Pedro Malazartes: do sincretismo cultural à resistência pelo riso
por Luciano Fussieger
Graduando em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista de Iniciação Científica pelo programa PIBIC/CNPQ/UFRGS. Orientado pela Prª Drª Ana Lúcia Liberato Tettamanzy. E-mail: lucianofussieger@gmail.com
por Luciano Fussieger
Graduando em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista de Iniciação Científica pelo programa PIBIC/CNPQ/UFRGS. Orientado pela Prª Drª Ana Lúcia Liberato Tettamanzy. E-mail: lucianofussieger@gmail.com
RESUMO: Em se tratando de cultura brasileira, torna-se redundante a afirmação de que esta muito deve às influências portuguesas e africanas. Igualmente redundante seria afirmar que essas influências se fazem notar na tradição oral brasileira, assim como na tradição escrita. Porém, torna-se frutífero e instigante pensar como as culturas formadoras destas tradições se sobrepõem e se cotejam. Este trabalho, examina o entretecimento de elementos culturais portugueses e africanos para formar um elemento presente na(s) atual(ais) cultura(s) brasileira(s), a saber, a narrativa de Pedro Malazartes. O confronto da recorrência dessa narrativa em Portugal (através das coletas de contos orais feitas por Teófilo Braga e Consiglieri Pedroso) e no Brasil (nas coletas de Lindolfo Gomes, Câmara Cascudo e Sílvio Romero) revela um número significativamente maior de narrativas no Brasil. A pesquisa aponta que este fato pode ser visto como resultado de um sincretismo cultural de origem africana. Malazartes no Brasil, diferentemente que em Portugal, se investe de astúcia, inteligência, malícia e "jinga", elementos sincretizados no contato com a tradição oral africana. Assim, no Brasil, o mito de Malazartes pode ser visto como uma narrativa de resistência simbólica frente ao opressor, resistência esta que se dá através do riso, ora ingênuo, ora corrosivo.
PALAVRAS-CHAVE: Malazartes - Resistência - Riso.
SUMMARY: When dealing with Brazilian culture, it has become redundant to affirm that it owes a lot to Portuguese and African influences. As redundant would be to affirm that these influences can be noticed in
Brazilian oral tradition, as well as in the written
one. However, it is fertile and instigating to think
of how the cultures that form this tradition overlap
and conform to each other. This work examines the
intertwining of Portuguese and African cultural
elements to form another element, which is present in
the Brazilian culture(s) nowadays, namely, the
narrative called Pedro Malazartes. The confrontation
of the recurrence of this narrative in Portugal
(through the compilation of oral tales made by Teófilo
Braga and Consiglieri Pedroso) and in Brazil (in the
compilations of Lindolfo Gomes, Câmara Cascudo and
Sílvio Romero) reveals a significantly greater number
of narratives in Brazil. The research shows that this
fact can be seen as a cultural syncretism of African
origin. Malazartes in Brazil, differently from
Portugal, shows a great deal of malice, intelligence,
cleverness and what Brazilians call "jinga", elements
which were syncretised in the contact with the African
oral tradition. This way, in Brazil, the myth of
Malazartes can be seen as a narrative of symbolical
resistance to the oppressor through laughter, whether
naïve or corrosive.
KEY-WORDS: Malazartes - Resistance - Laught.
ORALIDADE, TEXTO E TRADIÇÃO
É crescente e notório o interesse dos estudos "científicos" pelas narrativas de origem tradicionais orais. Diversas áreas do conhecimento humano têm se debruçado sobre essas narrativas e feito delas material de estudo e análise. Exemplos disso são a Antropologia, a Sociologia, a História, a Psicanálise. E cada uma destas diferentes áreas do pensamento atesta, através de suas análises, a importância destas narrativas, ditas populares.
Sendo assim, torna-se um tanto quanto dispensável aqui a discussão sobre a relevância das narrativas tradicionais orais para a área das Literaturas, assim como o porquê do interesse neste tipo de narrativas. É verdadeiramente frutífero pensarmos a literariedade de tais narrativas, bem como sua simbologia e todas as formas hermenêuticas possíveis de serem aplicadas sobre elas, que, a grosso modo, são a voz do povo que as enraíza em sua tradição. Assim, nenhum estudo cultural que se pretenda profundo pode ignorar ou mesmo se afastar destas narrativas.
A dificuldade de trabalharmos com esse tipo de "texto" está justamente nos limites do que compreendemos como texto. As narrativas tradicionais orais estão impregnadas de elementos textuais que estão além da dimensão do papel. Sua face oral as imbui de elementos que se prestam muito mais a uma análise ideológica, semiológica ou sociológica. Como nos afirma J. David Pinto-Correia, em ensaio dedicado a uma teoria sobre esse tipo de texto:
O texto da literatura tradicional constitui, pois, uma "entidade" que tem de ser compreendida não tão simplesmente como o texto literário. Se este se manifesta como única e fixa "superfície fenomenal", já aquele que estamos agora a referir-nos é um todo complexo que abrange primeiramente o sistema englobante, que designamos "apotexto", que é sempre virtual, e, como tal, nunca actualizado (...), o qual, numa dialéctica interna, gera/genera as versões, isto é, as suas realizações, podendo naturalmente, em certos pormenores, por elas ser gerado/generado.
Mas o estatuto do texto da Literatura tradicional torna-se tanto mais complexo quanto mais exige que sempre seja situado na enunciação, no seu extratexto.
[...]O conjunto do fanerotexto ou fanerotextos (variações) e apotexto (texto primário e virtual) completar-se-á com todo o extracontexto social e cultural que o envolve; é o que chamaremos "etnotexto".
