A semente da bebida negra moldou a economia do Sudeste e impulsionou a economia da região por meio das ferrovias
POR CELSO LUIS RODRIGUES VEGRO*
IRINEU EVANGELISTA DE SOUZA (1813 – 1889) - Foi tão empreendedor que de simples caixeiro tornouse Barão e depois Visconde. Considerado o primeiro grande capitalista brasileiro, Souza construiu os primeiros estaleiros e linha férrea do país, participou de projetos de iluminação a gás, entre outos
Diretamente contratado pelo Barão de Mauá, o engenheiro ferroviário James Brunlees considerou a obra viável (técnica e financeiramente) entregando o comando dos trabalhos de campo ao também engenheiro ferroviário inglês Daniel Fox, de apenas 26 anos, mas que contava com sólida reputação por ter estendido linhas férreas por entre as montanhas do norte do País de Gales11. Em novembro de 1860 foram iniciadas as obras da ferrovia, concluídas sete anos mais tarde quando alcançou seu derradeiro destino, percorrendo a distância de 139 quilômetros. A melhor alternativa para a época foi o sistema funicular (descida sustentada por cabos), seguida de pequenos patamares com baixa declividade. Com apenas quatro declives a escalada da serra foi vencida.
O êxito do empreendimento pôde ser constatado pelos balanços que contabilizavam a multiplicação por três da receita bruta obtida em apenas 10 anos de funcionamento12! Tal mudança econômica, provocada pela abertura desse corredor de exportação, incitou imenso entusiasmo entre a elite cafeicultora paulista que, imediatamente, organizou-se visando à ampliação da São Paulo Railway, notadamente até Campinas, considerada então a capital agrícola da província. Outras cidades (algumas apenas pequenos povoados), rapidamente também se organizaram para a ligação dessas localidades ao eixo da São Paulo Railway, uma vez que era grande o impacto urbano/econômico das obras de construção de uma ferrovia que, em muitos casos, fazia mais que dobrar a população desses centros urbanos.
Embora pressionados, tanto pela oligarquia cafeeira como pelo poder imperial, os ingleses da São Paulo Railway não exibiram nenhum interesse em prolongar sua ferrovia, pois estavam cientes de que os demais empreendimentos teriam que necessariamente se valer da “inglesa” para superar a barreira representada pela Serra do Mar. Esse poder de monopólio exercido pela ferrovia marca todo o desenvolvimento posterior da rede em terras paulistas. Os eixos ferroviários que se expandiram, iniciados pela Paulista (ligação entre Jundiaí e Campinas), entroncavam-se na São Paulo Railway. A irradiação ferroviária paulista assumiu o contorno de uma árvore, sendo seu tronco a inglesa e os ramos todos os demais empreendimentos (Sorocabana, Mogiana, Ituana, Noroeste, Bragantina).
1900 – 1930: O EIXO DA BALANÇA COMERCIAL
As empresas ferroviárias paulistas conformam sua principal característica, a vinculação com o capital agrário originado na fazenda de café. As ferrovias, ao lado das firmas de imigração que proveram os braços necessários para a condução das lavouras, constituíram as duas principais colunas que consolidaram a hegemonia política econômica paulista sobre o restante do país. Ao longo do período imperial, por exemplo, as exportações de café representavam cerca de 60% de toda a balança comercial brasileira13. Sob a República tal participação relativa cresceu ainda mais atingindo, em 1910, aproximadamente 75% de participação nas receitas cambiais totais do país. Essa riqueza originada no café foi investida em ferrovias e na importação de colonos, notadamente europeus, refletindo-se na nascente industrialização da cidade de São Paulo, com o surgimento de diversos ramos de produção, como têxteis, alimentares e de bebidas, normalmente agrupados ao lado dos troncos ferroviários.
