Doutor em Letras pela FFLCH-USP, é professor-adjunto da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde leciona disciplinas ligadas à literatura, na graduação e pós-graduação (lato sensu). Pertence a grupo de pesquisa sobre o Duplo, liderado pela professora doutora Lílian Lopondo.
Ronaldo Correia de Brito é um escritor brasileiro atípico: contemporâneo, suas narrativas desprezam índices de modernidade. Em lugar de aviões, executivos, computadores, depara-se nelas com aves de mau agouro, vaqueiros, tradição oral. Vislumbra-se num percurso de leitura um sertão primevo, recalcitrante às mudanças de tempo. Não obstante, descortina-se uma ambiência que transcende as fronteiras regionais, pois veículo para os mais universais sentimentos humanos, como o amor, o ódio, o ciúme, a cobiça, a vingança, a ânsia de libertar-se de uma situação opressiva, etc. A propósito, esclareça-se que o autor se defende e não aceita a pecha de regionalista: “Se você elabora uma personagem complexamente neurótica, feminista, com todos os anseios urbanos, e se você senta esta mulher uma cadeira de couro, olhando uma paisagem desolada do sertão, há quem enxergue apenas o cenário, e três ou quatro substantivos locais. Embora essa mulher fale da mesma dor e da mesma solidão de uma negra americana do Harlem”. Brito se alinha com Capistrano de Abreu, no entendimento de que “nunca se escreveu a história do desbravamento dos sertões. Os historiadores ficaram pelo litoral”. As narrativas do autor são marcadamente visuais e não é à toa que usa o cinema como ponto de inflexão para discutir a realidade que lhe interessa: “cadê nossos John Ford e Sérgio Leone? Glauber fez uma leitura social, mas os acontecimentos foram bem mais transcendentes. O romance regionalista de 30 foi apenas um ensaio deste período”. O escritor quer ir além e é categórico quanto ao seu posicionamento: “O meu sertão é a paisagem da qual eu interpreto o mundo, o de hoje, o globalizado, o que rompeu com as tradições. Interessa-me a decadência, a dissolução”. A obra de Brito, portanto, embora ainda pequena e recentíssima, se mostra auspiciosa, evocando o melhor da ficção sertaneja brasileira. Nela emergem narradores prototípicos a defender valores de uma cultura defrontada com a degradação, mas que se nega em esmorecer.
Dois contos servem de norte para o presente trabalho, “Faca” e “O que veio de longe”. Ambos publicados pela Cosac & Naify, respectivamente nas antologias Faca, de 2003, e Livro dos Homens, de 2005. O corpus escolhido se revela sedutor no que se refere ao tema do duplo, em razão do segundo conto ser uma retomada do primeiro, a indicar que a obra se encontra em gestação e em contínuo diálogo com o processo de criação ficcional. Para comprovar tal assertiva, convém informar que o personagem Domisio, presente nos dois contos referidos, reaparece também no enredo do romance de Brito, Galiléia, publicado pela Alfaguara em 2008 e recém ganhador na categoria romance do Prêmio São Paulo de literatura. Nas variantes encetadas pelo autor, emergem narrativas de resistência, como que cultoras de valores de um outro tempo que não o da modernidade. Nelas o fantástico se faz presente, não na categoria dos jogos de linguagem da comicidade e da paródia, que conferiram notoriedade a escritores latino-americanos como Gabriel Garcia Marques e Julio Cortazar, nem tampouco no uso de maneirismos estilísticos à maneira de Guimarães Rosa, mas, sobretudo, numa prosa tradicional, que lembra e muito Graciliano Ramos, em que a forma está afinada com o meio que descreve, numa linguagem seca e lacerante, a manifestar o mais arraigado e trágico misticismo, que confere ao sertão brasileiro uma identidade imemorial. A esse respeito o testemunho de Brito é cabal: “acredito na supremacia da narrativa, nos velhos narradores, nos aedos gregos”.
