Azerbaijão – a geopolítica do romance de Ali e Nino
por Paulo Antônio Pereira Pinto
06/11/2009
Já se tornou lugar comum dizer que a região ao Sul do Cáucaso, onde se situam Armênia, Azerbaijão e Georgia, é área de conflitos reais e potenciais, desde a extinção da URSS – a cuja União pertenciam – em 1991. Ademais, afirma-se, os povos desta parte do mundo nunca teriam sido capazes de viver em paz.
A confluência de interesses étnicos, religiosos, nacionais e internacionais antagônicos contribuiria para tal instabilidade. Daí, caberia esperar, apenas, a continuidade de disputas intermináveis e insolúveis. Novas teorias geopolíticas continuam, então, a ser formuladas ou ressucitadas para justificar este cenário de caos possível e permanente. Em contrapartida, registros históricos e obras literárias, como a narrativa sobre “Ali e Nino”, por exemplo, indicariam disposição regional no sentido contrário a tais interpretações.
Este artigo pretende recorrer a ambos: a raciocínios geopolíticos, que advogam os contenciosos; e a escritos, que traçam panorama mais “light” das coincidências regionais. Cabe lembrar, a propósito, que no território hoje ocupado pelo Azerbaijão, há cerca de 3.500 anos, floresceu o Zoroastrismo, divulgado pelo Profeta Zaratustra, que pregava o monoteísmo, advogava a igualdade das mulheres, confiava apenas no diálogo direto com Deus – sem a intermediação de sacerdotes– condenava o sacrifício de animais e a noção de milagres. Denunciava o flagelo de guerras religiosas, que causassem destruição em nome de uma fé ou de outra.
Zaratustra recomendava o entendimento dos elementos terrestres e a existência de um Deus. E três regras para viver bem: bons pensamentos, boas palavras, bons feitos. Também defendia a crença na natureza purificadora do fogo, que é pensamento fundamental de sua fé e simboliza o Todo Poderoso.
A palavra persa para fogo é “azer”. Assim, desde a antiguidade, a abundância de gás, que provocava explosões em suas montanhas, levou o Azerbaijão a ser conhecido como o centro do Zoroastrismo.
Isto é, não seria correto afirmar que esta parte do mundo estaria condenada a turbulência permanente, por sua multiculturalidade, multi-religiosidade, multi-etnicidade e multiquase-tudo. Até o inicio do Grande Jogo, disputado pelos imperialismos extraregionais russo e britânico, no século XIX, havia dinâmica regional própria capaz de recuperar, de forma cíclica, a estabilidade política, enquanto era palco de história rica e antiga, marcada por cenário de batalhas há mais de um milênio.
Localizado na convergência de diferentes civilizações, o Sul do Cáucaso foi invadido e disputado por grandes impérios, como o persa, o romano e personagens famosos, como o conquistador mongol Genghis Khan, e o Tsar Pedro o Grande. Todos vieram e partiram. Até que os soviéticos invadiram o Sul do Cáucaso, em 1920, e aqui ficaram até 1991.
Verifica-se, então, que o término da Guerra-Fria parecia acenar com o fim da bipolaridade mundial, enquanto a globalização surgiria como remédio para todos os males da divisão do mundo em partes conflitantes. Em suma, análises geopolíticas perderiam seu valor, na medida em que o planeta tenderia a ser menos dividido cartograficamente e mais interligado por valores em comum.
O ressurgimento de novas geometrias de poder ocorreram, contudo, sem muita demora, com o retorno de criaturas regionais, como as centradas nos chamdos “hinterlands”, enquanto largas fatias de nações, adormecidas durante a bipolaridade mundial, soltaram-se, tornaram-se países independentes, pediram passagem e encontram-se à deriva e na espera de configurações inovadoras que voltem a ordená-las.
Assim, no caso do Azerbaijão, que tivera breve vida como país independente, entre 1918 e 1920, ao emergir da União Soviética, após 71 anos de imposição aqui de um sistema planificado a partir de Moscou, não se tratou de inserir-se, na fase conhecida como “pós-soviética”, em cenário internacional pronto a acolhê-lo, com tolerância, diante da carga de mazelas herdadas daquelas sete décadas de dominação socialista.
