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Clementino e os demais sertanejos observadores dos fenômenos meteorológicos fazem parte de uma tradição agrária das mais antigas da civilização humana. Guardam na memória experiências que vêm de muito tempo, de quando a vida dependia exclusivamente da agricultura e as condições climáticas eram fundamentais à sobrevivência da comunidade. A previsão do tempo pela observação dos astros, das plantas, do comportamento dos animais está presente num livro como As geórgicas, do poeta latino Virgílio (século 1 a.C.), obra erudita que influenciou os popularíssimos livrinhos editados em Portugal desde a Idade Média e que chegaram, quase do mesmo jeito, até os dias atuais, no Nordeste brasileiro – os Lunários perpétuos. São eles as matrizes escritas que ainda orientam os profetas da chuva de Quixadá.
O calor é intenso nessa cidade cearense rodeada por monólitos majestosos, fósseis de uma montanha que ocupava parte da região, à margem de um lago salgado, que secou muito antes de a humanidade nascer. A beleza dessas pedras erodidas fez com que o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) tombasse, em 2004, os monólitos de Quixadá como patrimônio natural. A rampa formada pela beira das rochas puídas pelo tempo é também um lugar perfeito para esportes radicais, especialmente o vôo livre. Desde 1988, Quixadá sedia uma das etapas do campeonato mundial. Além do turismo ecológico e dos esportes radicais, a cidade acolhe visitantes que vêm de longe venerar o santuário de Nossa Senhora Rainha do Sertão, no topo da serra do Urucum.
Quixadá também é a terra de Rachel de Queiroz, que ali viveu a vida sertaneja na sua fazenda Não Me Deixes. Próximo da cidade fica o açude Cedro, também um patrimônio preservado: foi construído ainda no Império e inaugurado há exatos 100 anos. Por isso, o Encontro dos Profetas foi bem ali, junto ao paredão do açude, talhado bloco a bloco, pedra por pedra, pelas mãos de escravos.
João Augusto de Sousa não é profeta, mas participa de todos os encontros, para orientar-se no plantio de sua minguada lavoura. Mas, como a maior parte do povo do campo, ele também observa a natureza, sabe ler os sinais. “De 1970 pra cá, tudo mudou. E agora, no século 21, acabou de mudar foi tudo. Eu não sei de nada, mas pelas carreiras do tempo, eu sabia que este ano ia ser igual ao que nós passemo, ou mais fino, né? Mas vamos esperar...”, diz ele, desencantado com o trabalho que exerceu a vida inteira. “Sou um produtor rural fraquim, nasci os dentes trabalhando no mato.
Mas deixei a agricultura, que não dá mais não. Dá não, senhora. É melhor guardar o dinheiro e comprar o mantimento, que sai muito mais barato. Planto uma coisinha só pra comer verde, que eu acho bom.” Seu João senta bem na frente, ouvido apurado, curioso para saber se, segundo os prognósticos dos profetas, vai adiantar ou não plantar “pra comer verde”, isto é, legumes e verduras nas várzeas úmidas, tudo o que restou do seu antigo roçado.
O encontro foi aberto com cantoria de viola, homenagens ao açude e depoimentos de pesquisadores, como a antropóloga da Universidade do Arizona Karen Pannesi, que há mais de um ano convive com os profetas, acompanha-os ao campo, toma nota de sua ciência empírica. Um dos homenageados por ela é Francisco Mariano Filho, o Chico Mariano, que tanto observa os astros para saber de inverno ou verão quanto para dizer sobre a personalidade de quem conversa com ele. “Você é de sol, nasceu de dia, não foi?”, diz o profeta, acertando.
Ele diz, sem hesitar, como pensa que será o inverno deste ano:
“O inverno é mesmo forte em março, o preparo das nuvens não está acontecendo pra ter inverno em janeiro. Qualquer ciência, nós estamos começando ainda. Eu queria ter o saber do cachorro, e eu não tenho. Chego na casa dele, cadê fulano? A esposa diz, foi pro mercado, foi pra tal canto. Aí eu vou perguntando, cê viu fulano? O outro diz, parece que eu vi, passou acolá. Eu saio mais o cachorro dele, o cachorro não pergunta a ninguém, vai direto pra donde está o dono”, filosofa. Chico Mariano, como seus colegas, tem a natureza como enciclopédia viva, dela nutre o corpo e a alma. “Cacei pouco, porque fui prestando atenção à natureza, a sabedoria dela, como é grande”, diz o velho, olhos marejados. Mariano começou a observar o tempo ainda menino. “Por perca de roçado. O papai se mudava, quando o tempo era ruim. Isto é cultura antiga, há mil anos que o homem tem estas experiências. Muitos pássaros, muitas coisas que conheci, hoje são difícil a gente ver. Mas a natureza não mudou, nós é que muda, é que aprende mais, conversa mais. Mas a natureza foi formada antes, viveu milhões de anos só, sem o homem.”