“Faca” é o conto que dá título ao livro de que faz parte, o que por si só já denota a sua importância. Pode ser interpretado na linha da transcendência, através da faca misteriosa, com seu desenho de duas serpentes enroladas, que viaja no tempo por cem anos. É preciso atentar para o primoroso trabalho de combinação temporal, em que se manifestam os diversos tempos do passado, em torno do assassinato cometido por Domísio, e o presente dos ciganos. A narrativa é ziguezagueante, tão sinuosa como uma serpente, repleta de marchas e contramarchas temporais, a manter o interesse do leitor. A construção narrativa lembra a complexidade de uma partida de xadrez em que cada lance entrecortado do enredo desafia ao deciframento. Há toda uma simbologia subjacente no texto: o número 13 dos filhos do assassino Domísio, a faca, os ciganos, as serpentes, o escuro, etc. É um conto sobre o desejo, de um homem por uma mulher distante e dos ciganos por um objeto valioso. A faca é a encarnação metonímica desse desejo, atemporal, transcendente, no centenário de histórias que desafiam a coragem humana e revelam um sertão da tradição oral. À faca se presta o simbolismo da serpente: “Coisa primordial indivisível que não cessa de desenroscar-se, desaparecer e renascer” (Chevalier & Gheerbrant, 1994, p. 815).
“Faca” contém quinze instâncias narrativas, a seguir comentadas uma a uma, que entrecortam o presente e os momentos do passado: 1) Ciganos acham “a faca” e cogitam de seu valor material. Uma cigana sonha com “um trancelim dourado”; outro cigano pensa em vendê-la numa cidade próxima. O objeto que “o tempo cercara de mistério, assombrava”. Um cigano comenta: “Tenho medo. É amaldiçoada”. É o tempo presente; 2) Francisca Justino, filha de Domísio Justino, arrancou a faca das mãos do seu tio materno, defendendo o pai que acabara de matar a mãe Donana. Apresenta-se uma marca narrativa importante que situa vagamente no tempo o conto: seu gesto foi acompanhado por “negros escravos”, o que permite inferir que a narrativa se passou na época do Império. Outro detalhe de monta: seguindo a ética sertaneja, Anacleto Justino pede para não matarem seu irmão Domísio em casa, o que se depreende que o âmbito familiar é um espaço sagrado na cultura sertaneja, a não ser profanado em seu interior. Chama a atenção também a metáfora utilizada para simbolizar o mistério da faca, ao ser atirada para longe por Francisca, “ave prateada, reluzindo e voando no espaço”. Os anos se passaram e a faca não foi achada. Ela tem como que um encantamento, no caso de Domísio Justino, alude-se ao “tinir” dela se chocando a uma pedra, o que lhe teria feito guardar “este barulho até a morte”. É o tempo passado, após a morte de Donana; 3) Os ciganos e o medo de pernoitar no lugar em que encontraram a faca. Um deles profere: “acho bom jogar esta faca por aí mesmo, onde sempre esteve. Muitas águas já correram”. A última oração remete, de forma cifrada e desdobrada, ao conto “O que veio de longe”, com que “Faca” dialoga, pois o corpo de Domísio foi arrastado pela enchente do Jaguaribe, antes de ser encontrado pela comunidade de Monte Alverne. É o tempo presente, dos ciganos; 4) Domísio vai levar o gado para a capital. Há uma frase significativa, a revelar a ausência de sentimento dele em relação a Donana: “ – Não sei dizer quando volto – Domísio falou, de costas para a mulher, não se dando ao trabalho de virar a cabeça”. Ela, por sua vez, o interpela: “ – E vai demorar muito?”