HERBERT CARVALHO
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Se o senhor não está lembrado, dá licença de contar. Seu nome era João Rubinato. Sétimo e último rebento – como ele mesmo diria – de um casal de imigrantes italianos do Vêneto, nasceu em Valinhos (SP), então distrito de Campinas, no dia 6 de agosto de 1910, conforme consta na certidão de nascimento e na carteira de identidade daquele que se tornaria nacional e internacionalmente conhecido pelo nome artístico de Adoniran Barbosa.
A data centenária está sendo comemorada principalmente nos bairros da cidade de São Paulo imortalizados em seus mais de cem sambas, ainda que não seja isenta de controvérsias, como outros aspectos de sua vida: para alguns ele teria sido “envelhecido” dois anos de forma a poder colaborar no sustento da família, já ao tempo da escola primária, ajudando o pai a carregar e descarregar vagões da São Paulo Railway em Jundiaí, uma das pontas da estrada de ferro construída pelos ingleses para ligar o interior paulista ao porto de Santos.
Nascido e criado numa época em que as ferrovias eram predominantes, Adoniran eternizaria esse meio de transporte em seu maior sucesso, Trem das Onze, reservando profeticamente para o automóvel o papel de vilão, como nas músicas Iracema (atropelada ao atravessar na contramão a Avenida São João) e Tiro ao Álvaro (“Teu olhar mata mais que atropelamento de automóvel”).
Sempre reservado a respeito da própria intimidade, Adoniran cortava as especulações sobre seu nascimento com uma de suas frases típicas: “Não nasci, porque pobre não nasce. Aparece...” A pobreza, de fato, marcou a vida do menino rebelde expulso do grupo escolar, no terceiro ano, apenas com os rudimentos das letras e dos números.
A partir daí ele trabalharia sucessivamente como entregador de marmitas e varredor, ainda em Jundiaí, e depois em Santo André, no ABC paulista, como tecelão, pintor de paredes, encanador, serralheiro, metalúrgico e garçom. Nesta última função, em 1926, serviu à mesa na residência paulista do ministro da Guerra, Pandiá Calógeras.
“Tanta coisa que eu fui e só deu pra fazer samba. Fazia samba no caminho, andando. Vivia batucando, mandavam logo embora. Eu só queria fazer samba”, confessaria Adoniran em 1972 no programa “MPB Especial”, da TV Cultura de São Paulo, criado por Fernando Faro, autor também de “Ensaio”, na mesma emissora. Ambas as séries resultaram na monumental coleção de CDs e livros intitulada A Música Brasileira deste Século por Seus Autores e Intérpretes, editada no ano 2000 pelo Sesc SP em parceria com a Fundação Padre Anchieta, cujo volume 1 é encabeçado precisamente por Adoniran Barbosa.
Nome bíblico
Em 1932 João Rubinato chega à cidade em que viveria pelos 50 anos seguintes, até sua morte, em 1982. Com cerca de 1 milhão de habitantes, a São Paulo da década de 1930, com seus primeiros arranha-céus, simbolizava o país que deixava de ser agrário e rural para se urbanizar e industrializar. Na multidão apinhada nos bondes ou que andava apressada pelas ruas Direita e São Bento destacavam-se tanto o português macarrônico dos imigrantes italianos, satirizado pelo humor de Juó Bananére, como a fala estropiada dos interioranos recém-chegados, os caipiras retratados por Cornélio Pires. Dessas vertentes nasceriam obras-primas como Samba Italiano – no idioma de Dante, que ouvia quando criança – e Samba do Arnesto, em cuja casa “nóis fumo e não encontremos ninguém”, emblemático da arte de falar errado (como ele definia), que se tornaria a marca registrada do compositor.
Fazer samba, porém, ainda era um horizonte distante para o jovem que passou a ganhar a vida entregando “pras madamas” os tecidos de uma loja da Rua 25 de Março, enquanto acalentava o sonho de ser artista. E o caminho para a consagração pública, na época, passava obrigatoriamente pelo rádio, que se firmava como o grande veículo de comunicação de massa desde que o presidente Getúlio Vargas autorizara seu financiamento por meio da publicidade.