Pelo contrário, o continente europeu passou a viver, desde então, com novas ameaças convencionais e não-convencionais. Nesse sentido, segundo se observa em Baku, vigora a convicção de que o bloco euro-atlântico – em substituição ao “Ocidente” – constitui o fulcro – o “hinterland” – em cujo redor se concentram perigos e tensões, provocadas por atores políticos que, à sua volta, insistem em manter acesos os seus próprios projetos de afirmação nacional.
Em suma, entre desafios não-convencionais, estariam o terrorismo, o excesso de imigrantes e a proliferação de armas de destruição em massa. No elenco dos desafios mais “clássicos”, situam-se os que afetam a segurança dos Estados, nos termos explicitados, segundo entendido aqui, desde a Paz de Westphalia. Na prática, os euro-atlânticos parecem misturar estes medos todos, enquanto procuram manter à distância, áreas que – para eles, conforme descrito acima – não tenham atingido o mesmo patamar de governança. Entre os repudiados, encontram-se os países emancipados da URSS, ao Sul do Caúcaso.
Cabe lembrar, no que diz respeito ao Azerbaijão, causas dos descompassos ora apresentados por este país que deseja ser acolhido pela Europa Ocidental, como parceiro. Segundo a visão de Baku, tais razões podem ser encontradas no fato de que, quando os soviéticos invadiram o país – após seu curto período de vida independente, entre 1918 e 1920 – encontraram um “aparelho de estado” em transição. Conviviam, então, uma estrutura de poder “medieval”, caracterizada por alianças entre tribos e povos nômades, e uma sociedade em busca de nova forma de governança que comportasse as demandas de um capitalismo emergente, em virtude da indústria de exploração petrolífera.
Os conquistadores, vindos da URSS, interromperam este processo de ajuste social e sobre esquemas patriarcais de governança agregaram relações políticas socialistas. Assim, se impuseram sobre o país, até 1991.
Com a emergência do Azerbaijão, naquele ano, seus novos dirigentes defrontaram-se, em sua “transição pós-comunista”, com o desafio de superar estas duas camadas de poder: os esquemas patriarcais de governança e as relações políticas socialistas.
A receita então vigente para países recém emancipados da União Soviética, de acordo com os registros disponíveis aqui, seria o “choque capitalista”. Isto é havia a certeza de que reformas, com base no estabelecimento de uma economia de mercado, criariam sua própria dinâmica de renovação política.
No Azerbaijão, isto não aconteceu, pois a inércia herdada, resultante da mistura de formas patriarcais e socialistas de pensar levaram a completo e imediato caos político, logo após a independência, agravado pela guerra contra a Armênia, por disputa territorial.
Para o observador local, o principal obstáculo a ser vencido pela geração atual, tanto de dirigentes, quanto da sociedade civil, é o relativo à superacão de formas de pensar e métodos de trabalho enferrujados pela mentalidade soviética, imposta aqui por 70 anos.
Isto é, não existe o hábito de tomar iniciativas ou assumir responsbilidades. Um emprego significa uma posição conquistada para, doravante, não se fazer esforço algum de aprimoramento pessoal ou em favor do progresso da “unidade de produção”. O público e a empresa existem para servir ao funcionário e, não o contrário. Parece vigorar, ainda, a postura de “esperar ordens de Moscou”. Quando tais obstáculos são superados, na mentalidade local, há recaída a velhas formas de relacionamento tribais, segundo as quais, aparentemente, decisões devem ser tomadas por consenso, formados em conselhos dos quais todos interessados tomariam parte, não por práticas contratuais.
De qualquer forma, assumi o compromisso, acima, de registrar análise menos carregada, sobre as convergências regionais, como as disponíveis no romance Ali e Nino. Editado pela primeira vez, em 1937, em Viena, sua autoria está envolta em mistério, especulação e controvérsia, subsistindo dúvidas quanto a ser obra de um só autor, Essad Bey sob o pesudômino Kuban Said (Ali e Nino, por Kuban Said, editado no Brasil em 2000, pela Nova Fronteira).
Enquanto história de amor, pode ser comparada às maiores de todos os tempos – Romeu e Julieta. Mas o livro não se reduz a uma história de amor e merece ser lido como um poema épico, escrito em prosa. À primeira impressão, a narrativa evocaria relação de conflito/acomodação entre Oriente e Ocidente, cristãos e muçulmanos, modernidade e tradição, o masculino e o feminino. O cenário é a capital do Azerbaijão, Baku, cidade multi-étnica em véspera da Primeira Guerra Mundial. Ali Khan Shivanshir é um jovem muçulmano xiita, de uma família azeri aristocrata, que se apaixona por Nino Kipiani, uma adolescente natural da Georgia, país vizinho, de formação cristã, que pratica valores europeus. O amor que dedicam um ao outro será dramaticamente ameaçado pelo espectro da guerra e pelo inevitável abismo cultural e religioso que os separa.