. O narrador esclarece, em elipse assombrosa, a reação do marido: “A fala grossa de Domísio nada respondeu”. Trechos como esses são significativos do estilo de Brito, dilacerante como o punhal do entrecho, e de forma parcimoniosa desnudam as práticas sertanejas. Lembre-se que a elipse é uma marca da tradição oral e seu uso revela uma adequação formal ao universo retratado. Domísio, quando voltava para casa, ficava triste, com saudades da capital. Enquanto isso, Donana, deprimida, “chupava a safra de umbu. O fruto azedo de sua vingança”. O único deleite dela era o banho do riacho. Domísio e Donana estão, portanto, em campos opostos, separados pelo fosso da cultura patricarcal: ele se mostra expansivo, aberto para o mundo, exercendo sua condição masculina em liberdade; ela, por seu turno, sem voz, circula em espaço estreito, circunscrito às imediações da casa, e se revela afeita às interdições da sua condição feminina. O olhar confinado de Donana faz lembrar a “visão míope”, conceito encetado por Simone de Beauvoir, que Gilda Mello e Souza atribui às personagens femininas de Clarice Lispector (1980, p. 79). Os irmãos de Donana, Pedro e Luiz Miranda, perguntavam pelo marido ausente. Expressiva é a informação do narrador: “os treze filhos esqueciam o pai. Francisca, a mais velha, não conseguia esquecer”, o que remete ao valor simbólico da primogenitura para o sertanejo. A ação é do tempo passado, antes do assassinato; 5) Um cigano e uma cigana cogitam ficar com a faca. O simbolismo volta à cena: “O ouro do cabo formava duas serpentes enroscadas”. Desvela-se o passado degradado da casa: “O que guardariam dos gritos de ódio e medo as paredes esburacadas, os telhados em ruína? Onde estavam as vozes da família infeliz?”. É o tempo presente, dos ciganos; 6) Momentos depois do crime, Francisca tenta arrancar a faca das mãos do tio. Um detalhe se mostra inquietante, o narrador esclarece que a faca é a mesma da morte, da que está na mão do tio e a que se encontra com o cigano, três tempos narrativos enumerados de forma simultânea, interligados num só enunciado. É o tempo passado, pouco antes do corte narrativo dois, em que Francisca joga a faca para longe; 7) Mãe e filha choram de alegria, pela volta, após um ano, de Domísio, triste. Anacleto repreende o irmão. Eles são diferentes: Anacleto representa os valores da terra e da família. Domísio é inquieto, “preferia correr o mundo”, “ver outros rostos e apaixonar-se”. É o tempo do passado, antes do crime, depois da viagem com o gado; 8) Instante seguinte ao crime praticado por Domisio e sua fala: “O que foi que eu fiz?”. Um detalhe simbólico a ser considerado: “A mesma casa no terreiro da qual os ciganos encontraram a faca, cem anos depois”. A informação permite reforçar a idéia do tempo narrativo se passar na época do Império, bem como ser alusiva, pelo número cem, a algo que “individualiza, a parte de um todo, que, por sua vez, é apenas parte de um conjunto maior” (Chevalier & Gheerbrant, 1994, p. 218-219). Ou seja, a tragédia que a faca simboliza perdurará indefinidamente. É o tempo do passado, em seguida ao crime, antes do segundo corte narrativo, em que os irmãos queriam vingança; 9) Ciganos no quarto escuro em que se escondeu Domísio. É o tempo presente; 10) Anacleto com Domísio, e os irmãos Pedro e Luís que rondam a casa. Apresenta-se mais um detalhe importante para se inferir a ética sertaneja, na fala de Anacleto: “Se me perguntam por você, digo tudo. Não sei mentir”. É o tempo passado, antes do segundo corte narrativo; 11) Domísio procura um álibi para se separar da mulher, ao conversar com os irmãos dela: Donana o teria traído no riacho, como comprovariam as marcas no chão de “chinelos grandes e pequenos”. Eles não acreditam. Os vaqueiros que acompanharam Domísio à capital falam que ele “acertara casamento, passando-se por solteiro”. É o tempo passado, depois do oitavo corte narrativo; 12) Diálogo entre Anacleto e Domísio e a intenção deste último: “Inventar qualquer história que me livre de Donana”. É o tempo passado, antes do décimo primeiro corte narrativo; 13) Domísio inventa a traição para os irmãos. Resposta de Pedro Miranda, o mais velho, que é indicativa mais uma vez da ética sertaneja: “ – Se for verdade, pode punir os culpados, do jeito que é devido. Mas, se tudo isto não passar de