Foi na Rádio Cruzeiro do Sul, nas imediações da Ladeira Porto Geral – onde vivia, em um quarto de pensão – que João, após vários gongos em um programa de calouros, conseguiu chegar até o fim cantando o samba Filosofia, de Noel Rosa, o mais célebre dos compositores cariocas da primeira metade do século passado, cujo centenário se comemora também neste ano. O feito lhe rende um contrato para cantar em um programa semanal de 15 minutos e o leva à decisão de trocar de nome. “Se eu soubesse que ia ser radioator, teleator e artista de cinema não mudava meu nome. Ficava João Rubinato mesmo. Mas cantar samba com nome italiano não dá”, justificaria. Sobre esse episódio, um de seus biógrafos, Ayrton Mugnaini Jr., conta no livro Adoniran (Editora 34): “Ao saber que João Rubinato queimava o cérebro em busca de um nome artístico incomum e marcante, um colega de boemia, Adoniran Alves, lhe propõe: ‘Por que você não adota meu nome, João?’ ” A sugestão de usar o nome que aparece originalmente na Bíblia como de um dos ministros do rei Salomão foi aceita e completada com o sobrenome emprestado de um sambista carioca famoso na época, morto precocemente, Luiz Barbosa (1910-1938).
Artista multimídia
O ano de 1934 assinala o nascimento do compositor Adoniran Barbosa, com a marchinha Dona Boa, feita em parceria com o carioca J. Aimberê. Gravada por Raul Torres (1906-1970) – um dos pioneiros da música caipira feita na cidade grande –, foi a vencedora do concurso de carnaval da prefeitura de São Paulo, embora estivesse a anos-luz de distância das composições maduras que Adoniran faria 20 anos mais tarde. Classificada por ele mesmo como “uma porcaria”, rendeu-lhe a quantia – significativa na época – de 300 mil-réis, que torrou bebendo com os amigos em uma única noite. Garantiu-lhe, também, um programa exclusivo na Rádio São Paulo, a mesma que abrigava em seu cast a dupla Alvarenga e Ranchinho, a mais popular e ousada da época, por suas sátiras de caráter político. O sucesso encoraja Adoniran a pedir a mão de Olga Krum, bela e jovem descendente de alemães. O casamento dura menos de um ano, mas deixa como fruto a filha Maria Helena Rubinato, que seria criada no Rio de Janeiro por uma irmã de Adoniran. Hoje é sua única descendente direta, já que não houve filhos na união com Mathilde de Luttis, sua companheira por 40 anos, desde 1942, para quem compôs Prova de Carinho, comovente oferta de uma aliança feita com a corda de um cavaquinho.
A inclinação natural de Adoniran pela composição, entretanto, seria postergada por mais de uma década, cedendo lugar, de maneira compulsória, ao intérprete de músicas alheias, gravadas em 1936 em discos de 78 rotações para o selo Columbia. Como na época o compositor não passava de mero acessório para cantores de sucesso como Francisco Alves, ele decide apostar na própria voz, ainda livre do timbre roufenho que permaneceria na memória dos que o ouviram no final da vida. Mas o reconhecimento público não iria para o cantor e só se manifestaria a partir de 1941, quando Adoniran se transfere para a Rádio Record – onde permanece até sua aposentadoria em 1972 – e passa a atuar como ator cômico, além de locutor e discotecário. Na Record, Adoniran conhece o escritor e roteirista Oswaldo Molles, especialista em linguagem popular, que além de seu futuro parceiro em vários sambas criaria para ele personagens radiofônicos como Zé Cunversa e Charutinho, este último o grande sucesso do programa humorístico “História das Malocas”, nos anos 1950.
Como o pagamento na rádio é parco e incerto, Adoniran estreia como ator de cinema em 1945, vivendo o personagem Moisés Rabinovitch, na comédia musical Pif-Paf; no total ele atuaria em 15 filmes, desde O Cangaceiro, de Lima Barreto, primeira fita brasileira a fazer sucesso no exterior, em 1953, até pornochanchadas como A Superfêmea e Elas São do Baralho, nos anos 1970. Verdadeiro artista multimídia, como hoje se diria, Adoniran trabalhou também no circo e em telenovelas de sucesso, como “Mulheres de Areia”, da extinta TV Tupi, em que fazia o papel de um pescador. Gravou ainda comerciais para a TV, como aquele de uma marca de cerveja em que dizia o célebre bordão “Nóis viemos aqui pra beber ou pra conversar?”, que resultaria na marchinha Nóis viemos aqui pra quê?
