, de que maneira suas possíveis leituras pela historiografia, ou a leitura de diferentes conjuntos documentais podem iluminar e trazer ao centro do debate historiográfico questões fundamentais não só para a compreensão do processo de expansão ultramarina portuguesa, como a aliança entre Fé e Império, que a marcou profundamente, mas, principalmente, temas centrais para o entendimento da modernidade européia, ou seja, da história dos tempos modernos na Europa e no Atlântico-Sul.

Trabalharei de forma muito sucinta com uma análise historiográfica e documental de dois desses temas: um deles é o corso; o outro, a ação dos jesuítas na defesa da fé católica contra o gentilismo e o protestantismo.



Villegagnon e a França Antártica

Em novembro de 1555 três navios franceses sob o comando por Nicolas Durand de Villegagnon, nobre cavaleiro da Ordem de Malta, chegaram à Baía da Guanabara com o intuito de fundar uma colônia. Havia muito que embarcações francesas navegavam por aquelas bandas, realizando o escambo com as populações indígenas, embarcando para a Europa grandes quantidades de pau-brasil. O projeto de fundação da França Antártica tinha o apoio de Henrique II, Rei de França, de Gaspar de Coligny, Almirante da Marinha Real, do Duque de Guise, cardeal de Lorena, e de comerciantes e armadores franceses. Um dos objetivos era garantir à França uma parcela do mercado de especiarias monopolizado pelos portugueses.

Os franceses – traficantes de especiarias e negociantes de pau-brasil – percorreram desde os primeiros tempos o litoral da América portuguesa. Expedições anteriores haviam deixado alguns homens, conhecidos por truchements, ou seja, intérpretes, entre os indígenas, com os quais faziam alianças, servindo de intermediários para o negócio das especiarias. A expedição de Villegagnon tinha projetos mais duradouros, embora possa ser inserida no mesmo movimento de disputa pelo comércio ultramarino. Eram cerca de 600 colonos, entre mercenários e aventureiros. Entre eles, encontrava-se um ministro católico, André Thevet, que mais tarde escreveria um dos relatos sobre aquela experiência.4

O lugar escolhido para se estabelecerem não foi o continente, mas uma ilha, que ficou conhecida como de Villegagnon. Ali aplainaram o terreno, levantaram casas, fizeram praças, uma casa de oração e um refeitório comum. Para defendê-la construíram um forte, que recebeu o nome do Almirante e chefe da Marinha francesa, Coligny. Não tiveram maiores dificuldades em conquistar a cumplicidade dos índios tamoios da região, que contribuíram no abastecimento de água e de alimentos aos habitantes da ilha, além de serem utilizados como mão-de-obra nas edificações. Esta cumplicidade transformou-se em mútua aliança guerreira, quer contra tribos inimigas, quer contra os portugueses.

No entanto, as dificuldades de tal empreendimento logo se fizeram sentir. Além das doenças, das péssimas condições de alimentação e da precariedade da vida material no interior da colônia, Villegagnon submetia os colonos a uma severa disciplina. Proibia o contato com mulheres indígenas, prescrevendo o casamento de acordo com os padrões religiosos, o que correspondia à sua posição de cavaleiro da Ordem de Malta, tendo feito voto de pobreza e castidade. Grande era a deserção de homens para o continente, onde passavam a viver entre os nativos e à sua moda, enfraquecendo a capacidade de defesa do forte, contribuindo para o malogro do projeto.

Por outro lado, a situação da França não era das melhores. Envolvido em guerras externas e lutas internas entre católicos e protestantes – que se refletiam no próprio governo, na medida em que o Duque de Guise era católico, enquanto que Coligny era simpático à causa protestante – Henrique II desinteressou-se pela França Antártica. O mesmo aconteceu com os comerciantes e armadores que financiaram o projeto.