testemunho falso, prepare-se para a vingança”. É o tempo passado, imediatamente ao último corte narrativo; 14) O terço, a oração desesperada de Donana, a prenunciar a sua tragédia pessoal, que efetivamente acontece. “Os filhos de Eva alcançaram a mãe quando ela caiu morta”. Francisca, por sua vez, procura o pai no mato e o manda se esconder na casa do irmão. É o tempo passado, depois do décimo primeiro e antes do segundo corte narrativo; 15) Fim da narrativa, os ciganos diante da faca: tremiam de medo. Anacleto e a ética sertaneja, em apelo renovado: “as leis da hospitalidade”, para que os irmãos Miranda não matem Domísio em sua casa: “Em qualquer lugar, nas estradas, no meio do mato, onde vocês o encontrarem, quando ele for embora”. O final alude ao destino trágico de Domísio: “Morto, certamente. Ou esquecido, como o punhal que os ciganos largaram no terreiro”. Há uma fusão de tempos: o presente dos ciganos se imbrica com o passado, na iminência de vingança dos irmãos de Donana.
Ao se fazer um balanço do curso narrativo, percebe-se igualmente um desdobramento, a existência de dois tempos, o do presente dos ciganos e o do passado, com o predomínio deste último, em duas variantes, antes e depois do crime impetrado por Domísio. Entre um tempo e outro há um lapso de cem anos. Uma hipótese interpretativa para o alongamento do tempo cronológico no conto é a de que o ajuste do andamento narrativo se faz junto às instâncias da cultura sertaneja, em que as transformações são mais lentas, onde impera o comportamento arraigado e tradicional, se comparado com as urgências materialistas da sociedade industrializada. Ao abordar a ficção de Brito, Davi Arrigucci Jr. afirma que “a espera é um fator estrutural de suas histórias” (2003, p. 173). É, por conseguinte, a condição das personagens: de Domísio, na expectativa de ir para a capital, onde se apaixonou por uma outra mulher; de Donana e de Francisca, deprimidas, respectivamente, pela demora do marido e do pai, que foi levar o gado à capital; dos irmãos Miranda, em tocaia para vingar a morte de Donana. As narrativas estão dispostas de forma chanfrada, com o propósito de criar suspense, que é como se sabe uma das características precípuas de um bom conto. É como se o narrador estivesse munido de uma faca simbólica que cortasse a narrativa, distribuindo-a em fatias para que o leitor as pudesse saboriar uma a uma no jogo interpretativo. Ou então, dizendo de maneira mais apropriada ao entrecho, para que o leitor penetrasse nas veredas do universo sertanejo através dos afiados cortes narrativos, assim se inteirando de uma ética tributária de uma tradição milenar, que se renova ciclicamente desde tempos imemoriais, banhando-se em sangue das tragédias pessoal e familiar. Para o leitor, o resultado não poderia ser mais catártico. Assim como era soez acontecer ao se assistir à tragédia clássica, o choque resultante do descortinar do mundo sertanejo instila no leitor hodierno o afloramento dos mais recônditos instintos humanos, no sentido de se deparar com situações ancestrais semelhantes, a expressar que sentimentos como o amor, o ódio e a vingança são eternos e não precisam de maquiagem pós-moderna para mostrar sua verdadeira face transcendental. É, portanto, o repositório do ethos sertanejo, de que o narrador de Brito expõe como manifesto, em atitude de franca defesa de uma cultura que se encontra em avançado estado de aviltamento, tal qual um aedo o faria pela veracidade e beleza de sua poesia. Segundo Davi Arrigucci Jr., “o drama concentrado ganha força simbólica geral, de modo que o sertão tende a virar mundo, como palco de contradições e conflitos humanos em sua dimensão mais ampla: o tempo da natureza é realmente uma extensão do sentimento problemático do tempo travado da existência que pressupõe o mundo moderno. Na realidade é o vasto mundo que vai até o mais fundo do sertão” (2003, p. 177).