Entre tantos “cientistas” matutos, um engenheiro, economista e astrônomo está ali para aprender, como diz, sem falsa modéstia, apesar dos mais de 30 anos dedicados à observação do clima. É Caio Lóssio Botelho, uma referência nacional nos estudos climáticos. “Das dez reuniões, nunca perdi nenhuma. Estes homens prestam um serviço inestimável não só à cultura, mas até à ciência.
O estudo da previsão das secas é uma necessidade. A seca não deve ser estudada apenas com a razão, mas também com a intuição. Por isso valorizo todos os profetas que se reúnem neste momento. O Homo sapiens tem dois instrumentos na busca da verdade. Um é a razão, o estudo crítico da reflexão do hemisfério cerebral direito. O outro é o da intuição, instrumento que faz parte da estrutura biofísica e psicológica, e que tem sua razão de ser.
A intuição tem levado aos homens uma série de informações em benefício da humanidade. O próprio Einstein utilizou a intuição para fechar a Teoria da Relatividade.”
Caio Lóssio não contou apenas com o saber acadêmico para embasar suas observações. “Elas foram fruto da minha vivência no sertão do Ceará. Meu pai era juiz e serviu em vários municípios, desde o Cariri até a faixa do litoral. E desde jovem acompanhei o sofrimento do agricultor, e aquilo calou profundamente no meu espírito.
Resolvi me dedicar de corpo e alma à pesquisa da seca. E tenho a coragem moral de declarar que os profetas, realmente, têm contribuído profundamente para uma evolução da perspectiva de projeção de seca e de chuva de nossa quadra estacional”, diz. Sobre os prognósticos para este ano, Lóssio comunga com os observadores sertanejos. “O hemisfério sul, pela primeira vez, rompeu o equilíbrio ecológico. Até 2005, você não tinha ouvido falar de ciclone e outros fenômenos de natureza física no hemisfério sul. Isso não existia, foi decorrência da imprudência do homem. O desequilíbrio no hemisfério norte vem desde o século 19, com a Revolução Industrial. Por conta disso, tive que mudar meus cálculos. Mas afirmo que o inverno deste ano começa a partir de 21 de março, com a passagem do equinócio, e deve se estender por todo o mês de abril, maio e, quem sabe, até o mês de junho”, diz.
O PROFETA JOSÉ CLEMENTINO de Almeida vive no município de Ocara, próximo a Quixadá, mas participa dos encontros desde a primeira vez. Para ele, este ano vai ser de um “invernim mei lá e mei cá”. Clementino afirma que inverno bom, só de 2010 em diante. “Eu tenho experiência com o vento, no quarto que eu durmo. Ao meidia, almoço, me deito, abro um radim que eu tenho lá. A porta de entrada fica aqui, aí o vento, pá! Eu digo, quase cochilando, ai, meu Deus do céu! Esta porta não é pra fechar à força, é pra abrir. Quando está próximo de chover, eu abro a porta, a porta bate na parede, pá-pá-pá. É sinal que vem chuva, comadre”, diz o profeta, que além do vento também tem experiência “com os passarim, com sapo, com as lagartas, com borboleta, com tudo quanto tem em riba do chão”.
Clementino conta as observações que fez, para abalizar sua opinião: “O Natal deu uma boa experiência com o inverno, mas deixa lá, que o Natal é do ano velho.
Fui pegar experiência da virada do ano, não gostei. A barra da virada do ano foi quase nada, deu um fuá no tempo, só um encapamento nas nuvens. Esperei o nascer do sol. Quando o sol apontou, olhei lá, lá onde ele tava era uma roda grande, do tamanho de uma tarrafa de 12 palmos, não tinha uma nuvem. Isto, num vermelhão da cor de sangue. Eita, que eu não esperava isso! Sinal de inverno bem fraquim. A estrela-d'alva [o planeta Vênus] passou pro nascente, e ela não resulta bem lá, nós não temos um inverno que preste. Pode escrever que eu assino. Eu não estudei pra isso, mas tenho o dom que Deus me deu”, diz.
Dos profetas presentes naquela manhã de sol ardente, só um tinha menos de 70 anos e não era agricultor, o contabilista José Erismar Nobre da Silveira. “Mas sou filho de agropecuarista, fui criado no sertão.
Os anos de estiagem maltratavam a gente, e eu, conversando com as pessoas de conhecimento, comecei a observar, isto está com uns 30 anos. Mas estou aprendendo, ainda”, diz ele. Erismar observa as nuvens, a neblina em certos dias, as noites de garoa do mês de setembro. Também observa as estrelas, especialmente a estrela-d'alva, “que é muito importante. Se ela fica assim chorosa, com uma nuvenzinha muito rala, o inverno é pouco”. Do que farejou nos caminhos do céu, Erismar diz que haverá chuvas localizadas em fevereiro, mas em março o inverno se confirma. “Em abril, me dá uma preocupação, porque deu um período de estiagem, pelas minhas experiências. Mas se chover no 28 de fevereiro ou 1º de março, a estiagem vai ser pouca. Em maio chove, e é capaz de o inverno ir até a fogueira de São João.”