O grande amor entre Ali e Nino é o enredo principal do livro, cujo texto, no entanto, transcende o escopo de um romance. Lida em perspectiva mais ampla e sem recorrer a estereótipos, a história conduz o leitor a uma visita fascinante ao Cáucaso, com suas paixões, guerras e revoluções, honra e desgraça, montanhas, desertos e cidades como Baku. É importante, contudo, ler a obra fora do contexto das oposições entre Ocidente e Oriente. O amor entre os dois personagens é um tema universal, na medida em que cada um busca definir sua identidade em momento histórico de turbulência no cenário típico do Cáucaso. Apenas superficialmente, o livro é sobre a Europa e a Ásia, tampouco é sobre as diferenças entre o Islã e o Cristianismo.
Os leitores habituados a definições simples de classificações geográficas e culturais, podem ficar desapontados. Não é fácil definir um lugar, como Baku, onde diferentes culturas têm procurado interagir há séculos. A união entre Ali e Nino não replica processo semelhante, entre a Europa e a Ásia, mas representa a fusão entre duas culturas distintas, que, ao mesmo tempo, se relacionam, no Cáucaso. O livro, ademais, descreve o nascimento de um novo Azerbaijão, durante mais um período turbulento de sua história, com a narração da luta entre vários impérios – russo, persa, turco e britânico - pelo Sul do Cáucaso.
Cabe ressaltar, a propósito, a tensão descrita no livro, entre os amigos do personagem Ali que, inicialmente, se dispuseram a lutar, na Primeira Guerra Mundial, em favor do Tsar russo, conforme haviam feito seus pais e avôs. Quando a Turquia entra no conflito, contra a Rússia, cria-se enorme perplexidade entre tais indivíduos, que se consideram parte dos “povos turcos”. A crise de lealdades se agrava, quando a escolha tem que ser feita, entre combater ao lado de russos, contra os irmãos turcos e lutar em defesa do califa da Turquia, que era muçulmano sunni, enquanto os azeris são seguidores do Islã shiita. O contexto político agravou-se quando o exército turco, visto pelos azeris como “libertadores”, retira-se de Baku e aqui é substituído por tropas britânicas, como resultado de acordo assinado entre as capitais daqueles dois países.
Verifica-se, assim, que o romance Ali e Nino é fonte rica em jogadas geopolíticas, durante o século passado. O livro é também um atestado de afirmação da nacionalidade azeri. Isto fica evidente no diálogo final, entre a Ali e seu pai, quando este decide partir do Azerbaijão, para o Irã, diante da ameaça de invasão russa, em defesa de cujo Império ele – o pai – havia lutado. Na ocasião, o personagem mais velho aconselha seu filho “jovem e corajoso, a ficar e lutar em defesa do novo Azerbaijão, que necessita de seu patriotismo”.
Ali permanece em Baku e morre lutando em defesa de seu novo país, diante de mais uma investida do poderoso vizinho russo ao Norte. O livro poderia, então, transmitir a conclusão geopolítica de que a história da região ensina que a convivência local entre diferentes culturas – da mesma forma que o amor entre o Ali muçulmano e a Nino cristã – não foi impossível por incompatibilidades locais insolúveis. A ameaça à estabilidade ao Sul do Cáucaso tem chegado, principalmente, do exterior.
Profeticamente – talvez tivesse previsto Zaratustra – o perigo para o Azerbaijão veio, no romance em questão, e continua vindo, da fronteira ao Norte.
Paulo Antônio Pereira Pinto é Diplomata. Primeiro Embaixador do Brasil residente em Baku, Azerbaijão. Serviu, anteriorimente, como Cônsul-Geral em Mumbai e, a partir da década de 1980, durante vinte anos, na Ásia Oriental, sucessivamente, em Pequim, Kuala Lumpur, Cingapura, Manila e Taipé. As opiniões expressas são de sua inteira responsabilidade e não refletem pontos de vista do Ministério das Relações Exteriores (papinto2006@gmail.com).