Fundamentais, portanto, para o texto da Literatura Popular Tradicional, são as informações sobre os produtransmissores, respectivas atividades, estado e idade, locais de recolha (...) e a própria condição de sujeito enunciador..."[1]
Reconhecer isso é o primeiro passo para quem pretende trabalhar com esse tipo de narrativa. Para esta análise recorre-se às narrativas materializadas em papel através de compiladores, que coletaram as mesmas na oralidade e deram-lhes uma face escrita e cristalizada. Mesmo assim, encontram-se nestas narrativas marcas de sua origem oral. Marcas que aparecem através de uma pequena análise do discurso, onde afloram elementos como: "contaram-me...", "foi assim que eu ouvi...", "se me lembro bem...". Reconhecer a oralidade, mesmo no texto escrito, é importante para não perdermos de vista um dos principais aspectos que caracterizam as narrativas orais, seu percurso dinâmico através do tempo. Estas narrativas, sendo destituídas da barreira da autoria, põem-se em constante e intensa transformação, realizada cada vez que a história é contada e com isso modificada em pequenos elementos que denunciam aspectos referentes ao seu locutor e/ou a seus ouvintes. Posta essa noção numa linha do tempo, temos que as narrativas nos falam de tempos diversos e distantes, e delas ouvimos o processo de transformação e solidificação das tradições e de todos os valores disseminados por estas. Assim, traçando paralelos entre narrativas distintas, mesmo que dentro de uma mesma forma/motivo, chegamos ao objeto desse estudo: as narrativas brasileiras de Pedro Malazartes. Partindo destas, fez-se necessária a busca de narrativas de outras origens, no caso portuguesa e africana. Advém desse paralelismo entre diversas narrativas (identificadas entre si pela semelhança, tanto da forma quanto dos motivos) a pergunta que desencadeou essa investigação, bem como a resposta que se ensaia à mesma.
O MITO DE PEDRO MALAZARTES
O questionamento que se apresentou após as leituras dos contos brasileiros de Pedro Malazartes, confrontados com a leitura dos mesmos contos de origem portuguesa, foi: por que o mito[2] de Pedro é muito mais fértil em solo brasileiro?
Com efeito, se formos contabilizar a recorrência das narrativas de Pedro em Portugal (nas coletas de Teófilo Braga e Consiglieri Pedroso) e no Brasil (nas coletas de Lindolfo Gomes, Câmara Cascudo e Sílvio Romero), salta-nos aos olhos a maior quantidade de narrativas no Brasil. Pondo em dados quantitativos, temos que em Portugal há uma única narrativa coletada, através de Teófilo Braga, intitulada Pedro de Malas-Artes[3], embora algumas outras, a bem da verdade, apresentem figuras semelhantes com outros nomes. Quanto ao Brasil, temos uma maior recorrência da figura de Pedro. Lindolfo Gomes, em seus Contos Populares Brasileiros, recolheu doze histórias de Malazartes e as organizou no que chamou de Ciclo de Pedro Malazartes[4]. Câmara Cascudo, em seu livro Contos Tradicionais do Brasil, recolheu seis histórias de Malazartes[5]. Já Sílvio Romero, em seus Contos populares do Brasil, fez a recolha de um conto intitulado Uma das de Pedro Malas-Artes[6]. Conto esse que, apesar de filho único, parece ser uma espécie de junção de vários motivos/histórias de Pedro Malazartes. Tanto que o próprio Sílvio Romero o classifica como um "conto acumulativo de gênero abundante"[7].
Por essa ótica, vemos que a figura de Pedro parece ser um motivo muito produtivo no imaginário brasileiro, em contraste com o que ocorre no imaginário português. Analisando além do aspecto quantitativo, que não fornece nada mais do que um elemento primário para a discussão, temos que o conteúdo das narrativas brasileiras de Pedro, em contraste com o conteúdo da narrativa portuguesa, é radicalmente oposto. Em Portugal, Pedro Malazartes é identificado como uma personagem ingênua, que encara tudo que lhe é dito de maneira literal. Com isso, se expõe ao ridículo frente às outras personagens que figuram no conto. O que o leva a ser visto como uma pessoa que sofre de certa debilidade mental. Em contrapartida, Malazartes no Brasil se nos apresenta como uma personagem caracterizada, principalmente (e de maneira textualmente ressaltada nos contos), pela inteligência e astúcia. Além disso, aparecem outros elementos espalhados em vários contos, que ajudam a formar a figura de Pedro, que também é identificado como audaz, amoral, vadio e trocista. Tudo isso contrasta com sua pouca força física e com sua condição social de pobreza[8]. Assim, o Malazartes brasileiro, longe de ser um inepto, faz das outras personagens com quem se relaciona figura de ludíbrio. Aqui é interessante uma análise mais profunda. Nota-se que as personagens com as quais Pedro se depara são (com a exceção de duas narrativas) representativas da hierarquia da sociedade. Com efeito, lendo todos os contos coletados pelos já citados autores, temos que, na maioria deles, Malazartes logra proprietários de terras, fazendeiros, homens ricos, enfim, pessoas representantes de uma espécie de elite econômica[9]. Isso nos leva a pensar Pedro dentro da lógica, apontada pelas ciências sociais brasileiras, da malandragem[10]. Dessa maneira, talvez, seja Malazartes a proto-origem da figura do malandro. Este, como nos aponta Da Matta, vive na tensão entre a ordem e a desordem, entre o permitido e o socialmente condenado. O malandro é a personagem da sociedade brasileira que "corre o risco de virar o marginal pleno, deixando assim de fazer parte dos interstícios do sistema, onde vive comprometido no ponto certo do equilíbrio entre a ordem e a desordem."[11].