Acima, dois trechos da Serra da SP Railway, em foto da primeira metade do século XX. Setor cafeeiro pressionava por expansão da malha ferroviária enquanto os ingleses controlavam as construções, valendo-se do monopólio para faturar grandes quantias
Essa correlação entre criação dos meios de transporte (para cargas e pessoas) e a expansão da lavoura cafeeira foi destacada por MATOS (1974). A evolução decenal dos indicadores de população, malha ferroviária e parque cafeeiro evidencia o vigor do movimento de colonização do território paulista. As abundantes terras submetidas à monocultura cafeeira propiciavam fortuna imediata aos fazendeiros. Esse entesouramento dos fazendeiros era, normalmente, reinvestido no plantio de mais cafezais que por sua vez exigiam mais braços para neles trabalhar. Calculando-se taxa geométrica de crescimento para a expansão da malha ferroviária no período que vai de 1860 a 1930, alcança- se o fantástico valor de 76% por década14.
1940 – SÉC. XXI: CRISE E NOVAS ALTERNATIVAS
A mesma força motriz que desencadeou o esplendor ferroviário no Estado de São Paulo foi o elemento que motivou sua derrocada. A lavoura cafeeira tinha caráter itinerante, ou seja, quando esgotada a fertilidade natural do solo, a cultura era conduzida para as novas frentes pioneiras (na época o triângulo mineiro e norte velho paranaense). Isso induzia então as empresas ferroviárias a acompanhar esse alargamento do cinturão cafeeiro, o que aumentava seus custos fixos e, ao mesmo tempo, tornava economicamente inviável em médio prazo os trechos deixados à obsolescência15. Na década de 40 do século passado, o transporte rodoviário passou a dominar o fluxo de mercadoria e o transporte de pessoas em terras paulistas. Sem capacidade de concorrer com esse novo modal (além da maior rapidez, representava um novo estilo de vida), as ferrovias praticamente encerraram seu ciclo na economia paulista. A crise financeira assolou a maior parte das ferrovias e forçou-as à encampação por parte do governo federal juntando-se à antiga Rede Ferroviária Federal S.A.
O Brasil é produtor de cerca de 35% de todo café cultivado no mundo. Por volta de 400 bilhões de xícaras são consumidas por ano, o que o torna a bebida mais ingerida do mundo
O crescimento econômico brasileiro passou a exibir imenso vigor a partir do pós II guerra. A diversificação da produção industrial arrefeceu a importância da cafeicultura na criação de riqueza, libertando-a da política que mantinha a cultura acorrentada à macroeconomia do país. Esse novo momento mantém-se até nossos dias, em que o negócio ligado ao café possui diversos instrumentos de gestão que lhe são próprios, como o crédito, a pesquisa e o marketing do produto.
Nos anos 90 do século passado, a administração federal efetuou a venda das principais ferrovias paulistas para empresas especializadas em logística de cargas. As commodities (minerais e agrícolas) voltaram a trafegar pelos trilhos em decorrência dos recentes choques do petróleo e valorização dos principais produtos de nossa pauta de exportações (soja, açúcar, ferro, bauxita, fertilizantes). As ferrovias tornam a apresentar participação significativa no transporte de cargas do país, exibindo taxas de crescimento muito acima dos demais modais que com ela concorrem nos pontos de originação de cargas.
Por vias distintas e após mais de 60 anos de divórcio, o hábito de consumir café e o tráfego pelas ferrovias presenciam um movimento de reglamorização. A febre que tomou conta dos países europeus assim que a bebida foi introduzida em meados do século XVIII, retorna agora com ares de requinte e perfeição, implementada por estabelecimentos preocupados com a qualidade e esmero do serviço, conquistando, por meio dessa postura, crescente aceitação e preferência dos consumidores, especialmente naqueles cujo carro-chefe era o café expresso. Nas ferrovias, algo similar ocorre, pois as elevadas cotações do petróleo e os pavorosos acidentes aeroviários despertam vívido interesse na modernização das ferrovias como elementos ímpares no encurtamento das distâncias. O café, felizmente, continua a ser oferecido em opções cada vez mais diferenciadas (orgânico, gourmet, aromatizado, descafeinado, expresso, etc..). Faltam-nos os chamados trens-bala para podermos efetuar o trajeto São Paulo ao Rio de Janeiro, ao tempo de apreciar um delicioso cappuccino.