Meridiano 47
por Paulo Antônio Pereira Pinto
06/11/2009
Já se tornou lugar comum dizer que a região ao Sul do Cáucaso, onde se situam Armênia, Azerbaijão e Georgia, é área de conflitos reais e potenciais, desde a extinção da URSS – a cuja União pertenciam – em 1991. Ademais, afirma-se, os povos desta parte do mundo nunca teriam sido capazes de viver em paz.
A confluência de interesses étnicos, religiosos, nacionais e internacionais antagônicos contribuiria para tal instabilidade. Daí, caberia esperar, apenas, a continuidade de disputas intermináveis e insolúveis. Novas teorias geopolíticas continuam, então, a ser formuladas ou ressucitadas para justificar este cenário de caos possível e permanente. Em contrapartida, registros históricos e obras literárias, como a narrativa sobre “Ali e Nino”, por exemplo, indicariam disposição regional no sentido contrário a tais interpretações.
Este artigo pretende recorrer a ambos: a raciocínios geopolíticos, que advogam os contenciosos; e a escritos, que traçam panorama mais “light” das coincidências regionais. Cabe lembrar, a propósito, que no território hoje ocupado pelo Azerbaijão, há cerca de 3.500 anos, floresceu o Zoroastrismo, divulgado pelo Profeta Zaratustra, que pregava o monoteísmo, advogava a igualdade das mulheres, confiava apenas no diálogo direto com Deus – sem a intermediação de sacerdotes– condenava o sacrifício de animais e a noção de milagres. Denunciava o flagelo de guerras religiosas, que causassem destruição em nome de uma fé ou de outra.
Zaratustra recomendava o entendimento dos elementos terrestres e a existência de um Deus. E três regras para viver bem: bons pensamentos, boas palavras, bons feitos. Também defendia a crença na natureza purificadora do fogo, que é pensamento fundamental de sua fé e simboliza o Todo Poderoso.
A palavra persa para fogo é “azer”. Assim, desde a antiguidade, a abundância de gás, que provocava explosões em suas montanhas, levou o Azerbaijão a ser conhecido como o centro do Zoroastrismo.
Isto é, não seria correto afirmar que esta parte do mundo estaria condenada a turbulência permanente, por sua multiculturalidade, multi-religiosidade, multi-etnicidade e multiquase-tudo. Até o inicio do Grande Jogo, disputado pelos imperialismos extraregionais russo e britânico, no século XIX, havia dinâmica regional própria capaz de recuperar, de forma cíclica, a estabilidade política, enquanto era palco de história rica e antiga, marcada por cenário de batalhas há mais de um milênio.
Localizado na convergência de diferentes civilizações, o Sul do Cáucaso foi invadido e disputado por grandes impérios, como o persa, o romano e personagens famosos, como o conquistador mongol Genghis Khan, e o Tsar Pedro o Grande. Todos vieram e partiram. Até que os soviéticos invadiram o Sul do Cáucaso, em 1920, e aqui ficaram até 1991.
Verifica-se, então, que o término da Guerra-Fria parecia acenar com o fim da bipolaridade mundial, enquanto a globalização surgiria como remédio para todos os males da divisão do mundo em partes conflitantes. Em suma, análises geopolíticas perderiam seu valor, na medida em que o planeta tenderia a ser menos dividido cartograficamente e mais interligado por valores em comum.
O ressurgimento de novas geometrias de poder ocorreram, contudo, sem muita demora, com o retorno de criaturas regionais, como as centradas nos chamdos “hinterlands”, enquanto largas fatias de nações, adormecidas durante a bipolaridade mundial, soltaram-se, tornaram-se países independentes, pediram passagem e encontram-se à deriva e na espera de configurações inovadoras que voltem a ordená-las.
Assim, no caso do Azerbaijão, que tivera breve vida como país independente, entre 1918 e 1920, ao emergir da União Soviética, após 71 anos de imposição aqui de um sistema planificado a partir de Moscou, não se tratou de inserir-se, na fase conhecida como “pós-soviética”, em cenário internacional pronto a acolhê-lo, com tolerância, diante da carga de mazelas herdadas daquelas sete décadas de dominação socialista.