A platéia, especialmente os pequenos produtores presentes, parece suspirar com certo alívio. Mas entra em cena um dos mais famosos profetas do Quixadá, Chico Leiteiro, que desde os dez anos de idade lê o movimento dos astros, as folhas das plantas, o vôo dos pássaros, o rastro dos bichos da terra, que lhe dizem tão claramente do tempo que virá como se estivesse munido da mais fina tecnologia. Chico Leiteiro só estudou o bastante para devorar velhas edições do Lunário perpétuo. Ele não costuma errar a profecia.
Para 2006, ele prevê uma quadra invernosa “mais ou menos”. Quem lhe contou foram os passarinhos, especialmente os rouxinóis, “que já estão cantando, fazendo ninho. O gavião vermelho já está se aproximando do sertão, é sinal que a chuva não demora. Os tetéus também já estão fazendo enxurrada, cantando, [o tetéu] é o melhor profeta que nós temos. Meio-dia, de tarde, eles revoam, téu-te-téu, é sinal que o tempo vai mudar. Mas ninguém nunca pode divulgar tudo que a gente vê, que as experiências que temos são muitas e não gosto de dar notícia ruim. Confio que há de ter inverno, porque a era de seis [data terminada em seis: 1996, 2006 etc.] nunca negou. E que Deus abençoe todo mundo”, diz Chico Leiteiro, se despedindo.
CLIMA DE ANSIEDADE COLETIVA
O profeta Chico Leiteiro, que tudo vê, não gosta de dar notícia ruim. Está aí uma pista para se entender a real importância dos profetas
da chuva para os agricultores do sertão nordestino. Mais do que fazer previsões acertadas, o que se espera desses leitores da natureza,
no fundo, é a capacidade de mitigar a ansiedade que se forma diante da incerteza do clima. Para isso, prognósticos crípticos, ambíguos
e até omissões podem ter um valor muito maior do que as probabilidades meteorológicas. Essa é a opinião do antropólogo Renzo Taddei,
que já estudou o simbolismo da água e da chuva no sertão cearense, pela Universidade de Columbia, em Nova York, e atualmente colabora com pesquisas da Funceme – Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos.
Os agricultores do sertão se relacionam com os profetas da chuva do mesmo modo que com a meteorologia oficial?
Nos dois casos, é uma relação bastante difícil. Ambos canalizam para si uma grande ansiedade coletiva. Só que a meteorologia não administra bem essa ansiedade, porque não comunica de forma clara o que faz e o que se pode esperar dela, então as expectativas da população acabam sendo pautadas pelo discurso profético. Se um profeta diz que pode prever exatamente o dia em que vai chover, espera-se
que a meteorologia faça o mesmo, ou melhor.
E de que maneira os profetas administram essa ansiedade?
Eles têm uma tendência a fazer bons prognósticos. Não que sempre o façam – este ano é um exemplo em que boa parte deles anunciou
um prognóstico ruim. Mas em 1997, 1998 e 2005, todos com chuva bem abaixo do normal, a maioria anunciou boas chuvas. É compreensível: há diversos casos de profetas que foram acusados de causar a seca, apenas por tê-la prognosticado.
Preferem errar a dar notícia ruim.
Erram, mas não perdem o reconhecimento dos agricultores. Até porque às vezes não dá nem para dizer se alguém errou ou acertou
a previsão. Se um diz que o inverno vai ser “velhaco” ou “desmantelado”, é difícil traduzir isso em chuvas.
De onde vem esse conhecimento empírico do clima e como ele pode ser utilizado na viabilização do semi-árido?
Existem métodos usados pelos profetas do Nordeste que já eram conhecidos no Oriente Médio há milênios, que provavelmente chegaram à Península Ibérica com os árabes e os judeus, e de lá vieram para as Américas. No México e na Espanha, por exemplo, é comum o método das cabañuelas, usado pelo profeta Chico Mariano em Quixadá: alguns dias de estação seca são indicadores para a estação chuvosa. No caso de Chico Mariano, o 1º de julho representa janeiro do ano seguinte.
Mas não dá para dizer se “esse conhecimento empírico” tem potencial porque não há um conhecimento único. Existem diversos métodos populares de prever o clima. Enquanto o profeta chamado Epifânio faz prognósticos baseado na interpretação de sonhos, Chico Leiteiro observa o comportamento dos insetos e animais, Paulo observa estrelas e a posição da sombra do sol durante a estação seca. Alguns desses métodos têm valor de fato, e deveriam ser melhor estudados no mundo inteiro.
Revista Raiz
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