Diante das dificuldades, Villegagnon enviou seu sobrinho, Bois-le-Comte de volta à Europa, a fim de conseguir auxílio. Nova expedição fora então organizada em França, tendo chegado à baía da Guanabara em março de 1557. Desta vez o perfil dos colonos era um tanto diferente. Muitos eram protestantes seguidores de Calvino e de Lutero, e fugiam da perseguição católica em seu país de origem, ansiando por estabelecer no Novo Mundo uma comunidade na qual pudessem viver em paz, e de acordo com sua crença. Dentre eles achavam-se Jean de Léry, que escreveria mais tarde Viagem à Terra do Brasil,5 e Jean Cointá, senhor de Bolés. Voltaremos em breve a essa história.


Corso francês

A perspectiva do corso é a que ilumina a fina análise de Paulo Knauss de Mendonça sobre o estabelecimento da França Antártica, no livro O Rio de Janeiro da Pacificação. Franceses e portugueses na disputa colonial. Ao defender a especificidade da colonização ibérica, relaciona-a a uma posição exclusivista, expressa, sobretudo, no Tratado de Tordesilhas e na conseqüente política de mare clausum. No estabelecimento da França Antártica, a seu ver,

"a ação dos armadores franceses dever ser entendida como uma contestação ao monopólio comercial ibérico em defesa de uma política de mare liberum (mar livre) por parte dos excluídos da partilha papal de 1494 como a França, (...) cuja postura em defesa da liberalização dos mares estimulou a atuação, nem tanto de piratas, mas, especialmente, de corsários."6

A pirataria e o corso existem desde o mundo antigo. Durante a Idade Média, os atos de rapina praticados por muçulmanos contra cidades e embarcações cristãs marcaram o cotidiano das populações e da navegação européia no Mediterrâneo, submetendo-o a um permanente clima de terror e pânico. Sob o espírito das Cruzadas e da Reconquista, com o pretexto da guerra santa e da luta contra os infiéis, os europeus protagonizaram, por sua vez, ações de corso e pirataria. Por meio da pilhagem de portos e barcos islâmicos, chegaram a conquistar rotas de escoamento de mercadorias provenientes da África, Índia e Extremo Oriente, controladas até então pelos mulçumanos.

No entanto, a expansão portuguesa deslocou as rotas comerciais para o Atlântico e para o Índico, inaugurando um novo e mais amplo espaço de ações de pilhagem, inclusive entre cristãos. A partir de então, o recrudescimento da violência marítima levou a uma maior delimitação das fronteiras entre a pirataria e o corso. Enquanto a primeira dizia respeito à ação de indivíduos que atuavam sozinhos ou em grupos, sem qualquer respaldo oficial, o corso era um empreendimento planejado, inseria-se num contexto de tensão, de disputa ou de guerra entre as monarquias européias, e recebia o aval dos governantes7.

O trabalho de Paulo Knauss tem o mérito, entre outros, de desnaturalizar o que ele próprio chama de discurso petrificado da historiografia sobre a experiência da França Antártica, que não consegue ultrapassar os limites das análises consagradas do século XIX, ou seja, de autores como Robert Southey, Varnhagen, Paul Gaffarel e Arthur Heulhard8. De acordo com o autor, o que essa historiografia

"demonstra é que a ocupação francesa se constituía em uma ameaça externa ao domínio colonial português. Desta maneira podemos postular a caracterização da ocupação francesa – para os autores em estudo – como conflito militar, colocando-se a questão religiosa, que surge em torno do episódio posterior, num segundo plano. É esse aspecto que abre o flanco para a posterior fundação da temática acerca das invasões ou da presença estrangeira".9

Knauss vê nos historiadores que se dedicaram ao tema uma forte associação da experiência da França Antártica à figura de Villegagnon, o que demonstra a valorização bélico-militar dos acontecimentos. Na historiografia luso-brasileira surge ainda mais evidente a associação da empresa francesa à idéia de ação militar, privilegiando a temática da invasão. Nessa perspectiva, o resgate da região pelos súditos da Coroa lusitana é invariavelmente festejado como feito heróico, devido à bravura e determinação dos portugueses.