1 - Segundo MATOS (1974), essa dificuldade em acessar o planalto criou relativa postura autárquica dos paulistas comparativamente às demais cidades da colônia.
2 - Expressão cunhada por Caio Prado Junior para designar a expansão da lavoura canavieira no território formado pelas cidades de Porto Feliz, Piracicaba, Mogi-Guaçu e Jundiaí. A referência ganhou força na historiografia brasileira, omitindo, porém, que havia grandes engenhos em Itu, nos quais vultosas quantidades de açúcar eram comercializadas. Portanto, o dito quadrilátero era mais espalhado do que se supunha.
3 - OLIVEIRA, 1984.
4 - OLIVEIRA, 1984.
5 - O primeiro surto ferroviário europeu ocorreu entre 1820 e 1830 (SIMONSEN, 1938).
6 - Do decreto consta: oitenta anos de concessão da linha implantada, isenção de impostos sobre as máquinas durante cinco anos, cessão gratuita de terrenos necessários para a construção da estrada, (MATOS, 1974).
7 - “Lei Eusébio de Queirós”, de 1850.
8 - MATOS (1974) relatou as palavras proferidas pelo Barão no ato de inauguração da Raiz da Serra: “esta estrada de ferro que se abre hoje para o trânsito público é apenas o primeiro passo na realização de um pensamento grandioso”.
9 - Neste caso, o cientista social referiu-se às fases do desenvolvimento ferroviário brasileiro.4 - OLIVEIRA, 1984.
10 - SIMONSEN (1938) afirmou que a produtividade no oeste paulista atingia cerca de 300 arrobas por mil pés de café. Ademais, destacou que a qualidade do produto colhido nessas regiões era superior, comparativamente, à do Vale do Paraíba. Do ponto de vista agronômico, para além do desgaste dos solos cultivados sem preocupações com sua conservação, a composição da terra (camadas arenosas sobrepondo as argilosas) favoreceu a disseminação de nematóides, talvez a mais agressiva das pragas do café, a qual ainda hoje carece de solução agronômica sustentável. Tal fenômeno também ocorreu em solos argilosos, porém de forma menos nociva.
11 - A maior dificuldade que enfrentou o inglês, enaltecendo ainda mais sua genialidade, foi adequar seu projeto às condições naturais vigentes na Serra do Mar (volume e intensidade das precipitações e grande instabilidade do solo).
12 - Apurado em SIMONSEN, 1938.
13 - Idem.
14 - Cálculo elaborado pelo autor.
15 - Parece fora de dúvida que a nossa ferrovia surgiu e se desenvolveu à cata do café, isto é, a estrada de ferro seguiu de perto o caminho feito pelo cafezal (Prefácio de J.S. Winter para o livro de MATOS, 1974).
REFERÊNCIAS:
GALETI, P. A. Pelos caminhos do café. Campinas. Departamento de Comunicação e Treinamento – Coordenadoria de Assistência Técnica Integral, 2004. 178p.
MATOS, O. N. Café e ferrovias. São Paulo: Ed. Alfa-Omega de Ciências Sociais, 1974. 136p.
OLIVEIRA, J. T. História do café no Brasil e no Mundo. Rio de Janeiro: Livraria Kosmos Editora, 1984. 440p.
SIMONSEN, R. Aspectos da história econômica do café. In: Congresso de história Nacional do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1938. 82p.
TAUNAY, A. E. Pequena história do café no Brasil. Rio de Janeiro, 1943. 480p.
CELSO LUIS RODRIGUES VEGRO é engenheiro agrônomo mestre em Desenvolvimento Agrícola,
pesquisador Científico do Instituto de Economia Agrícola da Agência Paulista de Tecnologia
para os Agronegócios (Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo).
Revista Leituras da História
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