Pelo contrário, o continente europeu passou a viver, desde então, com novas ameaças convencionais e não-convencionais. Nesse sentido, segundo se observa em Baku, vigora a convicção de que o bloco euro-atlântico – em substituição ao “Ocidente” – constitui o fulcro – o “hinterland” – em cujo redor se concentram perigos e tensões, provocadas por atores políticos que, à sua volta, insistem em manter acesos os seus próprios projetos de afirmação nacional.
Em suma, entre desafios não-convencionais, estariam o terrorismo, o excesso de imigrantes e a proliferação de armas de destruição em massa. No elenco dos desafios mais “clássicos”, situam-se os que afetam a segurança dos Estados, nos termos explicitados, segundo entendido aqui, desde a Paz de Westphalia. Na prática, os euro-atlânticos parecem misturar estes medos todos, enquanto procuram manter à distância, áreas que – para eles, conforme descrito acima – não tenham atingido o mesmo patamar de governança. Entre os repudiados, encontram-se os países emancipados da URSS, ao Sul do Caúcaso.
Cabe lembrar, no que diz respeito ao Azerbaijão, causas dos descompassos ora apresentados por este país que deseja ser acolhido pela Europa Ocidental, como parceiro. Segundo a visão de Baku, tais razões podem ser encontradas no fato de que, quando os soviéticos invadiram o país – após seu curto período de vida independente, entre 1918 e 1920 – encontraram um “aparelho de estado” em transição. Conviviam, então, uma estrutura de poder “medieval”, caracterizada por alianças entre tribos e povos nômades, e uma sociedade em busca de nova forma de governança que comportasse as demandas de um capitalismo emergente, em virtude da indústria de exploração petrolífera.
Os conquistadores, vindos da URSS, interromperam este processo de ajuste social e sobre esquemas patriarcais de governança agregaram relações políticas socialistas. Assim, se impuseram sobre o país, até 1991.
Com a emergência do Azerbaijão, naquele ano, seus novos dirigentes defrontaram-se, em sua “transição pós-comunista”, com o desafio de superar estas duas camadas de poder: os esquemas patriarcais de governança e as relações políticas socialistas.
A receita então vigente para países recém emancipados da União Soviética, de acordo com os registros disponíveis aqui, seria o “choque capitalista”. Isto é havia a certeza de que reformas, com base no estabelecimento de uma economia de mercado, criariam sua própria dinâmica de renovação política.
No Azerbaijão, isto não aconteceu, pois a inércia herdada, resultante da mistura de formas patriarcais e socialistas de pensar levaram a completo e imediato caos político, logo após a independência, agravado pela guerra contra a Armênia, por disputa territorial.
Para o observador local, o principal obstáculo a ser vencido pela geração atual, tanto de dirigentes, quanto da sociedade civil, é o relativo à superacão de formas de pensar e métodos de trabalho enferrujados pela mentalidade soviética, imposta aqui por 70 anos.
Isto é, não existe o hábito de tomar iniciativas ou assumir responsbilidades. Um emprego significa uma posição conquistada para, doravante, não se fazer esforço algum de aprimoramento pessoal ou em favor do progresso da “unidade de produção”. O público e a empresa existem para servir ao funcionário e, não o contrário. Parece vigorar, ainda, a postura de “esperar ordens de Moscou”. Quando tais obstáculos são superados, na mentalidade local, há recaída a velhas formas de relacionamento tribais, segundo as quais, aparentemente, decisões devem ser tomadas por consenso, formados em conselhos dos quais todos interessados tomariam parte, não por práticas contratuais.
De qualquer forma, assumi o compromisso, acima, de registrar análise menos carregada, sobre as convergências regionais, como as disponíveis no romance Ali e Nino. Editado pela primeira vez, em 1937, em Viena, sua autoria está envolta em mistério, especulação e controvérsia, subsistindo dúvidas quanto a ser obra de um só autor, Essad Bey sob o pesudômino Kuban Said (Ali e Nino, por Kuban Said, editado no Brasil em 2000, pela Nova Fronteira).
Enquanto história de amor, pode ser comparada às maiores de todos os tempos – Romeu e Julieta. Mas o livro não se reduz a uma história de amor e merece ser lido como um poema épico, escrito em prosa. À primeira impressão, a narrativa evocaria relação de conflito/acomodação entre Oriente e Ocidente, cristãos e muçulmanos, modernidade e tradição, o masculino e o feminino. O cenário é a capital do Azerbaijão, Baku, cidade multi-étnica em véspera da Primeira Guerra Mundial. Ali Khan Shivanshir é um jovem muçulmano xiita, de uma família azeri aristocrata, que se apaixona por Nino Kipiani, uma adolescente natural da Georgia, país vizinho, de formação cristã, que pratica valores europeus. O amor que dedicam um ao outro será dramaticamente ameaçado pelo espectro da guerra e pelo inevitável abismo cultural e religioso que os separa.
