terça-feira, 30 de novembro de 2010

Lima Barreto, um autor na contramão

Triste fim de um escritor talentoso e original, marcado pela tragédia

CECILIA PRADA


Lima Barreto / Foto: Reprodução

Pelos idos de 1920, os grupos elegantes de cariocas que costumavam fazer da Avenida Rio Branco o lugar predileto de suas flâneries cotidianas (assim, em francês, língua da moda então), deparavam às vezes com um espetáculo pouco habitual: o de um mulatão desleixado, sujo, ensebado e precocemente envelhecido, mais parecido com um pobre-diabo, quase um mendigo, a quem, no entanto, muitos transeuntes tiravam o chapéu, cumprimentando. Alguns até mesmo se detinham para conversar com ele durante bastante tempo, animadamente. Uma tarde – conta um poeta da época, Dante Milano –, algo mais espantoso ainda acontecera: um elegante carro preto encostara no meio-fio e dele saltara talvez o homem mais importante da cidade, o ex-senador e prefeito Paulo de Frontin, somente para trocar um dedo de prosa com aquele mulato quase negro, de face avermelhada pela bebida, um marginal andrajoso que não dispensava uma palheta amassada assentada na carapinha grisalha – o grande romancista e jornalista que atendia pelo sonoro nome de Afonso Henriques de Lima Barreto.

Infelizmente, o prestígio, o reconhecimento merecido e tardio que a sociedade parecia, enfim, lhe conceder, nada mais puderam fazer para prorrogar sua vida sofrida. Ele faleceria em 1922, aos 41 anos – como Kafka –, com o organismo completamente arruinado pela bebida e por doenças venéreas, marcando com o signo da tragédia uma página das mais importantes de nossa história literária.

Aquele que nunca foi rei

O nome Afonso Henriques não lhe foi dado, como se poderia pensar, em homenagem ao primeiro rei de Portugal. Só para se ter uma ideia da atmosfera racista e preconceituosa em que teve de viver, basta lembrar um fato relatado por seu melhor biógrafo, Francisco de Assis Barbosa: quando Lima cursava a Escola Politécnica (não chegou a se formar engenheiro), ouviu um aluno veterano comentar: “Vejam só! Um mulato ter a audácia de usar o nome do rei de Portugal...” Henriques era nome que lhe vinha de seu pai, João Henriques de Lima Barreto, um mulato que nascera liberto, filho de escrava com português. Sua mãe, a mulata Amália Augusta, era uma “cria” (possivelmente filha bastarda) da importante família Pereira de Carvalho.

João Henriques, aos 14 anos, já era um excelente tipógrafo e trabalhou em alguns jornais. Mais tarde, com a proteção de Afonso Celso de Assis Figueiredo, visconde de Ouro Preto, conseguiria obter um emprego de tipógrafo na Imprensa Nacional (então chamada apenas de Tipografia Nacional). Com o advento da República, porém, seu protetor, que chefiara o último gabinete monárquico, foi obrigado a exilar-se, e seu protegido foi demitido sumariamente por partilhar o credo monarquista. Como já tinha numerosa família, aceitou um emprego de almoxarife na Colônia de Alienados, situada na ilha do Governador. Nesse emprego manteve-se de 1891 a 1902, quando teve um surto psicótico e foi obrigado a aposentar-se. Todo o encargo da família caiu assim sobre os ombros do primogênito, Afonso, que aos 21 anos foi obrigado a interromper os estudos para cuidar dos irmãos, levando até o fim da vida também o fardo do pai esquizofrênico, encerrado em casa, extravasando seus delírios com gritos lancinantes. João Henriques, que tantos sonhos ambiciosos tivera em relação ao filho mais velho, acabou por se tornar o fator mais forte do fracasso de sua vida. Não resistindo à morte do filho, em 1922, faleceu apenas 48 horas depois dele, e ambos foram enterrados na mesma campa.