A minha hipótese aqui é que a visão de feito heróico coadunava-se ao espírito que presidiu a conquista da América pelos portugueses. A estes – no caso da Guanabara, provenientes do Reino, das ilhas atlânticas e de outras capitanias, como Bahia e São Vicente – couberam os espólios da guerra e as mercês régias que, reconhecendo-os e confirmando-os como protagonistas de um ato de conquista, permitiram-lhes fixarem-se na terra, ocuparem postos e cargos na sua administração e governo, investirem na produção açucareira e no desenvolvimento do comércio.

Guerra Viva

Trabalhos recentes na historiografia, tanto portuguesa, quanto brasileira, vêm analisando a expansão ultramarina como um processo baseado em valores e práticas do Antigo Regime europeu – entre os quais, a justiça distributiva e a mercê remuneratória – uma vez que a conquista de novos territórios abriu um novo campo de possibilidades de prestação de serviços à monarquia e de remuneração dos mesmos pela Coroa10. Sobre a conquista do Rio de Janeiro nos séculos XVI, podem ser citados os estudos de João Fragoso, nos quais autor discute a formação de suas elites senhoriais a partir da dinâmica de práticas e de instituições regidas pelo ideário da conquista, pelo sistema de mercês, pelo desempenho de cargos administrativos e pelo exercício do poder municipal11.

Em um de seus artigos, Fragoso remete-se à participação, em 1560, dos capitães-mores de São Paulo Braz Cubas e Jorge Ferreira na conquista do Rio. Este último, num pedido de sesmaria, de 1573, declarava que "veio [ao Rio] por chamado do Governador Mem de Sá a tomar a fortaleza do Villegaignon aos franceses e tamoios com muita (...) gente e mantimentos; e armas com seus filhos e netos e cunhados, e parentes e amigos". Em 1575, seria a vez do capitão-mor de São Vicente, Jerônimo Leitão, chegar à Guanabara no comando de uma força militar paulista composta por 400 portugueses e 700 índios. Segundo o autor, esses homens aportaram na Guanabara não só com "suas pessoas", mas também com cabedais, parentes, criados, escravos e índios flecheiros. André de Leão declarava, em 1566, que fora ao Rio sob as ordens de Estácio de Sá, "em uma canoa sua, equipada de índios às suas custas". Em posterior pedido de sesmaria, Antônio de Mariz, antigo vereador em São Paulo, que também acompanhara Estácio de Sá, declarava o mesmo. Nesse sentido, a conquista do Rio de Janeiro contara com o apoio de moradores-vassalos de diferentes partes da América, das ilhas e do Reino que, ao disponibilizarem suas vidas e fazendas na guerra contra índios e franceses, esperavam do rei, em troca, reconhecimento e mercês: em terras, comendas, cargos, ofícios e privilégios. Segundo Fragoso,

"(...) a maneira pela qual o Rio de Janeiro fora conquistado deu margem a fenômenos que esclarecem alguns dos traços da sociedade colonial da região e de sua elite: a formação de redes políticas entre segmentos das elites regionais; a constituição de uma nobreza da terra baseada na conquista; e a sua interferência no governo da cidade (...)".12

No entanto, o autor alerta-nos, ainda, para as reciprocidades entre esses homens, suas famílias e suas clientelas, e as populações indígenas:

"Para este assunto, basta lembrar que, a exemplo de São Paulo e de Pernambuco, algumas das melhores famílias do Rio casaram seus rebentos com descendentes de 'principais indígenas. Este fora o caso de Gonçalo Correia de Sá, filho do Governador do Rio, Salvador Correia de Sá. Ou ainda de um do Capitão Gaspar Vaz, que esposou a filha de Araribóia, um dos principais líderes indígenas aliados dos lusos na conquista do Rio. (...) Por meio destas negociações, conseguiam-se, entre outras coisas, flecheiros e, com isto, os fidalgos dos trópicos ampliavam suas bases guerreiras."13