“O que veio de longe” é o conto que abre o volume Livro dos Homens. A enchente do rio Jaguaribe traz um corpo (adiante-se que é de Domísio) com três buracos no peito feito por balas: “No lugar dos olhos que antes avistavam o céu, apenas um vazio escuro”, o que remete a um dos simbolismos do conto “Faca”, em que Domísio se escondia no “escuro”. O corpo foi “arrastado mundo abaixo, à procura do mar”, o que também representa um desdobramento e um diálogo com “Faca”, por ocasião do entrecho em que Domísio matou Donana: “o corpo lavado em sangue, tingindo um riacho, e depois um rio e depois um mar”. A gradação sugere um paradoxo, a idéia da água ao mesmo tempo trágica e libertadora. O corpo foi enterrado junto a uma oiticica: “Seu tronco guardava os desenhos dos ferros de ferrar gado”. No jogo de desdobramento entre os dois textos, o trecho revela-se irônico, pois Domísio era um vaqueiro inquieto, que ganha o repouso definitivo justamente no lugar de viajantes de gado, o “Pau dos Ferros”. Enterrado “anônimo e sem história”, uma nova identidade para ele vai ser criada pelos moradores do lugar, que precisam de uma referência para adorar – alguém que seja diferente, rico, nobre, santo, etc, em tudo destoante da própria identidade do lugar. O narrador lança uma pista que em novo desdobramento remete ao conto “Faca”: “O passado muitas vezes retorna, cobrando o que é seu” (adiante-se que é Pedro Miranda que virá para fazer essa cobrança). O morto encontrado ficou sendo o “Sebastião dos Ferros”, em razão do “santo do dia”, “e o sobrenome da árvore que abrigou suas carnes”. A construção mística de uma identidade deixa vestígios do espaço e do tempo: “- Aposto que veio do reino. Ou de mais longe, da Arábia”, o que se afigura mais uma alusão ao Brasil da época do Império. “Os exilados do Monte Alverne aguardavam o chamado do morto, a hora em que iriam escutá-lo falar. Pressentiam um acontecimento, uma experiência nova”. O narrador não informa, mas Monte Alverne é distrito do Crato, cidade localizada no sertão do Ceará. O topônimo original, séculos atrás, era Missão do Miranda, o que faz lembrar da personagem Pedro Miranda, que virá para contestar a identidade construída do santo. Ou seja, há uma tradição que se revela nos contos de Brito. Recorde-se também de outro detalhe, do conto “Faca”: a filha de Domísio, que protege o pai, se chama Francisca, o que remete por homonímia a Francisco, o santo católico do Monte Alverne, que na região da Toscana aprofundou sua solidão com o objetivo de atingir a contemplação mística de Deus. A similitude com o Monte Alverne do conto se estabelece na medida em que a comunidade, apoiada no seu fervoroso misticismo, cultua Domísio como santo.
