Aos olhos de boa parte da intelectualidade, Chomsky é um pássaro cuja atividade principal é sujar o próprio ninho, com a esperança de que outros farão o mesmo e, assim, o futuro será melhor. Neste percurso esbarra em protestos violentos, como se afirmasse que a justiça se encontra apenas do lado do inimigo
por Jacques Bouveresse
Os que o acusavam de se comportar, em relação ao seu país, como “o pássaro que suja o próprio ninho”, Karl Kraus respondeu que é perfeitamente possível, dentro de certas circunstâncias, sentir-se sujo pelo próprio ninho, e daí a necessidade legítima de torná-lo, na medida do possível, um pouco mais limpo. A consequência disso foi que ele “atraiu contra si o ódio das pessoas sujas, de uma intensidade tamanha que poderia não ter equivalente na história da vida intelectual”.
Sob muitos aspectos, é numa situação bastante similar que Noam Chomsky se encontra atualmente. Aos olhos de boa parte do mundo intelectual que, no fim das contas, se acomoda sem grandes problemas com a sujeira que denuncia, Chomsky também é um pássaro cuja atividade principal consiste em sujar os ninhos dos quais ele é material ou espiritualmente ocupante – ou deveria considerar-se como tal. Em primeiro lugar, é claro, critica os Estados Unidos, mas também a Europa, as democracias ocidentais em geral, o Estado de Israel, as elites intelectuais, o mundo científico, a universidade etc.
Esse já era o caso de Kraus, que pensa e age com a ideia de que um intelectual deve antes faxinar seu próprio país, com a esperança de que os outros farão o mesmo. Essa atitude esbarrará nos protestos violentos de quem reage como se isso equivalesse, automaticamente, a afirmar que a verdade, o bom direito e a justiça se encontram integralmente do lado do inimigo.
Chomsky denuncia os abusos de poder, as injustiças, os atos de violência e crimes cometidos por seu próprio país. No entender de seus adversários, isso significa que ele acha normais ações dessa natureza quando perpetradas por seus inimigos. Quando qualifica de “terrorismo internacional de Estado” ou de “terrorismo de atacado” tudo aquilo que os Estados Unidos e seus aliados se consideram autorizados a fazer, com toda a impunidade, em certos países, isso implica, segundo afirmam, que Chomsky nega a realidade, apesar de esta ser pouco contestável.
Deplorando aquilo que chama de “uma tendência da esquerda à autodestruição”, da qual a conversão de boa parte de seus representantes às ideias pós-modernas é sintoma característico, ele constatava que “existe uma base popular para enfrentar os problemas humanos que há muito tempo faz parte do ‘projeto das Luzes’. Ela carece é da participação dos intelectuais de esquerda. (…) O fato de eles terem abandonado esse projeto é o sinal (…) de uma nova vitória da cultura do poder e dos privilégios, e sua atitude contribuiu para isso”.
As reações ocorrem da mesma forma quando Chomsky recorre à expressão “modelo de propaganda” para descrever o funcionamento dos meios de comunicação numa democracia como os Estados Unidos, onde a imprensa é reputada como sendo inteiramente livre e independente. Acusar os meios de comunicação, como faz Chomsky, de não representar a realidade tal como ela é e de deformar ou omitir regularmente fatos importantes, segundo seus adversários só pode ser uma calúnia e um insulto.
Assim como George Orwell, Chomsky acha incompreensível e preocupante o reduzido empenho com que os intelectuais de esquerda defendem noções como as de “verdade” e “objetividade” – isso quando não propõem abertamente considerá-las, daqui para a frente, reacionárias e obsoletas.
O anúncio feito pelos teóricos da revolução pós-moderna de que não existem verdadeiramente “fatos” – nem, consequentemente, um “mundo dos fatos” em relação ao qual poderíamos ter de nos preocupar – veio na hora certa. E não poderia ser recebido senão como uma justificativa filosófica e um incentivo a prosseguir no mesmo caminho.
Após ser testemunha, no decorrer da guerra civil espanhola e nos anos que se seguiram, da eficiência avassaladora e dificilmente imaginável da propaganda franquista, Orwell manifestou seu temor de ver o próprio conceito de verdade objetiva ser ameaçado de desaparição. “Esse tipo de coisas me assusta”, escreveu, “porque isso, não raro, provoca em mim o sentimento de que a própria noção de verdade objetiva está desaparecendo do nosso mundo. No final das contas, existe um risco importante de que essas mentiras, ou mentiras semelhantes, acabem sendo tidas como verdades históricas. Como será escrita a história da guerra da Espanha?”