Lima Barreto não se casou nunca, e enveredou pelo caminho do alcoolismo muito cedo. Era um solitário, revoltado e deprimido, porque, dizia, “nunca amei nem fui amado”. Em tão penosas circunstâncias – pobreza, doença, frustração sexual e afetiva, exclusão social – desenvolveu, porém, os recursos de seu talento para retratar com pleno conhecimento as minúcias do Rio de Janeiro de sua época, uma sociedade eivada de contradições, marcada pela discriminação e pelo preconceito de várias ordens, em um quadro de total injustiça social.

Lima e Machado

O paralelismo entre as condições de vida em que os dois grandes escritores vieram ao mundo tem sido estabelecido por vários historiadores – separadas embora suas vivências pelo espaço de duas gerações, pois Machado de Assis já contava 42 anos quando Lima nasceu, justamente naquele ano de 1881 em que o bruxo do Cosme Velho, que já ajudara a fundar a Academia Brasileira de Letras, lançaria seu primeiro grande romance da maturidade, Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Os dois partilhavam o problema da pobreza, da origem humilde, da cor. Tanto um como outro ficaram órfãos de mãe muito cedo, Machado aos 10, Lima de 6 para 7 anos. Mas se Joaquim Maria encontrou logo na madrasta Maria Inês uma substituta carinhosa, o mesmo não aconteceu com Afonso, mais fundamente atingido pela tragédia e que confessava ter-se fechado irremediavelmente em si depois da morte da mãe, sem ter nunca mais “crises de alegria”. Em relação às mulheres, conservaria sempre uma timidez doentia, e só conseguia satisfazer seu apetite sexual com prostitutas de baixo nível.

Tiveram, ambos, padrinhos bem situados, políticos importantes, que lhes possibilitaram acesso à melhor sociedade. Porém, se Machado foi criado na casa de dona Maria José de Mendonça Barroso (viúva do senador Bento Barroso Pereira), com o maior carinho, da mesma proteção não gozou o afilhado de Afonso Celso de Assis Figueiredo, que até o primeiro prenome dele herdara. Na verdade, o orgulhoso e distante visconde somente aceitara o apadrinhamento usando seu estoque de solidariedade senhorial para com o humilde tipógrafo de cor, que o idolatrava. O menino Afonso muito pouco conheceu o aristocrático xará que lhe custeava os estudos. Sentia-se mesmo profundamente humilhado com essa situação de dependência. Relata ainda seu biógrafo “um encontro desastroso” entre os dois, quando já entre João Henriques e seu protetor político começavam a esfriar as relações de compadrio. Uma cena ficaria marcada como das lembranças mais desagradáveis da vida, na memória do escritor. O visconde havia deixado transparecer, na má vontade com que recebera pai e filho, o profundo desdém em que os tinha. Teria mesmo dito, em relação à grande ambição que João tinha de fazer o filho doutor: “Todo mundo quer ser doutor...” Em seu Diário Íntimo, muito mais tarde, Lima Barreto faria referência a uma antiga doação do benfeitor, nestes termos: “E os 10$000 do tal visconde. Idiota. Os protetores são os piores tiranos”.

Fosse lá como fosse, a generosidade de Afonso Celso, forçada ou não, permitiria ao menino Afonso ter o privilégio de uma educação formal (coisa que Machado de Assis nunca pôde ter) nos melhores colégios, primeiro em Niterói e depois no Rio de Janeiro, onde foi interno do tradicional Colégio Pedro II, criadouro dos rebentos das famílias abastadas e nobres da Corte.

No campo profissional, também não poderiam diferir mais as carreiras de um e de outro, tanto no jornalismo como na literatura – Machado, aos 16 anos, já contava com a proteção de importantes escritores, como Manuel Antonio de Almeida, e foi imediatamente introduzido e empregado na “grande imprensa” da época, onde sempre se manteve. Na literatura, nunca teve dificuldade de publicar e foi sempre respeitado – teve, sobretudo, tempo para amadurecer suas obras, inclusive por ter vivido muito mais que Lima Barreto. Com um emprego público estável, com a felicidade doméstica desfrutada com Carolina, as antigas condições consideradas “difíceis” de sua vida – pobreza, cor, orfandade, gagueira e epilepsia – foram satisfatoriamente minimizadas ou dissolvidas.