Malazartes, em sua prática, nos põe à prova as afirmações acima. Da tensão entre sua má vontade para o trabalho e sua astúcia nasce sua maneira de enfrentar o mundo e de nele sobreviver. Tomando todas as narrativas brasileiras de Pedro, dentro das três coletas já citadas, como um corpus de análise, temos que a história de vida de Malazartes se inicia com seu primeiro contato negativo com o mundo do trabalho. Quem nos traz essa informação é Câmara Cascudo, na primeira de suas seis histórias de Pedro.
Um casal de velhos possuía dois filhos homens, João e Pedro, este tão astucioso e vadio que o chamavam Pedro Malazartes. Como era gente pobre, o filho mais velho saiu para ganhar a vida e empregou-se numa fazenda onde o proprietário era rico e cheio de velhacarias, não pagando aos empregados porque fazia contratos impossíveis de cumprimento. João trabalhou quase um ano e voltou quase morto. O patrão tirara-lhe uma tira de couro desde o pescoço até o fim das costas e nada mais lhe dera. Pedro ficou furioso e saiu para vingar o irmão[12].
Vê-se neste trecho a identificação das características, já mencionadas, de Pedro, bem como o início de sua relação com o trabalho, uma relação marcada pelo sentimento de vingança. João, que, ao contrário de Pedro, era trabalhador, sofre o abuso de um patrão rico e cheio de velhacarias. Interessante notar a alusão a um contrato de trabalho que, no decorrer do conto, se mostra com duas cláusulas: primeira, o empregado não podia recusar serviço; segunda, nem empregado, nem patrão poderiam ficar zangados, o primeiro que assim ficasse perderia uma tira de couro das próprias costas. Esse contrato é símbolo da relação legal entre patrão e empregado, símbolo do Estado e de suas leis, que privilegiam o detentor das forças produtivas (no caso do conto, o homem rico que emprega João e Pedro). João é vítima desta relação, que pode ser vista como uma alegoria das relações de trabalho, perdendo literalmente uma tira de couro das costas. Uma violência que, como nos informa Da Matta, é "símbolo claro de uma exploração violenta pela aproximação direta do homem com o animal de carga ou tração e do trabalho com o peso insuportável de uma carga, que tira o couro das costas."[13]. E é essa exploração desumana, do trabalhador por parte do patrão, permitida pelo Estado e suas leis, que Pedro Malazartes procura negar. Sua busca por vingança contra o patrão que tirou o couro das costas do irmão é uma vingança simbólica contra a relação de exploração permitida pelo Estado-Nação. Malazartes nega esse Estado através de sua relação com ele: se utiliza das brechas deixadas pelo próprio Estado e por suas leis. É o que nos mostra o desencadeamento do conto acima citado. Nele, após a volta de João à casa dos pais, Pedro se emprega com o mesmo patrão, submetido ao mesmo contrato que o irmão aceitara. Então, inicia sua vingança apoiado nos interstícios do referido contrato. Ocorrem uma série de episódios em que Malazartes, através de sua astúcia, contorna as velhacarias do patrão ganancioso. Primeiro o patrão manda Pedro trabalhar nas plantações de milho. Junto com Pedro vai uma cachorrinha. Pedro, segundo as ordens do patrão, só pode voltar para almoçar quando a cachorrinha assim o quiser. Chegando próximo ao meio dia, Pedro desfere uma paulada na cachorra, que sai correndo pra casa e com ela vai Malazartes. À tarde, quando volta à plantação, Pedro só ensaia o gesto e a cachorra já sai correndo de volta. No segundo dia, o patrão propõe que Pedro limpe o roçado de mandioca. Pedro assim o faz, literalmente. Ele arranca todas as plantas, deixando o roçado completamente vazio. Num outro dia, o patrão pede que Pedro traga uma carga de "madeira sem nó". Malazartes corta todo o bananal, explicando ao patrão que bananeira é madeira sem nó. Em outra feita, propõe o patrão que Malazartes coloque uma carroça e sua junta de bois dentro de uma sala, não podendo eles passarem pela porta. Pedro pega o machado, corta a carroça em pedaços, mata os dois bois, esquarteja-os e joga tudo dentro da salinha, pela janela. Outro dia, ao ser mandado vender um bando de porcos na feira, Malazartes os vende, fica com o dinheiro, mas corta-lhes a ponta do rabo. Em seguida, enterra as pontas num lamaçal, indo dizer ao patrão que eram os porcos que lá estavam. O patrão, desesperado, manda Pedro até a casa buscar duas pás. Ele vai e fala para a mulher do patrão que este quer dois contos de réis[14]. A velha não acredita e Malazartes, pedindo confirmação ao patrão, aponta pra ele com os dedos, mostrando dúvida se um ou dois. O patrão confirma que são dois e sua mulher dá o dinheiro, que Pedro toma para si. Não agüentando mais o empregado, o patrão resolve matar Pedro. Fala com ele e diz que há um ladrão por perto e que à noite os dois lhe farão uma tocaia. A idéia do patrão era matar Pedro dizendo que o confundira com o ladrão e assim escapar das autoridades. Pedro desconfia da história e à noite, quando devia render o patrão na tocaia, ele acorda a mulher deste dizendo que o ladrão está do lado de fora da casa e que ela deve ir lá com uma espingarda para ajudar a cercá-lo. Quando ela sai, o patrão de Pedro mata-a pensando ser Malazartes. Assim que ouve o tiro, Pedro aparece e acusa o patrão de assassinato. Este paga uma grande soma em dinheiro para Pedro se calar frente às autoridades e acrescenta uma quantia ainda maior para se ver livre de Malazartes. Assim, Pedro volta para casa rico e tendo vingado o irmão.