O grande amor entre Ali e Nino é o enredo principal do livro, cujo texto, no entanto, transcende o escopo de um romance. Lida em perspectiva mais ampla e sem recorrer a estereótipos, a história conduz o leitor a uma visita fascinante ao Cáucaso, com suas paixões, guerras e revoluções, honra e desgraça, montanhas, desertos e cidades como Baku. É importante, contudo, ler a obra fora do contexto das oposições entre Ocidente e Oriente. O amor entre os dois personagens é um tema universal, na medida em que cada um busca definir sua identidade em momento histórico de turbulência no cenário típico do Cáucaso. Apenas superficialmente, o livro é sobre a Europa e a Ásia, tampouco é sobre as diferenças entre o Islã e o Cristianismo.
Os leitores habituados a definições simples de classificações geográficas e culturais, podem ficar desapontados. Não é fácil definir um lugar, como Baku, onde diferentes culturas têm procurado interagir há séculos. A união entre Ali e Nino não replica processo semelhante, entre a Europa e a Ásia, mas representa a fusão entre duas culturas distintas, que, ao mesmo tempo, se relacionam, no Cáucaso. O livro, ademais, descreve o nascimento de um novo Azerbaijão, durante mais um período turbulento de sua história, com a narração da luta entre vários impérios – russo, persa, turco e britânico - pelo Sul do Cáucaso.
Cabe ressaltar, a propósito, a tensão descrita no livro, entre os amigos do personagem Ali que, inicialmente, se dispuseram a lutar, na Primeira Guerra Mundial, em favor do Tsar russo, conforme haviam feito seus pais e avôs. Quando a Turquia entra no conflito, contra a Rússia, cria-se enorme perplexidade entre tais indivíduos, que se consideram parte dos “povos turcos”. A crise de lealdades se agrava, quando a escolha tem que ser feita, entre combater ao lado de russos, contra os irmãos turcos e lutar em defesa do califa da Turquia, que era muçulmano sunni, enquanto os azeris são seguidores do Islã shiita. O contexto político agravou-se quando o exército turco, visto pelos azeris como “libertadores”, retira-se de Baku e aqui é substituído por tropas britânicas, como resultado de acordo assinado entre as capitais daqueles dois países.
Verifica-se, assim, que o romance Ali e Nino é fonte rica em jogadas geopolíticas, durante o século passado. O livro é também um atestado de afirmação da nacionalidade azeri. Isto fica evidente no diálogo final, entre a Ali e seu pai, quando este decide partir do Azerbaijão, para o Irã, diante da ameaça de invasão russa, em defesa de cujo Império ele – o pai – havia lutado. Na ocasião, o personagem mais velho aconselha seu filho “jovem e corajoso, a ficar e lutar em defesa do novo Azerbaijão, que necessita de seu patriotismo”.
Ali permanece em Baku e morre lutando em defesa de seu novo país, diante de mais uma investida do poderoso vizinho russo ao Norte. O livro poderia, então, transmitir a conclusão geopolítica de que a história da região ensina que a convivência local entre diferentes culturas – da mesma forma que o amor entre o Ali muçulmano e a Nino cristã – não foi impossível por incompatibilidades locais insolúveis. A ameaça à estabilidade ao Sul do Cáucaso tem chegado, principalmente, do exterior.
Profeticamente – talvez tivesse previsto Zaratustra – o perigo para o Azerbaijão veio, no romance em questão, e continua vindo, da fronteira ao Norte.
Paulo Antônio Pereira Pinto é Diplomata. Primeiro Embaixador do Brasil residente em Baku, Azerbaijão. Serviu, anteriorimente, como Cônsul-Geral em Mumbai e, a partir da década de 1980, durante vinte anos, na Ásia Oriental, sucessivamente, em Pequim, Kuala Lumpur, Cingapura, Manila e Taipé. As opiniões expressas são de sua inteira responsabilidade e não refletem pontos de vista do Ministério das Relações Exteriores (papinto2006@gmail.com).
Meridiano 47
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