Já Lima Barreto, que partilhava com Machado circunstâncias raciais e econômicas, teve de cumprir um destino de “maldito”. Mesmo como jornalista e escritor, enfrentou sempre dificuldades para inserir-se na grande imprensa de seu tempo, sofreu discriminações de toda ordem, foi obrigado a limitar suas colaborações à imprensa alternativa e a publicar às próprias custas a maior parte de seus livros. E mesmo quando já firmava reputação como romancista, viu-se rejeitado duas vezes justamente “na casa de Machado de Assis” – a Academia Brasileira de Letras. Se Machado conseguiu, porém, manter isenção de julgamento com vistas à obra de Lima, este alimentou conscientemente sua posição crítica em relação à literatura machadiana, definindo seu estilo como “chocho” e seus personagens como “figuras ocas”.

Diferenças de temperamento e de sorte acabaram por colocar essas duas figuras de romancistas – considerados hoje os mais importantes de nossa literatura, antes do modernismo – em polos opostos em termos de sucesso/fracasso existencial. Porque, fator preponderante de desgraça, sobre Lima pairou inexoravelmente, desde muito cedo, também o fantasma da loucura familiar, uma terrível herança genética da qual nunca conseguiria se livrar e que terminaria por vitimá-lo.

A casa da loucura

Em importante tese de doutorado defendida na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Literatura da Urgência – Lima Barreto no Domínio da Loucura, e publicada em 2009 pela Annablume, Luciana Hildalgo examina em profundidade o relacionamento entre a doença mental e a obra do escritor. Ela concentra seu estudo nos escritos que Lima empreendeu ao ser pela segunda vez na vida internado por alcoolismo em um hospital psiquiátrico, em 1919 – o denominado Diário do Hospício, que depois aproveitaria em um romance que deixou inacabado, Cemitério dos Vivos. Nessa circunstância, a escrita teve uma função mais do que catártica para ele. Representou, como diz Luciana Hidalgo, “uma saída de emergência à abstinência, substituta da bebida”.

Salvo à força do delírio etílico, Lima pôde analisar a si próprio e também descrever a própria instituição psiquiátrica de maneira lúcida – com todas as suas incoerências, injustiças, contradições e abusos médicos, que só seriam totalmente expostos cerca de 40 anos mais tarde, por Michel Foucault e pela corrente da antipsiquiatria de Franco Basaglia.

O Hospital de Alienados da Praia Vermelha – fundado em 1852 por dom Pedro II – era, nas primeiras décadas do século passado, uma instituição de caráter carcerário, onde a violência contra os pacientes, inclusive física, era considerada elemento de cura, em um tempo anterior até mesmo a contenções mais científicas, embora também superadas mais tarde, como o eletrochoque. Nesse ambiente se buscava e conseguia a aniquilação da personalidade do paciente, sua integração no estereótipo do “louco”, um ser desprovido de vontade e discernimento, incapaz de gerir a própria vida.

Felizmente para o escritor, ele fora dotado de um temperamento que via na revolta, na contestação, o meio de lutar pela sobrevivência, pela não dissolução do ego. Assim, desde os primeiros dias desse período de internação – como nos descreve Luciana –, ele não se conformou por ter sido internado “como indigente” e tratado como pária social. Não tendo a princípio obtido apoio da equipe médica para suas reivindicações, usou inteligentemente de outros meios para conseguir uma inserção mais digna nas várias classes de internados – graças a um funcionário que trabalhara com seu pai, passou à seção Calmeil, que funcionava em um pavilhão onde ficava a biblioteca. Assim, não somente obteve um alojamento individual, mais condizente com sua condição, como autorização para passar seus dias lendo e escrevendo.

A reclusão hospitalar acabou por lhe proporcionar tempo e tranquilidade para ressuscitar tesouros enterrados na memória: por exemplo, lembrando-se do livro que mais adorara na infância, Vinte Mil Léguas Submarinas, de Júlio Verne, projetava a si próprio no misterioso e antropófobo herói, o capitão Nemo, do Nautilus – homem mítico, capaz de transformar seu submarino em um mundo paralelo. Como diz Luciana Hidalgo, também Lima, como Nemo, “imaginou-se fora da humanidade, um associal vivendo da ilusão do bem-estar à margem da civilização, sem ligação sentimental alguma no planeta”. Partindo dessa utopia, pôde examinar – aos 39 anos – sua existência até aquele momento, de maneira extremamente lúcida. Privado da bebida, estava livre para mergulhar no sonho lúcido que é a literatura.