Interessante é notarmos que essa vingança se faz através do uso do próprio contrato proposto pelo patrão. Só que Pedro o interpreta a seu favor, da sua maneira e de forma literal. Isso se repete em outro conto de mesmo motivo. Neste, Pedro se depara com um "homem rico e muito avarento"[15], que não pagava pelo serviço dos empregados pois propunha a estes apostas impossíveis de serem ganhas. Pedro se emprega com esse homem. As condições propostas foram que Pedro deveria trabalhar trinta dias sem pedir a conta, se conseguisse fazer isso o homem pagaria três vezes o ordenado, caso contrário, Pedro deveria ir embora sem nada. A primeira ordem do patrão a Pedro foi para ele atravessar mais de duzentas ovelhas por uma garganta estreita. Muitos empregados tinham tentado e desistido, mas Pedro, sendo muito astuto, amarrou uma ovelha pela perna, puxando-a através da garganta, e as outras a seguiram sem problemas. O homem não deu lugar para Pedro dormir, dizendo que este deveria se arranjar em qualquer lugar. Malazartes subiu no armário onde se guardava a comida, não deixando ninguém chegar perto, dizendo ser aquele seu lugar de dormir. Não tendo outra alternativa, o patrão teve que deixar Pedro comer sua comida. Outra tarefa proposta a Malazartes repete a cena do carro de boi descrita no conto já tratado. Os bois também são personagens de outra tarefa de Pedro. Indo o homem viajar, pediu ele a Pedro que cuidasse do rebanho e deixou ordens expressas para Malazartes, dizendo que quando voltasse queria ver o gado sorrindo de tão saudável. Quando o homem voltou de sua viagem, encontrou o gado com os lábios cortados e os dentes à mostra como se estivesse sorrindo. Não tendo dúvidas, o homem pagou o ordenado triplicado a Malazartes e o mandou embora.
Assim se ilustra a idéia já mencionada de que a figura de Malazartes, sendo imbuída dos elementos da malandragem, tem em si o conhecimento da liminariedade das estruturas estatais e de suas leis, vivendo nesse e deste interstício. Outra coisa interessante é o final do primeiro conto, onde se afirma que Malazartes volta pra casa rico. Essa relação de riqueza é uma relação transitória, efêmera, pois a não ascensão social é recorrente nas narrativas de Pedro Malazartes. Cada vez que Pedro consegue ludibriar algum homem rico tirando-lhe alguma grande quantia de dinheiro, este é gasto de maneira dita ou implícita: "Quando chegou a cidade, Pedro meteu-se em divertimentos com os estudantes e gastou todo o dinheiro"[16], "Foi então que Pedro se encontrou com um de seus irmãos, com quem gastou em pândegas muito dinheiro."[17] Parece se tratar de um elemento constituinte de sua lógica e de sua figura a falta de vontade de se estabelecer, de se fixar, de criar raízes e, principalmente, de ascender na hierarquia social. Isso transparece nas narrativas como uma conseqüência da vontade de Malazartes de ser livre, solto, de correr mundo. Se olharmos no escopo de todas as narrativas de Pedro, encontraremos uma delas, na coleta de Câmara Cascudo, onde temos a afirmação de que "não podendo ficar sossegado, Malazartes largou a casa indo correr mundo"[18].
Sabendo que a figura de Pedro é de origem européia (e aqui, está representada pelos contos portugueses), é um tanto quanto estranho essas características do mito no Brasil. Na tradição oral européia temos como constantes as histórias que trazem exemplos de personagens que ascenderam socialmente dentro da hierarquia da sociedade na qual estão inseridas, tanto através de feitos grandiosos, quanto através da inteligência. Mas a figura brasileira de Malazartes não se identifica com essas ascensões. Pelo contrário, Malazartes preza, acima de tudo, sua liberdade, sua condição de vagamundo. Pedro, no Brasil, está preocupado em desfrutar a vida e sua juventude. Esse elemento estrangeiro às narrativas portuguesas faz com que se pense em uma relação de troca, de fusão da figura européia de Malazartes com as de outras culturas postas em convivência no solo brasileiro. Creio que aqui é possível assumir a origem africana desses elementos dos quais o Malazartes brasileiro se constitui. Com efeito, para qual cultura era de interesse pôr em xeque as estruturas sociais vigentes no Brasil? Para qual cultura o valor da liberdade era mais caro? Dentro da relação patrão/empregado, detentor/desprovido, dominador/dominado, qual cultura formadora da nação brasileira[19] teve mais interesse em negar o valor do trabalho, e todas as ideologias de crescimento e ascensão social vinculadas a este? Parece-me que a resposta se configura como a cultura negra, a cultura africana[20].
O SINCRETISMO CULTURAL NA FIGURA BRASILEIRA DE PEDRO MALAZARTES
Essa afirmação não é feita do nada. Há indícios textuais nas narrativas brasileiras de Malazartes que nos remetem ao período escravagista no Brasil. Além disso, buscando subsídio textual para este estudo, temos que no imaginário africano (aqui representado pelos contos moçambicanos coletados por Lourenço do Rosário) aparecem figuras mítico/simbólicas cujo papel é idêntico ao do Malazartes brasileiro. No caso da coleta mencionada, temos um ciclo de histórias onde a personagem é caracterizada pela sua astúcia e inteligência, com as quais enfrenta as situações dramáticas postas nas narrativas. Esses contos aparecem sob a roupagem de fábulas onde temos a figura do Coelho numa simetria de caráter perfeita com a figura brasileira de Pedro Malazartes. Além do Coelho, temos outras figuras animais que se encaixam nessa simetria perfeita com Malazartes; estes são o Macaco e a Aranha.