Analisando o ethos da nobreza em Portugal, o historiador Nuno Gonçalo Monteiro afirma que ao longo do Antigo Regime, apesar da "proclamada equiparação ou preferência das letras às armas, estas nunca deixaram de ser privilegiadas nos imaginários nobiliárquicos", o que o leva a concluir que "os serviços feitos na 'guerra viva nunca tiveram equivalente". Chama a atenção para três movimentos, a seu ver, fundamentais na formação da nobreza lusitana: a sustentação e a defesa da monarquia pelas armas, na guerra viva; o caráter fundador dessas ações; e o pacto que daí poderia se afirmar entre a nobreza – os conquistadores – e a monarquia14.

O que quero defender aqui é que encontramos essas três dimensões, num outro patamar, também no ato de conquista e de reconquista na América. E, nesse sentido, a conquista da Guanabara foi fundamental, devido ao seu caráter fundador. Exemplo disso é a reconstrução da sua memória na solicitação feita a D. Pedro, em 1678, pelos oficiais da câmara, pedindo-lhe que os "moradores naturais do Estado do Brasil, sendo idôneos" fossem preferidos aos reinóis nos postos de guerra, ofícios, conezias e dignidades que vagassem naquele Estado. Argumentavam que

"nossos pais e avós naturais, que foram desse Reino, Vossa Alteza os mandou em seu serviço à povoação deste Estado, depois de o conquistarmos, de justiça deve Vossa Alteza preferir para o servirmos em os lugares dele, e este maior merecimento não deve ser a causa de nossa pena, nem estorvo para deixarmos de mandar a nossos filhos com tantos riscos, e dispêndios a servirem a V. A. nesse Reino, e neste Estado, como vassalos naturais de V. A."15

Em contrapartida a demonstrações de empenho e vassalagem na manutenção e na defesa dos interesses do Rei de Portugal – e dos seus próprios, pois muitas vezes os dois andavam em consonância –, os filhos e netos dos conquistadores da Guanabara reivindicavam para si uma série de distinções e um acesso privilegiado ao governo da conquista. Ao retribuir os feitos de seus vassalos, a Coroa reafirmava o pacto político que os unia a si própria16. A partir desses valores, noções e práticas do Antigo Regime – e que tinham na justiça distributiva ou na economia das mercês sua lógica fundadora – os conquistadores do Rio de Janeiro – assim como seus filhos e netos – disponibilizavam suas vidas e fazendas em prol de uma causa que não era apenas sua ou dos grupos que representavam, tornando-se, enquanto vassalos do Rei de Portugal, agentes da fundação e da coesão do Império português17. Nesse sentido, a memória da conquista da terra e expulsão dos franceses da Guanabara se constituiu em ato heróico dos portugueses em plena guerra viva.

Guerra Santa

Porém, voltando ao livro de Paulo Knauss – com o qual venho dialogando – no que se refere à gestação do projeto da França Antártica, o autor distingue uma outra interpretação, além daquela em que o empreendimento é visto como projeto pessoal de Villegagnon (cf. Arthur Heulhard), com o apoio da Coroa francesa. Essa segunda interpretação baseia-se na visão da França Antártica como, essencialmente, um projeto protestante/huguenote (cf. Southey, Varnhagen, Gaffarel). E é justamente a presença protestante que justifica, mais uma vez, a reação portuguesa. Privilegia-se a idéia de uma guerra santa. É nesse ponto que a análise historiográfica novamente traduz o próprio discurso da época – expresso em fontes e documentos sobre o episódio – fazendo ressurgir o tema da Reconquista e da guerra contra hereges/huguenotes e gentios, seus aliados. Em relação a estes últimos, sua resistência levaria à deflagração da guerra justa, um dos baluartes da conquista ibérica na América, assim como na África. Ambas as investidas foram amplamente legitimadas pelos jesuítas, que tiveram na expulsão dos franceses, na submissão e pacificação dos índios e na fundação da cidade do Rio de Janeiro uma participação fundamental. Não sem serem obsequiados pela valorosa ajuda de São Sebastião, como nos contam inúmeros relatos de época, entre eles o do padre Jácome Monteiro, escrito por volta de 1610:

"da barra, uma légua para banda do sul, fica a cidade do Rio de Janeiro, da invocação de S. Sebastião, porque quando se conquistou dos Franceses e hereges, e Tamoio, gentio cruel, visivelmente se viu ao glorioso Mártir ajudar aos Nossos, o qual milagre se prega todos os anos."18

Podemos inferir que a guerra santa contra a heresia e o paganismo, conduzida por portugueses no além-mar, demonstrou ser inevitável que a controvérsia colonial e a disputa religiosa estivessem estreitamente vinculadas na conquista e na montagem de mecanismos de dominação no Novo Mundo. Mais do que simples coadjuvantes, os jesuítas foram atores fundamentais na implementação do projeto expansionista luso, tal qual o definiu D. João III a Tomé de Souza, ao afirmar que: "a principal coisa que me moveu a povoar as ditas terras do Brasil foi para que a gente dela se convertesse à nossa santa fé católica"19.

Afinal, Fé e Império, simbolizados pela cruz e pela a coroa estabeleceram uma aliança indissolúvel na conquista e colonização ultramarinas.

Concorrendo com os jesuítas na disputa pelas almas dos gentios, os franceses não punham em risco apenas as possessões portuguesas na América e suas especiarias, mas, principalmente, todo o empenho missionário católico. Inúmeras são as alusões ao perigo de disseminação do calvinismo entre o gentio. Segundo o Padre Manuel da Nóbrega, em carta ao Infante D. Henrique, de 1° de junho de 1560, os franceses eram seguidores das

"heresias de Alemanha, principalmente as de Calvino que está em Genebra (e pelos livros que lhe acharam muitos (depois da tomada do forte Coligny), e vinham a esta terra semear estas heresias pelo gentio, e segundo se soube, tinham mandado muitos meninos do gentio a aprende-las ao mesmo Calvino e outras partes para depois serem mestres".20

Conhecemos bem a ação missionária dos jesuítas. Conhecemos talvez um pouco menos sua relação com a Inquisição, a despeito de sabermos que a primeira visitação do Santo Ofício ao Brasil, em 1591, conduzida por Heitor Furtado de Mendonça, teve plena ajuda dos jesuítas, servindo o seu colégio na Bahia de palco da instalação do aparato inquisitorial21. Porém, antes mesmo da primeira visitação, essa relação pode ser vislumbrada a partir da trajetória da Jean de Bolés.



A "Peçonha Luterana"

No dia 1° de junho de 1560, Anchieta escrevera de São Vicente ao padre Diego Laynes, em Roma, relatando um episódio no qual mais de 5.000 índios tamoios decidiram atacar os portugueses em Bertioga:

"con los quales vinieram quatro franceses, los quales, com pretexto de ayudar a los enemigos en la guerra, se querían pasar a nosostros, lo qual no pudieran hazer sin mucho peligro. (...) Estos, como después se supo, apartárouse de los suyos, que están entre los enemigos, en una poblatión, que nosostros llamamos Río de Henero daquí a cinquenta leguas, y tienen trato con ellos. (...) Todos estos eran herejes, a los quales mandó Juan Calvino dos, a que ellos llaman ministros, para que les enseñassem lo que se avía de tener e creer".22

Refere-se especialmente a um dos franceses,

"enseñado en las artes liberales, griego y hebraico, y muy versado en la Sagrada Escriptura [que] o por miedo de su capitán que tenía deversa opinión, o por querer sembrar sus errores entre los Portugueses, vínose aquí con otros tres compañeros idiotas, los quales como huéspedes y peregrinos fueron recebidos y tratados mui benignamente."23

