“Ou então cada paisano e cada capataz Com sua burrice fará jorrar sangue demais Nos pantanais, nas cidades, caatingas
E nos gerais”
CAETANO VELOSO
Como é que a ditadura conseguiu dizimar a guerrilha? A repressão foi selvagem.
Imagine que você fosse um guerrilheiro naquela época. Documento falso, revólver escondido na cintura, olhar assustado para qualquer pessoa da rua. Distante da família, dos amigos, de qualquer conhecido. Clandestino. Codinome, ou seja, nome inventado, nem os companheiros sabiam sua identidade. Se fossem presos, não poderiam te revelar. Vocês se escondem num apartamento discreto no subúrbio. E mudam de residência quase todo o mês. Esse esconderijo é chamado de “aparelho”. Um dia, você tem um ponto, ou seja, um encontro marcado com outro guerrilheiro. Ele não aparece. Provavelmente, caiu (foi preso). Em algumas horas, debaixo de paulada, pode ser que ele abra. Os meganhas logo vão chegar. É preciso desativar o aparelho rápido. De repente, chega a polícia. Tiroteio. Mortes. Se você escapar com vida, vai direto para o porão. Agora sim, você vai sentir na pele a face mais negra do regime. A tortura.
Não houve guerrilheiro preso que não fosse barbaramente torturado. Ficar pendurado no pau-de-arara (um cavalete em que o sujeito fica preso pela barra que passa na dobra do joelho, com pés e mãos amarrados juntos) é um dos piores suplícios. Além disso, pontapés, queimaduras de cigarros, choques elétricos, alicates arrancando os mamilos, banhos de ácido, testículos amassados com alicate, arame em brasa introduzido pela uretra, dente arrancado a pontapés, olhos vazados com socos. Mulheres estupradas na frente dos filhos, homens castrados. A lista de atrocidades é infindável.
Os torturadores são animais sádicos. Mas além da maldade pura e simples, havia a necessidade estratégica: a tortura extraía confissões em pouco tempo, dando oportunidade de prender outras pessoas, que também seriam torturadas, revelando mais coisas e assim por diante. Infelizmente, a tortura revelou-se bem eficaz.
Houve muita gente, entretanto, que nada falou. Veja bem, amigo leitor, bastava contar tudo que a tortura acabaria. Essa era a diabólica proposta. Imagine-se no lugar do preso, apanhando feito um cão, nu, sangrando, com a cabeça enfiada num balde cheio de fezes e vômito dos outros. Algumas frases e você seria mandado para um hospital. No entanto, muitos não falaram. Bravamente, recusaram-se a colaborar com a repressão.
Morto sob tortura tinha o caixão lacrado para ninguém ver o cadáver arrebentado. O laudo oficial do IML, emitido por médicos venais comprometidos com a ditadura dizia friamente que a morte tinha ocorrido “em tiroteio com a polícia”.
Uma geração que pagou um alto preço por seus sonhos: pagou com o próprio sangue. Por isso, amigo leitor, se hoje eu posso escrever essas linhas, se hoje você pode dizer o que pensa, saiba que entre os responsáveis por nossa liberdade estão aqueles que deram sua vida para que um dia o país não estivesse mais sob o jugo das botas da tirania.
Mas, afinal, quem eram os torturadores? Onde as pessoas eram torturadas? Ao contrário do que se possa pensar, a tortura não era feita em algum lugar escondido, uma casa de subúrbio ou uma fazenda afastada de tudo. Não, infelizmente as pessoas eram torturadas em lugares públicos, na frente de muitas testemunhas. Como Mário Alves, dirigente do PCBR, torturado até a morte nas dependências do Primeiro Batalhão de Polícia do Exército, na rua Barão de Mesquita, Tijuca, Rio de Janeiro. Reparou no local? Um quartel do Exército! Como também aconteceu em delegacias, em bases da Marinha. Através da Operação Bandeirantes (OBAN), do DOI-CODI, dos Serviços de Informação das Forças Armadas (CENIMAR, CISA, CIEX), do DOPS e do SNI, o governo exterminou a guerrilha com brutalidade.