Trem carioca
Assim como para o Brasil – que veria a construção de Brasília, o aparecimento da Bossa Nova e da indústria automobilística e a conquista do primeiro campeonato mundial de futebol –, a década de 1950 foi decisiva para Adoniran Barbosa, que se transformaria em um dos ícones da cultura paulista. Deixando de lado o estilo de Noel Rosa, que até então imitava, e colocando nas frases e melodias o ambiente das ruas e das malocas que ele próprio ecoava nos programas de rádio, entre 1951 e 1953 Adoniran compõe, entre outros, dois de seus sambas imortais, Saudosa Maloca eSamba do Arnesto, que se tornam sucessos imediatos nas interpretações dos Demônios da Garoa, marcadas pelos característicos quais-quais-quais e cariguduns. Reconhecidos pelo Guinness Book of Records como o grupo vocal-instrumental de música popular de mais longa carreira ininterrupta (desde 1943), os Demônios plasmam sua imagem na de Adoniran e vice-versa, numa simbiose compositor-intérprete tão perfeita quanto havia sido a de Noel/Aracy de Almeida ou seria a de Lupicínio Rodrigues/Jamelão.
A dobradinha Adoniran/Demônios explodiria novamente em 1965 com a gravação de Trem das Onze, que apesar de escolhida pelo público como a música que mais tinha a “cara” de São Paulo, em votação realizada pela Rede Globo no ano 2000 (desbancando Sampa, de Caetano Veloso), fez sucesso inicialmente como campeã do carnaval carioca, justamente no ano do 4º Centenário do Rio de Janeiro.
“Fazia tempo que não havia um samba legal no Rio e quando apareceu Trem das Onze foi aquele delírio. O doutor Carlos Lacerda, que era o governador, me deu dois milhão de cruzeiro de prêmio”, contou Adoniran ao programa “MPB Especial”. Extrapolando o eixo Rio-São Paulo, Trem das Onze torna-se sucesso nacional em 1973, na voz de Gal Costa. Na Itália, gravada por Mina com o nome de Figlio Unico, esteve entre as cem músicas mais tocadas nas décadas de 1960/70.
Voz da cidade
Apesar de ter composto todos os seus principais sucessos entre 1951 e 1972, foi apenas em 1974 que Adoniran Barbosa gravou seu primeiro LP, produzido por João Carlos Botezelli, o Pelão, posteriormente coordenador da mencionada coleção do Sesc SP/TV Cultura. Após tantas décadas de frustrações devido à falta de reconhecimento, o repentino sucesso de público e crítica no outono da existência – a exemplo do que ocorreu com Cartola, Nelson Cavaquinho e Clementina de Jesus, entre tantos outros geniais artistas populares que passaram no limbo a maior parte da vida – não o entusiasma nem altera seu jeito simples de viver. “Só depois de velho vieram dar valor à minha música. Por que não fizeram isso 20 anos atrás?”, desabafou em entrevista ao jornal carioca O Pasquim.
Vivendo no subúrbio distante de Cidade Ademar, na zona sul da capital paulista – longe dos bairros que cantou, mas onde nunca morou, como Brás, Mooca, Bexiga ou Casa Verde –, Adoniran passa os últimos anos de sua vida curtindo o cachorro Peteleco (que usaria como pseudônimo em algumas composições e para quem pagava filés nos restaurantes) e construindo com pedaços de lata e madeira pequenos objetos de ourivesaria popular, como rodas-gigantes, trens e carrosséis.
Foi com uma bicicleta em miniatura feita por ele mesmo que Adoniran retribuiu o gesto de Antonio Candido, um dos intelectuais brasileiros de maior prestígio, que, convidado a assinar um texto na contracapa do segundo LP do compositor, escreveu, em 1975: “Lírico e sarcástico, malicioso e logo emocionado, com o encanto insinuante de sua antivoz rouca, o chapeuzinho de aba quebrada sobre a permanência do laço de borboleta de outros tempos, ele é a voz da cidade”.