No livro Maravilhas do Conto Africano há um conto intitulado Como Deus se Separou do Homem[21],onde temos a figura da Aranha Ananse que, através de sua extrema inteligência e astúcia, consegue enganar até o deus criador, Wulbari. Esse conto, apesar de não pertencer diretamente ao corpus de análise, traz um elemento de semelhança extrema com o conto de Malazartes coletado por Sílvio Romero. Com efeito, dentro do texto aparece a figura da Aranha pedindo ao deus criador uma espiga de milho e prometendo em troca cem escravos. O deus criador dá a espiga de milho à Aranha, conhecida e respeitada por todos pela sua inteligência e astúcia, e ela segue rumo a uma cidade. Durante a viagem, Ananse vai trocando a espiga de milho por diversos produtos. Estas trocas são mediadas por sua capacidade de ludibriar pessoas importantes como proprietários de terras e reis de nações tribais. As trocas que Ananse vai fazendo são literalmente as mesmas que Pedro faz no conto brasileiro, inclusive se utilizando do truque com o cadáver que termina com o ciclo de trocas e a realização da transformação da espiga de milho em cem escravos. Mesmo não pertencendo ao corpus de análise, que se restringe às narrativas coletadas em nações africanas de colonização portuguesa, este conto tem uma força enorme de argumento para a afirmação de que o Malazartes brasileiro muito deve (no que tange a sua índole, comportamento e imaginário) à condição sincrética entre as culturas portuguesa e africana. Voltando ao corpus de análise, ou seja, às narrativas moçambicanas, temos a figura do Coelho que também estabelece, como já foi dito acima, uma relação de perfeita simetria com o Malazartes brasileiro. Para efeito de comparação, temos que Lourenço do Rosário classifica os contos coletados[22] de acordo com dois critérios. O primeiro de ordem morfológica, e o segundo de ordem temático-antropológica. O que aqui nos interessa é a segunda classificação, onde ele afirma pertencerem os contos em torno da figura do Coelho às narrativas de "animais pequenos antropomorfizados que, pela sua esperteza, vencem os animais maiores a mais fortes"[23]. Essa classificação por motivo nos remete às afirmações que fizemos em torno da figura de Malazartes e de sua relação com as personagens ludibriadas. Parece que tanto o Coelho das narrativas moçambicanas quanto o Malazartes das narrativas brasileiras se utilizam de astúcia e inteligência para resistirem frente ao dominador (os animais mais fortes, no caso do Coelho, e os proprietários de terras e poderosos, no caso de Malazartes). Indo aos contos propriamente ditos, temos outras semelhanças que aparecem de forma textual. O caráter de amoralidade que conferimos às ações de Pedro também se aplica às ações do Coelho que, em várias narrativas, propõe aos outros animais que ambos matem suas mães para aumentar seu estoque de comida. Em outras narrativas como Ano de Sol e O Coelho e os Macacos, ele provoca a morte de outros animais, o que se assemelha à primeira narrativa de Malazartes aqui tratada. Temos também posto, em algumas narrativas, a característica de ser o Coelho, da mesma maneira que Pedro, avesso ao trabalho[24]. Assim temos, literalmente:
Foi numa temporada em que não chovia e a seca assolava toda a mata. Os animais morriam de sede.
Vai daí, todos eles se reuniram para encontrar a solução do problema. "Procurar água de todas as maneiras possíveis".
Os animais começaram por cavar, cavar, não encontraram nada. Então resolveram cortar árvores para ver em qual delas seria possível encontrar água.
O coelho, porém, que tinha sido convocado como os outros, recusou-se a participar, dizendo: "Não preciso procurar água, basta-me o orvalho da manhã."[25].
Um dia, o leão convocou todos os animais para efectuarem queimadas e abrirem campos de cultivo, porque avizinhou-se a época das cheias e com ela viria a fome.
O coelho respondeu: "Eu não vou trabalhar porque me basta a cinza para sobreviver ". O emissário do rei ficou muito admirado mas foi comunicar ao leão que o coelho tinha se recusado[26].
Assim, a afirmação de que houve um sincretismo[27] cultural entre a figura européia de Malazartes e a Weltschaung dos escravos africanos provém desses elementos textuais, encontrados nas narrativas orais tradicionais de origem africana, fundidos com os elementos contidos nas narrativas brasileiras de mesmo caráter onde figura o mito de Pe onddro Malazartes... Retomando, temos elementos textuais implícitos como:
- A relação das personagens ludibriadas por Malazartes e seus lugares na sociedade, dados através de suas posses: "empregou-se numa fazendae o proprietário era rico e cheio de velhacarias"[28], "Ao anoitecer estava diante de uma casa grande e bonita, alpendrada"[29], " O dono desse pomar era homem rico e violento"[30], "Um homem rico e muito avarento"[31], "[...] o fazendeiro havia de vir no seu rasto[...]"[32], "E foi dar no castelo de um ricaço[...]"[33], etc;
- A relação estabelecida entre as posses e o caráter de quem possui. Como exemplo dessa relação temos os pares binários acima;
- A não vontade de ascensão social por parte de Pedro Malazartes e seu desapego material; e, como conseqüência,
- Seu forte apego à liberdade.