Tratava-se de Jean Cointá, senhor de Bolés, nascido na cidade francesa do mesmo nome, jurisdição de Troye, Champagne, diocese de Saintes. Jean Cointá chegou à França Antártica em 1557 com os demais calvinistas. De acordo com seu próprio testemunho, sua missão na nova colônia era elaborar leis para o seu governo. Dizia-se um homem douto em escrituras sagradas e profanas, conhecia as obras dos doutores da Igreja, tinha-se formado na Sorbonne, havia viajado pela Itália e Espanha e, embora afirmasse ter sido batizado e crismado na Igreja Católica, Apostólica e Romana, ao que tudo indicava, tinha grandes simpatias pelos ensinamentos de Calvino.

Na França Antártica, uma série de desentendimentos confrontara os seguidores de Roma e os protestantes. Alguns versavam sobre se o pão da Eucaristia podia ou não ser fermentado, ou se era permitido colocar água no vinho. Questões desse tipo não se resolviam e só contribuíram para indispor ainda mais aqueles homens. A solução seria consultar por carta os eclesiásticos na França, o que foi feito. No entanto, em vez de esperarem a resposta, Jean de Bolés e outros de seus companheiros resolveram se retirar da ilha, passando para o continente.

É então que começa a grande aventura de Jean de Cointá. Vivendo no continente em meio aos tamoios, ele e alguns franceses resolveram se engajar em um ataque que os índios preparavam contra os portugueses de São Vicente. Ao chegarem àquela capitania, Bolés abandonou as hordas indígenas, passando-se para o lado dos súditos do Rei de Portugal. Não se sabe exatamente quando, mas existem testemunhos de que de São Vicente Bolés teria passado por Pernambuco, Ilhéus e Salvador. Nesta última cidade, conviveu com os representantes do governo português, freqüentando o colégio dos jesuítas e o palácio do governador, Mem de Sá. Quando este, instruído pela metrópole, organizou uma expedição para expulsar os franceses da baía da Guanabara, Bolés juntou-se a ele, tendo sido figura fundamental para a sua vitória em 1560. Afinal, havia vivido algum tempo na França Antártica, conhecia por dentro a ilha de Villegangnon e o Forte Coligny.

Naquela altura, a situação dos franceses era bastante complicada. Villegagnon havia partido para a Europa em finais de 1559 a fim de obter novos recursos para o seu empreendimento. Católicos e calvinistas que habitavam o forte não haviam resolvido ainda seus problemas de interpretação religiosa, e muito menos a forma de governar a colônia. Em março de 1560, os franceses começaram a ser atacados pelos navios portugueses. Em finais daquele mês, o forte, assim como outras construções da ilha, foram destruídos.

No entanto, muitos franceses conseguiram escapar, embrenhando-se pelo continente, voltando mais tarde à Baía, onde permaneceram mantendo contato com novos navios provenientes da França, que continuaram freqüentando a Guanabara à procura de especiarias e, sobretudo, de pau-brasil. Somente em 1565, uma expedição comandada por Estácio de Sá, e da qual participaram alguns jesuítas, como Nóbrega e Anchieta, expulsou definitivamente os franceses remanescentes daquela região, restabelecendo o domínio luso e fundando, para garanti-lo, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Porém, voltando aos acontecimentos de 1560, e a Jean de Bolés, apesar de ter ajudado Mem de Sá na investida contra o Forte Coligny, tornou-se um problema, principalmente aos olhos dos jesuítas. Não é de se espantar que homem tão douto em letras sagradas e profanas – embora, em matéria de religião, suas opiniões divergissem das dos padres da Companhia – causasse tamanho escândalo e precaução entre missionários católicos.