Claro que a maioria dos militares não teve nenhum envolvimento com a tortura. Muitos sequer sabiam que ela estava acontecendo. Mas é inegável que os torturadores ocupavam importantes posições no aparelho repressivo do Estado: eram policiais civis, PMs, agentes da polícia federal, delegados, oficiais e sargentos da Marinha, do Exército, da Aeronáutica, médicos que avaliavam a saúde da vítima e autorizavam a continuação da tortura.
Muito triste é saber que alguns desses monstros permanecem na polícia, nas Forças Armadas e que foram anistiados pelo general Figueiredo em 1979. Neste país, jamais um torturador sentou no banco dos réus.
A ditadura não se manteve só com violência física. Ela soube se valer de uma propaganda ideológica massacrante. Numa época em que todas as críticas ao governo eram censuradas, os jornais, a tevê, os rádios e revistas transmitiam a idéia de que o Brasil tinha encontrado um caminho maravilhoso de desenvolvimento e progresso. Reportagens sobre grandes obras do governo e o crescimento econômico do país convenciam a população de que vivíamos numa época incrível. Nas ruas, as pessoas cantavam: “Ninguém segura esse país.”
Os guerrilheiros eram apresentados como “terroristas”, “inimigos da pátria”, “agentes subversivos”. Qualquer crítica era vista como “coisa de comunista”, de “baderneiro”. Houve até quem chegasse ao cúmulo de acusar os comunistas de responsáveis pela difusão das drogas e da pornografia!
O futebol, como não poderia deixar de ser, foi utilizado como arma de propaganda ideológica. Na época, a esquerda se perguntava: “O futebol aliena os trabalhadores, é o ópio do povo?” E houve até quem torcesse para que o Brasil perdesse a Copa: como se o trabalhador brasileiro precisasse de uma derrota no jogo de futebol para realmente se sentir oprimido! Ou seja, quem estava supervalorizando o futebol: o povão ou a esquerda? De qualquer modo, meu amigo, aquela seleção brasileira de 1970 foi simplesmente o maior time de futebol que já existiu. Pelé, Tostão, Jairzinho, Gérson, Rivelino, Clodoaldo, Carlos Alberto Torres, seus craques são inesquecíveis. O tricampeonato conquistado na Copa do México encheu o país de euforia. Nas casas (pela primeira vez a Copa foi transmitida ao vivo pela televisão) e ruas o povo explodia de alegria e cantava: “Todos juntos, vamos / Pra frente Brasil..” Os homens do governo, claro, trataram logo de aparecer em centenas de fotos ao lado dos craques. Queriam que o país tivesse a impressão de que só tínhamos ganho a Copa graças à ditadura militar (embora as vitórias de 1958 e 1962 tivessem sido no tempo da democracia, com JK e Jango). O prefeito de São Paulo, Paulo (que não era São) Maluf, resolveu dar para cada jogador um automóvel zero quilômetro de presente. O presidente Médici, vestido com a camisa rubronegra do Flamengo, era aplaudido de pé por parte da torcida no Maracanã. Triste país, o general chutava a bola, os torturadores chutavam os presos.
Além do futebol, os brasileiros conheceram uma nova paixão, o automobilismo. Até hoje, o mundo só teve um único piloto capaz de vencer na sua estréia na Fórmula 1: o nosso Émerson Fittipaldi, campeão mundial em 1972 e 1974.
Nas escolas vivia-se um clima de ufanismo (exaltação da pátria). Todo mundo tinha de acreditar que o Brasil estava se tornando um país maravilhoso. Nos vidros dos carros, os adesivos diziam: “Brasil - Ame-o ou Deixe-o!” É como se os perseguidos políticos foragidos tivessem se exilado por antipatriotismo. Um pontapé na verdade.
Claro que essa euforia toda no começo dos anos 70 não vinha só das vitórias esportivas e da máquina de propaganda do governo. Em realidade, o país vivia a excitação de um crescimento econômico espetacular. Era o tempo do “milagre econômico”.
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