Além disso, há indícios explícitos em algumas narrativas que se referem a um contexto temporal onde temos instaladas as relações de escravidão. Numa destas narrativas, dentro da coleta de Lindolfo Gomes, temos transcrito que a senhora da casa vai em auxílio de sua "mucama", e algumas linhas à frente temos que o senhor da casa, após a descoberta de uma traição por parte da mulher, "moeu os ossos tanto da senhora como da escrava[34]". Na narrativa coletada por Sílvio Romero também encontramos esse tipo de indício. Nessa história, Pedro Malazartes vai até o Rei pedindo-lhe três botijas de azeite e "prometendo-lhe em troca três mulatas moças e bonitas"[35]. Temos que concordar que essa troca é um tanto quanto estranha e só se torna possível na condição de que pessoas, no caso as mulatas, sejam tratadas como moeda de troca. O conto tem como mote a esperteza de Malazartes, que, através de uma série de artimanhas, vai trocando as botijas de azeite por outros produtos: as três botijas de azeite por três galinhas, estas por seis perus, estes por seis ovelhas, as ovelhas por seis bois, estes, por sua vez, trocou Malazartes por ouro. Indo mais adiante, Pedro encontrou um grupo que ia enterrar uma moça defunta. Pediu-lhes para que deixassem ele enterrá-la, todos concordaram. Então Malazartes encheu a defunta de ouro e foi pedir abrigo num rancho dizendo ser a moça filha do Rei. Concederam-lhe pouso e Pedro deixou ordens aos empregados para que, caso a filha do Rei chorasse à noite, era para lhe darem uma surra, coisa a que ela estava acostumada. De fato, no meio da noite foi Pedro para debaixo da cama da defunta e começou a fazer um barulho como se esta estivesse chorando. Como foram instruídos, os empregados da casa bateram muito na defunta, até Pedro parar com o barulho. Assim que os empregados saíram do quarto, Pedro se foi. Pela manhã Pedro acordou e pediu pela moça, pois queria seguir viagem. Foram acordá-la e constataram que estava morta. Malazartes fez um escândalo enorme dizendo que a moça era filha do Rei e que estavam todos condenados. O dono da casa, muito assustado, oferece qualquer coisa em troca. Pedro recusou tudo, até que "exigiu três mulatas das mais moças e bonitas. O homem rico as deu[...]"[36]. Vemos uma clara relação com a escravidão nessa narrativa. O fato das moças exigidas por Pedro serem mulatas e o tratamento recebido por elas ser de mercadorias que podem ser dadas, remete aos tempos de escravidão[37]. Enfim, parece claro que o tempo em que se passa a maioria das narrativas brasileiras de Pedro Malazartes nos remete ao período da escravidão no Brasil. Não quero dizer que a origem dessas narrativas se encontra enclausurada nesse período histórico, mas afirmo que o imaginário dessas narrativas se encontra num tempo histórico em que as relações e a hierarquia social se construíam a partir das estruturas latifundiárias e da mão de obra escrava. Dentro desse mundo, Malazartes é figura de negação, de resistência, é a contradição, é o anti-herói, ou melhor, é o herói, só que do lado do oprimido. Sua figura procura contrapor-se a esse sistema social, sua estrutura e relações. Logo, posso afirmar que o discurso de resistência parte daqueles atores sociais que se encontram na margem, no limiar dessa organização social. A proposta contrária a esta ordem das coisas só pode partir daqueles que não encontram seu espaço dentro dessa ordem. Papel este que recai sobre os escravos africanos. Assim, retomando a idéia de resistência cultural através do sincretismo entre a figura européia de Pedro Malazartes com elementos da tradição oral africana, afirmo ser Malazartes no Brasil um mito de desconstrução de um sistema social. Desconstrução esta que se dá através do cômico, do sarro e do riso, ora irônico, ora corrosivo.
RESISTÊNCIA ATRAVÉS DO RISO
A esse respeito apelo um pouco para as teorias acerca do cômico.
Em seu elucidativo ensaio intitulado De que se riem os índios?, o antropólogo francês Pierre Clastres nos chama a atenção para o fato de que, em se tratando de narrativas orais, há uma tendência à hiperinterpretação simbólica destas narrativas, indo algumas análises parar somente no limite dado pela ontologia. Assim nos diz Clastres, num tom irônico frente a essa seriedade intelectual casmurra:
Tomando decididamente a sério as narrações dos "selvagens", a análise estrutural ensina-nos, desde há alguns anos, que essas narrações são precisamente muito sérias e que nelas se articula um sistema de interrogações que elevam o plano do pensamento mítico ao plano do pensamento propriamente dito.[38]
Adiante, Clastres nos aponta um elemento novo para pensarmos determinadas narrativas orais, algo que os antropólogos, versados nas técnicas estruturais, não concebiam como instância (séria) de significação.