Segundo Frei João Rodrigues, por ocasião de sua passagem por Pernambuco, ouvira de Cristóvão Queixada, alcaide-mor da vila de Olinda, que, estando um dia na igreja com Jean de Boles, perguntara-lhe sobre um livro que o mesmo levava consigo e se aquele livro era de rezar, ao que o francês respondeu "que não era de rezar, que era um livro defeso". Queixada retrucou: "pois, se era defeso para que o trazia?" Cointá então lhe respondeu "que o trazia para aprender o costume dos lutaros porque era muito bom letrado e que havia de disputar contra eles e pugnar pela fé e que para este respeito o fazia para saber de que maneira havia de defender o erro dos lutaros."24

O testemunho de Nóbrega sobre o francês reafirma o grande abismo que separava a defesa de uma verdade revelada pelo catolicismo e o primado da consciência individual, baseada na liberdade de exame, garantida pelas religiões reformadas. Segundo este jesuíta, "perante ele o dito monsior de Boles lera em um seu cartapásio certa leitura que tresladara de um livro de lutaro dizendo-lhe que não achara nele outra coisa boa", ao que Nóbrega retrucou, perguntando-lhe como leu o tal livro se era defeso sob pena de excomunhão, e Cointá então lhe respondeu que na sua terra era lícito ler todos os livros.25

Assíduo interlocutor de Jean de Bolés, Nóbrega discutia com aquele estranho francês sobre as "heresias dAlemanha", ocasiões em que este último "sempre escusava e desculpava e tomava os hereges de retos e ables e de bons letrados"; e na maneira de se referir às heresias, parecia delas compartilhar, louvando Lutero por virtuoso, mesmo quando o jesuíta retrucava que "Lutero tivera mulher sendo antes frade de Santo Agostinho"26. E isso tudo discutiam, não apenas Nóbrega e os demais soldados de Cristo, mas também os homens cultos e doutos das regiões por onde passava Bolés. Essas conversações tinham lugar nas pousadas das autoridades metropolitanas, no estudo do Colégio da Companhia, nas embarcações e, inclusive, à mesa do governador Mem de Sá.

O depoimento do padre Gaspar Pinheiro é ainda mais alarmante, mormente por Bolés se referir à sua estada durante "três anos entre os judeus, aprendendo hebraico e que melhor lhe parecia o costume dos judeus que os nossos em algumas partes."27 Isso era dito por esse livre pensador, espécie de "intermediário cultural", para usar a expressão de Michel Vovelle28, aos representantes de uma monarquia que, além de encampar o espírito da Contra-Reforma, forjava mecanismos de controle e de exclusão de práticas judaicas na península e no ultramar, como a própria Inquisição.

Extremamente inteligente, de conversa fácil e sedutora, Jean de Bolés freqüentava, para além das rodas cultas da sociedade colonial, as ruas e vielas das vilas e cidades pelas quais passava. Gostava de conversar com homens e mulheres ignorantes e rústicos que nelas habitavam. Um bom exemplo de suas proposições heréticas e do poder de influência que exercia sobre a credulidade de cristãos menos preparados, consta do depoimento de Maria Marques, portuguesa, mulher de Gilherme Porta, francês morador de São Vicente, que fora mais tarde, como Bolés, também envolvido nas malhas da Inquisição.

Segundo Maria Marques, seu marido antes de conversar e ter amizade com Jean de Bolés era muito devoto e amigo de Deus. E depois de Bolés ter chegado a São Vicente e conhecido seu marido, este ficou muito perturbado e muito apartado da verdadeira religião. Começou a dizer que as bulas do Papa eram falsas, que eram uma artimanha da Igreja para tirar dinheiro dos pobres; que não se devia adorar as imagens dos santos; que não valia à pena ir às missas aos domingos, pois elas só serviam para dar dinheiro aos padres; que a hóstia consagrada era apenas um pedaço de pão, e não o corpo de Cristo; que o vinho não se transformava em sangue de Cristo; que tudo isso era invenção dos padres; que era melhor confessar-se ao pé de uma moita do que no ouvido de um clérigo. Dizia ainda que o Papa não devia ser respeitado; que não existia Purgatório, nem as almas saíam dele por mais missas que fossem rezadas; que os concílios e as escrituras eram todos falsos; que o casamento era superior ao celibato; que os padres deviam se casar; que não se devia jejuar nem guardar os dias santos, e assim por diante29.