O professor emérito de teoria literária da Universidade de São Paulo resumia, desse modo, o que outros representantes do universo cultural paulista e brasileiro já sabiam há muito tempo, como os poetas Vinicius de Moraes e Hilda Hilst, que foram seus parceiros, ou o zoólogo-sambista Paulo Vanzolini. O autor de Ronda e Praça Clóvis, entre outras canções que também retratam a metrópole paulistana, não titubeia em ceder ao amigo, que homenageou num samba intituladoSeu Barbosa, o título de principal cronista musical da cidade: “A música que melhor representa São Paulo é qualquer uma do Adoniran. Quando na letra de Apaga o Fogo, Mané a Inês sai para comprar um pavio de lampião, ele está dando uma definição que vale por sete volumes de sociologia sobre a periferia. Adoniran era um gênio”. “Ele conseguiu dar humor e beleza a São Paulo, uma cidade bastante carente”, acrescenta o maestro Júlio Medaglia.
Após ser brindado em 1980 com um disco comemorativo de seus 70 anos, que traz Elis Regina cantando Tiro ao Álvaro– entre outros convidados do porte de Djavan, Clara Nunes e Gonzaguinha –, os muitos cigarros Yolanda fumados desde a adolescência o conduzem no início de novembro de 1982 ao Hospital São Luiz, onde morre de enfisema pulmonar às 17h15 do dia 23. Com o caixão coberto pela bandeira da escola de samba Colorado do Brás, que o homenageara no carnaval daquele ano, foi sepultado no Cemitério da Paz, no bairro do Morumbi, ao som de Trem das Onze entoado durante mais de 30 minutos seguidos pelas 500 pessoas presentes. Faltou, entretanto, a bandeira do Corinthians, time que foi sua grande paixão e que homenageou na música Coríntia – Meu Amor é o Timão.
Palhaço triste
Durante alguns anos, as miniaturas que construiu, seus objetos pessoais e outros referentes à preservação de sua memória foram reunidos no Museu Adoniran Barbosa, que funcionou dentro da antiga caixa-forte de um banco desativado na Rua XV de Novembro, no centro velho de São Paulo. Esse acervo está sendo digitalizado para figurar no website oficial de Adoniran, organizado pela filha Maria Helena e pelo sobrinho Sérgio Rubinato. No bairro do Bexiga há uma rua batizada com seu nome, e seu busto foi erguido sob as árvores da Praça Don Orione, onde aos domingos acontece uma feira de antiguidades.
Cronista dos fatos cotidianos da grande metrópole – como atropelamentos e desocupações judiciais que hoje, 28 anos após sua morte, continuam a ocorrer de forma ainda mais dramática –, Adoniran tornou-se não apenas a “voz da cidade”, como sublinhou Candido. Ele foi, sobretudo, a voz dos sofredores que resgatava da multidão anônima e silenciosa, como os moradores de rua e das malocas, os engraxates, faxineiras, operários e demais seres solitários, fragmentados pela brutalidade da metrópole, aviltados e despojados de sua dignidade. Se vivo fosse, certamente cantaria as desventuras de motoboys e de operadoras de telemarketing, trabalhadores desprezados hoje como em seu tempo foram os operários da construção civil ou as margaridas do metrô.
Apaixonado por São Paulo, apontava seus defeitos, principalmente a vertiginosa velocidade de suas transformações, que podiam deixar mais bonito o Viaduto Santa Ifigênia, mas também desfiguravam a paisagem urbana, como na Praça da Sé, após o advento do metrô. Como nesses dois casos, as músicas que fez com nome dos logradouros públicos permitem comparar a cidade de hoje com a de ontem: a Rua dos Gusmões, que ele atravessava “lendo Ali Babá e os Quarenta Ladrões”, como prova de amor à namorada, depois de pertencer à Boca do Lixo e à Cracolândia agora está no coração da Nova Luz, o bairro que se busca revitalizar entre as estações da Luz e Júlio Prestes (antiga Sorocabana, atual sede da Sala São Paulo).
Como um misto de repórter e dramaturgo, Adoniran narrava tragédias como a de Iracema, mas também comédias, como em O Casamento do Moacir (que já “era casado cinco veiz lá no estado do Rio”) ou Um Samba no Bexiga (onde estoura uma briga e “era só pizza que avoava, junto com as brachola”). Apesar do bom humor que exteriorizava, ele próprio admitia ser “um palhaço triste”, como foi retratado para a capa de um disco pelo artista gráfico Elifas Andreato.
A cidade que nos versos de Adoniran reconhecia pelo nome seus habitantes desapareceu, mas permanece aquela que ainda não sabe responder à pergunta final de Despejo na Favela: “E essa gente aí, hem? Como é que faz?”
Revista Problemas Brasileiros
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