Não menos sérios para aqueles que os contam (os índios por exemplo) do que para aqueles que os recolhem e os lêem, podem contudo os mitos desenvolver uma intenção marcada pelo cômico, por vezes preenchendo a função explícita de divertir os auditores, de desencadear a sua hilaridade. Se tivermos a preocupação de preservar integralmente a verdade dos mitos, é preciso não subestimar o alcance real do riso que eles provocam e considerar que um mito pode ao mesmo tempo falar de coisas graves e fazer rir aqueles que o escutam.[39]
Essa é a idéia que nos aproxima das narrativas brasileiras de Malazartes e que pretendo reter aqui, a questão de que estamos trabalhando com narrativas de profundo caráter cômico, sendo que este deve ser, necessariamente, uma instância de significação. Quanto à hilaridade comentada por Clastres no trecho supra citado, nos remete novamente à natureza oral das narrativas aqui trabalhadas, fato esse que foi problematizado no início do ensaio. Como as questões extratextuais se perderam para nós, não temos como analisar o tipo ou intensidade do riso que as narrativas de Malazartes provocavam/provocam em seus ouvintes. Essa instância se perdeu no momento da coleta, ou está ainda atuante nos grupos que se utilizam destas narrativas, mas que, mesmo assim, está inacessível para efeitos desta análise. O que nos interessa, e o que Clastres nos traz de positivo, é a capacidade de pensarmos os textos de Malazartes dentro da, já apontada, lógica de desconstrução, de crítica social, sem perdermos um traço presente e significante do texto: o seu caráter cômico. Essa relação entre texto cômico e crítica social também foi apontada por Propp, em seu estudo Comicidade e Riso, onde ele analisa textos provindos da tradição oral russa. Para Propp essa relação é imediata nas narrativas onde temos uma personagem que faz outra de boba, objeto de riso, de embuste. Narrativas estas que Propp analisa no capítulo quinze do livro citado, intitulado O fazer alguém de Bobo. Sua análise deste tipo de conto leva-o a afirmar que
Contos maravilhosos como esses representam para o homem atual um certo mistério. O riso surge aqui cínico e como que desprovido de sentido. Mas o folclore tem suas próprias leis: o ouvinte não as relaciona com a realidade; trata-se de um conto maravilhoso, não de histórias verídicas. O vencedor tem razão só pelo fato de vencer, e este gênero de conto não se condói nem um pouco dos crédulos bobalhões que são vítimas de peça pregada pelo bufão. Esses contos maravilhosos assumem facilmente o caráter de sátira social. Os enganados são o pope ou o patrão e o enganador é o peão da roça. O peão arruina e até mata o pope, estropia e corta em pedacinhos os seus filhos, desonra-lhe a mulher e a filha ou atira a mulher no precipício - e tudo isso sem a menor piedade, porque no folclore o povo não sente nenhuma compaixão para com os próprios inimigos, sejam estes os tártaros do epos, os franceses das canções históricas sobre Napoleão ou os proprietários de terras e os popes dos contos maravilhosos.[40]
Com efeito, vemos essas relações citadas por Propp dentro das narrativas do Malazartes brasileiro. O que nos falta agora é apontarmos como isso transparece no corpo das narrativas.
Evoquemos como ponto de partida novamente a comparação da figura portuguesa de Pedro com a brasileira. Já foi mencionado que, em Portugal, Malazartes aparece como uma personagem que interpreta tudo que lhe é dito de maneira literal, transformando-se, assim, numa figura ridícula. Em Portugal, Malazartes é o agente receptor, o motivo do riso, é a personagem que centraliza em si mesmo o cômico. Em contrapartida, no Brasil, Malazartes se reveste das características que nos levaram a inseri-lo dentro da lógica da malandragem. Aqui, Malazartes é astucioso, ardil, embusteiro; ele é o agente provocador do riso, pois, através de sua inteligência, sempre leva vantagem sobre as personagens com quem se relaciona dentro dos contos, e o cômico aparece através do resultado dessas relações. Podemos indicar dois elementos textuais como os agentes do cômico dentro das narrativas brasileiras de Malazartes. O primeiro é o cômico identificado com elementos escatológicos, o que podemos chamar de o cômico do baixo corporal. Este elemento de comicidade aparece nas narrativas em que Malazartes, através de sua lábia e astúcia, consegue fazer com que outras personagens (sempre dentro da lógica de que estas representam pessoas abastadas, ricas, mas que, em contrapartida, são facilmente enganadas) lhe dêem dinheiro em troca de "produtos" nada convencionais. Nas três coletas brasileiras temos que Malazartes faz dinheiro com cadáveres, sendo que na história coletada por Lindolfo Gomes o cadáver em questão é o da própria mãe de Malazartes. O mecanismo para essa façanha já foi explicado acima, quando se tratou do conto coletado por Sílvio Romero. Nas coletas de Lindolfo Gomes e de Câmara Cascudo temos também outros dois episódios onde afloram esse cômico de ordem escatológica, nascido do estranho comércio praticado por Malazartes. Contam-nos os dois coletadores que Pedro também vende um urubu a um rico fazendeiro, dizendo a este que o animal era vidente. Mas, sem dúvida, a narrativa que leva esse tipo de comicidade (atrelada à escatologia) a um extremo é aquela que narra como Malazartes vendeu as próprias fezes, camufladas sob o seu chapéu, a um homem que passava, ao qual disse tratar-se de um lindo e raro passarinho. Essa narrativa aparece tanto em Câmara Cascudo quanto em Lindolfo Gomes, que também coletou uma segunda narrativa dessa ordem, sugestivamente intitulada De como Malazartes fez mais uma que parecia duas. Nesta, nos contam a vez que Malazartes, estando na casa de um rico e respeitado juiz, sentiu um "chamado irresistível da natureza" e, não tendo outra alternativa, teve que satisfazer suas necessidades dentro da cartola do anfitrião.
O segundo agente da comicidade dentro das narrativas brasileiras de Malazartes provém do mecanismo de inversões dos papéis representados pelas personagens, onde, como nos diz Bergson, "teremos quase sempre diante de nós um personagem que prepara a trama na qual ele mesmo acabará por enredar-se"[41]. Os dois primeiros contos tratados neste ensaio são os melhores exemplos desse tipo de mecanismo cômico. Temos dois patrões que fazem, um através de um contrato e outro através de uma aposta, com que seus empregados trabalhem sem receberem pagamento financeiro. Realidade essa que Malazartes vai quebrar ao interpretar as condições, tanto do contrato quanto da aposta, a seu favor, produzindo assim uma inversão. Ao final, Malazartes torna-se rico sem ter trabalhado, e, o que é pior, tendo causado um enorme prejuízo material para ambos os patrões.