O grande escritor

A obra completa de Lima Barreto compreende atualmente 11 livros, sendo quatro póstumos. Em 1919, já havia publicado cinco, entre eles seus principais romances, Recordações do Escrivão Isaías Caminha em 1909, Triste Fim de Policarpo Quaresma em 1915, e no próprio ano da segunda internação, 1919, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. São romances voltados para a realidade social e nos quais transparece a ideologia política que adotara desde cedo, o maximalismo antecessor do comunismo, o credo anarquista que o colocava ipso facto na posição de escritor marginal – para ele, a literatura tinha uma função social e o escritor não podia escapar à missão de combater a injustiça.

Com os dois livros que publicou ainda em vida após o período de internação, em especial o inacabado romance Cemitério dos Vivos (1920), as duas linhas de sua trajetória literária, a social e a introspectiva, convergem, enriquecendo de maneira extraordinária a perspectiva sob a qual toda a sua obra está atualmente sendo avaliada, inclusive no exterior.

Durante mais de três décadas após sua morte, Lima era ainda visto como um vago “predecessor do modernismo” e sua obra tida como malfeita, insatisfatória. Somente em 1956, com a publicação de sua obra completa em 17 volumes, sob a direção de Francisco de Assis Barbosa e com a colaboração de Antônio Houaiss e M. Cavalcanti Proença, Lima Barreto começou a ocupar o lugar que verdadeiramente lhe cabe em nossa história literária. Seus romances e contos têm sido traduzidos para o inglês, o francês, o russo, o espanhol, o tcheco, o japonês e o alemão. Teses de doutoramento o tiveram como tema nos Estados Unidos e na Alemanha. Congressos e conferências foram realizados em todo o Brasil, por ocasião de seu centenário de nascimento (1981), resultando em inúmeros livros publicados, entre ensaios, bibliografias e estudos psicológicos do autor e sua obra.

Pois, como afirma o crítico alemão Berthold Zilly em artigo escrito em 2006, “Lima Barreto e a Cultura Nacional”, por ocasião da comemoração dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, Triste Fim de Policarpo Quaresma redescobre o país, “com sua história, sua cultura, suas excelências, mas também com suas mazelas, seus desmandos e os possíveis meios de combatê-los”. A obra, diz Zilly, é uma grande indagação sobre o Brasil, capaz de estimular uma autorreflexão metacrítica sobre o caráter e os destinos da nação.

Diversos escritores jovens estudam hoje a obra de Lima Barreto em toda a sua complexidade, e são várias as teses já feitas ou em andamento nas universidades, tanto brasileiras como estrangeiras. Sua absoluta diferenciação do estilo de Machado de Assis não mais o coloca em posição de inferioridade, como foi anteriormente feito – mas possibilita que sejam ambos avaliados de maneira diversa, pelo valor e originalidade que apresentam em atitudes antitéticas na descrição da sociedade brasileira de seu tempo: Machado destrói a sociedade com um estilo sobriamente corrosivo e fino, enquanto Lima Barreto faz a mesma coisa com sua virulência passional.

Alfredo Bosi, após lhe consagrar dez páginas em sua História Concisa da Literatura Brasileira, classifica o conjunto de sua obra como “de amplo espectro”, por demonstrar “quanto Lima Barreto podia e sabia transcender as próprias frustrações e se encaminhar para uma crítica objetiva das estruturas que definiam a sociedade brasileira do tempo”. Por isso, acrescenta, “a obra de Lima Barreto significa um desdobramento do realismo no contexto novo da 1ª Guerra Mundial e das primeiras crises da República Velha. Sua direção de coerente crítica social seria retomada pelo melhor romance dos anos 1930.”

Revista Problemas Brasileiros

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