Sabedores e desconfiados dessas conversas, os padres resolveram tomar uma providência, e podar as raízes de um mal que começava a proliferar, afim de não deixarem se alastrar pela colônia aquela "peçonha luterana". Luís da Grã apressou-se a vir a Piratininga "a se oponer a la pestilência, y arrancar las raízes aún tiernas deste mal que começava a brotar". Recorreu ao Ouvidor eclesiástico de Santos, Gonçalo Monteiro, solicitando-lhe que abrisse uma devassa "sobre certos erros, heresias e novidades que se começavam a semear pela terra"30.

Iniciaram-se então as desventuras de Jean de Bolés. Gonçalo Monteiro abriu imediatamente a devassa, na qual foram testemunhas os padres da Companhia e os moradores da capitania de São Vicente. Os autos do inquérito foram enviados ao Bispo em Salvador que oportunamente ordenou a prisão de Jean Cointá, quando este passava pela Bahia numa nau que o levaria de volta ao Reino, de onde voltaria à França. Bolés permaneceu encarcerado por três anos na Bahia. Durante esse tempo, o Bispo e os jesuítas continuaram interrogando-o, alimentando o processo, avolumando as culpas contra o francês, considerado herético e seguidor do protestantismo. Este sempre negou tudo, temeroso de cair nas malhas da Inquisição. Porém, foi exatamente o que aconteceu. Concluída a devassa em terras coloniais, D. Pedro Leitão remeteu os autos ao Tribunal do Santo Ofício em Lisboa e, em 1563, Bolés foi enviado a ferros para aquela cidade, onde foi novamente encerrado, desta vez nos cárceres da Inquisição. Ali continuaram os interrogatórios sob a condução dos inquisidores. Mais um ano de longas e insistentes perguntas até que, em agosto de 1564, sua sentença foi oficialmente declarada. O réu abjurou em forma diante da Mesa inquisitorial e foi condenado a se recolher ao Mosteiro de São Domingos. No entanto, aquele não era um lugar que Bolés, homem letrado e afeito a aventuras, pretendesse passar o resto de seus dias. Permaneceu recolhido por alguns meses, mantendo um comportamento exemplar e demonstrando uma fé que impressionou os monges. Voltou então a apelar para o Santo Ofício, pedindo que sua pena fosse aliviada, obtendo o testemunho dos dominicanos que o haviam acolhido e que alegaram não conhecerem católico mais fervoroso do que Jean Cointá. Convencidos, os inquisidores anularam a sentença, e Bolés foi enfim libertado.

Perderam-se a partir de então os seus passos. Segundo Capistrano de Abreu, Bolés teria permanecido por mais algum tempo em Portugal, onde editara dois livros, ambos aprovados pelos deputados do Santo Ofício31. Sabe-se, também, que viajara posteriormente para as Índias Orientais portuguesas, onde novamente se viu às voltas com o Tribunal da Inquisição de Goa, tendo sido condenado, desta vez, à morte na fogueira. A execução de sua sentença ocorreu no ano de 1572, o mesmo do falecimento de Villegagnon.

Como conclusão, poderíamos dizer que tanto a experiência da França Antártica, como a trajetória de Jean de Boles, que faz parte daquela, abrem um vasto campo de pesquisa ao historiador, na medida em que, como afirma Frank Lestringant, "linfluence dun tel modèle déborde de domaine de la géopolitique pour embrasser plus largement lhistoire culturelle".32
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-90742008000100004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Revista História - UNESP

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