Esse segundo mecanismo leva a pensar as narrativas de Malazartes num contexto mais amplo que o estritamente textual (já que se tratam de narrativas orais isso nos é permitido, mesmo que dentro do campo da especulação). Parece que esse mecanismo de inversão não está somente posto naqueles contos onde ele realmente aparece de maneira textual. Penso ser esse o mecanismo que subjaz a todas as narrativas brasileiras de Malazartes (e é importante ter em mente que, como defendemos neste ensaio, estas narrativas são o resultado do sincretismo entre as culturas portuguesa e africana). Como já sabemos de antemão, ele é o agente provocador do riso que, através de sua inteligência, astúcia, lábia, amoralidade e jinga, vai terminar o conto em vantagem com relação às demais personagens. Estas, por sua vez, são, em todos os contos, explícita ou implicitamente, agentes sociais que ocupam posições superiores a de Malazartes dentro da sociedade. Esse ponto já foi mencionado inúmeras vezes ao longo do ensaio, mas é de interesse para entendermos o porquê da comicidade dos contos de Malazartes. Se o mecanismo de inversão é válido dentro do texto, também é válido dentro da sociedade e é igualmente cômico quando temos uma inversão dos papéis sociais, quando o dominado vence o dominador, quando o despossuído suplanta aquele que detém os bens materiais.
Estes fatos vêm corroborar a idéia já expressa de que as narrativas brasileiras de Pedro Malazartes são de desconstrução de uma realidade social, fato este que, é bom ressaltarmos, está presente nas próprias narrativas. Desconstrução que se dá através do riso, pois, sendo este um fenômeno estritamente coletivo, deve ter, como nos afirma categoricamente Bergson, "uma significação social"[42].
Talvez seja função do riso, provocado por essas narrativas, trabalhar com os traumas provocados por uma sociedade injustamente organizada sobre a exploração do trabalho, já que, como foi demonstrado, muitas narrativas nos remetem ao tempo da escravidão. Assim, o riso provocado pelas narrativas de Malazartes desconstrói e questiona uma realidade, fazendo com que aqueles que riem possam, mesmo que imaginariamente através do simbólico, exercer sua vingança e apresentar seus sonhos de liberdade. Mas, afirmar isso seria adentrar no campo da psicologia social e de maneira extremamente especulativa. Apesar disso, o que podemos afirmar categoricamente é que essa análise, exposta ao longo destas páginas, pode ser aplicada e visualizada no corpo das próprias narrativas, ficando a cargo do leitor a aceitação, ou não, deste último vôo hermenêutico.
Retomando e concluindo.
Parti da comparação entre a figura portuguesa e brasileira de Pedro Malazartes, vendo que em solo nacional esta é mais recorrente. Desencadeou-se desta constatação a pergunta cuja resposta foi ensaiada: por que, afinal, Malazartes é mais frutífero no Brasil? Minha resposta partiu da análise qualitativa dos contos tanto portugueses quanto brasileiros, constatando, então, que há uma diferença crucial quanto à caracterização do Malazartes brasileiro em relação à do português. Para explicar essa dicotomia fui a outras fontes formadoras da cultura brasileira, propondo que houve um sincretismo entre a figura de Malazartes (cuja origem é européia) e personagens da tradição oral africana, que lhe emprestaram suas características (inteligência, astúcia, jinga, etc). Isto, ao meu ver, tem um significado profundo, pois as narrativas brasileiras de Pedro Malazartes dramatizam uma realidade social. Realidade esta que, como tentei mostrar, se baseava na relação de exploração do trabalho escravo. Malazartes, no Brasil, vem desconstruir essa organização através do cômico, do riso. Assim, as narrativas brasileiras de Pedro Malazartes são representações simbólicas onde temos a dramatização que inverte papéis sociais, propondo o questionamento de valores (trabalho, riqueza) em prol de outro (liberdade) e a desconstrução da ordem social vigente. Isso me levou a inserir Malazartes dentro da lógica da malandragem, pondo-o no rol dos, literalmente, anti-heróis, a exemplo de João Grilo e Macunaíma, sendo estes os heróis mais dignos de admiração por parte da grande massa do povo brasileiro. Pena não o serem de fato...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bergson, Henri. O Riso, ensaio sobre a significação do cômico. 2ª ed. ED. Guanabara. Rio de Janeiro, 1987.
Braga, Teófilo. Contos Tradicionais do Povo Português. V.1, 6ª ed. ED. Dom Quixote. Lisboa, 2002.
Cascudo, Luís da Câmara. Contos Tradicionais do Brasil. ED. Ediouro. Rio de Janeiro, s.d.
Clastres, Pierre. Do que riem os índios? In: A Sociedade contra o Estado, Investigações de antropologia política. ED. Afrontamento. Porto, 1979.
DaMatta, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis, para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ª ed. ED. Rocco. Rio de Janeiro, 1997.
Gomes, Lindolfo. Contos Populares Brasileiros. 3ª ed. ED. Melhoramentos. São Paulo, 1965.
CORREIA, João-David Pinto. Para uma teoria do texto da Literatura Popular Tradicional. In: GUERREIRO, Manuel Viegas (coord.) Literatura Popular Portuguesa: Teoria da Literatura Oral/Tradicional/Popular.Lisboa: ACARTE: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992.
Maravilhas do Conto Africano. Silva, Fernando Correia da. ORG. ED. Cultrix. São Paulo, 1962.
Pedroso, Consiglieri. Contos Populares Portugueses. ED. Landy. São Paulo, 2001.
Propp, Vladimir. Comicidade e Riso. Ed. Ática. São Paulo, 1992.
Romero, Sílvio. Contos populares do Brasil. ED. Livraria José Olympio. Rio de Janeiro, 1954.
Rosário, Lourenço do. Contos Africanos. 1ª ed. ED. Texto. Lisboa, 2001.
Revista MUFUA - UFSC
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