Era de esperar que a experiência de como as ditaduras do século XX foram capazes de substituir as verdades objetivas por verdades inteiramente forjadas para seus próprios fins, com as consequências monstruosas que isso engendrou, reforçasse a convicção dos intelectuais de que a verdade, precisamente, não pode ser ela mesma o resultado de uma criação ou de uma invenção.
Mas é uma conclusão bastante diferente daquela a que eles parecem ter chegado: de que os próprios fatos e a verdade são efetivamente fabricados de uma maneira ou de outra, e em todos os casos. Portanto, além de uma “fabricação do consentimento”, pode-se falar daqui para a frente em uma “fabricação da verdade”. A menos que a produção da verdade deva ser considerada como impossível de distinguir da produção do consenso, daquilo que deve ser reconhecido como verdade.
Liberdade e verdade objetiva
Enquanto os cientistas não podem renunciar a utilizar um conceito como o da verdade objetiva, os romancistas podem muito bem considerar a possibilidade de prescindir dele, na medida em que o que vale para eles é tão-somente a liberdade.
Mas esta não deixa de ser uma ilusão perigosa. Para Orwell, quem pretende defender a liberdade não pode não se sentir obrigado, ao mesmo tempo, a defender a verdade objetiva. Inversamente, aqueles que consideram a verdade objetiva como inquestionável não podem considerar como secundária a defesa da liberdade.
Aos olhos de Chomsky, as humanidades e as ciências sociais não podem permitir-se ignorar ou tratar levianamente o conceito de verdade objetiva, não mais do que o fazem as ciências exatas.
“É comumente admitido que uma pesquisa objetiva, com frequência, consiga ser capaz de questionar o quadro do pensamento dominante. É apenas no campo das ciências sociais que tal ponto de vista é considerado como sintoma de uma mente alienada. (…) Mas a tarefa de desenvolver uma pesquisa objetiva, liberada das obrigações impostas pelo consenso político americano, é absolutamente real e crucial; e eu penso que ela conduzirá a conclusões radicais.”
É muito possível que grande parte do que ele afirma seja considerada um pouco direta demais – e, talvez, excessivamente ingênua. Se ele precisasse ser defendido em relação a este ponto (o que não acredito), diria que o sábio, de reputação mundial, tem justamente o mérito incomum de apresentar-se como alguém que sabe muito poucas coisas, mas está convencido de que não é necessário saber mais para ter condições de agir e obter resultados.
A ingenuidade pode ser também uma forma de honestidade intelectual. Eu sempre admirei como Chomsky dá mostras a respeito deste ponto. Uma atitude que poderia inspirar e beneficiar muitos filósofos, se eles fossem um pouco mais sensíveis ao temor do absurdo e do egoísmo. Não tenho certeza de conseguir compartilhar seu otimismo, nem a esperança que ele investe no futuro. Mas talvez seja porque tenho o sentimento de que é preciso ser tão combativo quanto ele para ter realmente o direito de ser otimista.
Von Wright, respondendo à crítica de que o pessimismo gera preocupação e tem por efeito paralisar a ação, declara: “Isso ocorre de fato dentro de certa medida. Mas eu avalio como muito mais irresponsável, e ao mesmo tempo mais paralisante para a ação, um otimismo que acredita ser possível deixar tranquilamente a evolução prosseguir, como anteriormente, com a certeza de que um maior esforço de pesquisa, uma nova tecnologia e o jogo livre das forças do mercado acabarão colocando tudo no lugar. Eu tenho a impressão de que foi nesse tipo de otimismo da impotência que os governos afundaram, e que eles lançam mão desse mesmo discurso para tentar adormecer as massas humanas que dirigem”. Também é numa forma de otimismo da impotência que está afundado, hoje, boa parte do mundo intelectual.
Chomsky é, evidentemente, um otimista de uma estirpe totalmente diferente. Seu otimismo é um otimismo da vontade e da ação. Baseia-se na ideia de que, caso o futuro se torne melhor, será somente porque nós teremos feito, naquilo que depende de nós, todo o possível e necessário para que essa melhora ocorra efetivamente.
Jacques Bouveresse é professor no Collège de France. Este texto é um trecho do seu prefácio para o livro de Noam Chomsky, Raison et liberté. Sur la nature humaine, l’éducation et le rôle des intellectuels, Agone, 2010.
Le Monde Diplomatique Brasil
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