Os pormenores anteriores preparam a manifestação do fantástico. De fato ele irrompe no entrecho quando uma mulher mordida por uma cascavel “rogou ao bondoso desconhecido que lhe valesse. Um clarão atravessou o céu, parecendo o anjo da morte. Assim ela relatou o fato para o marido e os filhos, no aconchego da casa”. Observe-se a simbologia que retorna, representada por uma serpente, a dialogar mais uma vez com “Faca”. Avulta no trecho citado uma elipse irreprimível, através da não nomeação direta da cura e do milagre, bastando ao narrador para se fazer entender a menção singela “no aconchego da casa”. A passagem precedente se mostra uma espécie de “causo”, um entre outros inúmeros, que ajuda a construir aos poucos a identidade do santo milagroso: cura, nome, histórias, etc. A comunidade se vale da crença no morto para a resolução dos seus problemas, das suas adversidades. Segundo o narrador, as pessoas “construíam” uma identidade para “tudo o que faltava nas suas existências comuns”, criando um homem virtuoso, um santo, um rei arquetípico luso-brasileiro. Sebastião dos Ferros, o morto nordestino, é o sucessor “brasileiro” de D. Sebastião, o messias português. Note-se que há todo um diálogo com a tradição literária e cultural em frases como “construíram capela”, “a verdade é uma só e atravessa os tempos”, o que denota um messianismo atemporal. Uma outra ironia se faz presente no texto, o morto seria leitor das “Escrituras Sagradas, quando se aborreceu da luxúria”, logo quem, Domísio, o luxurioso. Percebe-se, então, no entroncamento de informações dos dois contos, que o humor acaba se manifestando. “Os incrédulos não se atreviam a contestar aquela gente. Sentiam medo de tamanha fé. – Não se remexe nos mistérios consagrados - afirmavam”, o que acaba sendo uma cifra para o surgimento de algum herege. Um certo Pedro Miranda chegou ao lugar. Pegou informações sobre o morto e, em consequência, “foi possuído pela ira”. “A emoção do estranho não passou despercebida à gente que o examinava. Habituados à espera, deixaram ao seu arbítrio o momento de falar”, o que pode ser traduzido para o dito comum como o peixe morre pela boca. En passant, observe-se que em termos de foco narrativo o procedimento se mostra muito rico. Pedro Miranda “perguntou se desejavam ouvir sua história verdadeira” e é interpelado: “ – O que é a verdade? – inquiriu uma voz transtornada, vinda de um corpo escondido pelo escuro”. Mais um detalhe estilístico que dialoga com “Faca”, pois Domísio havia se escondido no quarto escuro. Agora, do escuro, vem em sua defesa a voz indiferenciada e ignorante da turba, pois não existe a verdade: tudo é construído, de acordo com o imaginário crente do lugar. “Pense no que vai dizer, meu nobre! – advertiu outro, num tom mais elevado”, a afigurar o perigo em que se incorre ao ser desconstruída uma identidade forjada pela comunidade. Pedro Miranda faz a revelação aos crédulos: o homem era Domísio Justino, morto por ele com três tiros numa emboscada, quando tentara fugir, após ter matado Donana, “esfaqueada pelas costas”. Pedro fez justiça a sua irmã inocente e não satisfeito, com sua fala, conspurcou o corpo transformado em santo. Ele se mostra como um estrangeiro descrente, um Outro que vem profanar a identidade sagrada construída pela população. A reação dos ouvintes: “Estreitavam o círculo em volta do narrador, projetando os corpos silenciosos”. É uma imagem vigorosa, cinematográfica, que revela a morte sendo virtualmente construída. Pedro diz: “O santo de vocês está ardendo no inferno. Não merece uma única reza”. A reação da turba, em resposta a ele, se mostra um despiste e um reforço para a importância da espera como visão de mundo do lugar: “agora, era melhor descansar. Viera de longe, precisava dormir”. Para sempre, pode-se assim dizer, pois a frase anterior é um eufemismo para a morte iminente: “Um relâmpago cortou o céu. Choveu a noite inteira e o Jaguaribe botou enchente. Pareceu o dia em que encontraram o corpo do santo. Águas barrentas e profundas. Na medida certa para arrastarem outro corpo. Em relação às frases precedentes do entrecho caberia fazer uma “etnografia da fala”, ou seja, “o estudo das normas de comunicação que prevalecem numa comunidade de fala, incluindo fatores verbais, não-verbais e sociais”. Entre outras variáveis poder-se-ia atentar para o “volume e altura da voz, a distância entre os interlocutores, a expressão e a postura física, o contato pelo olhar, as formas de tratamento e as regras para iniciar a conversação” (Trask, 2004, p.102-103). Revelaria-se o ethos sertanejo, no embate entre a identidade dos habitantes do Monte Alverne em confronto com a alteridade do forasteiro, que com sua “verdade” não faz frente à crença messiânica em “Sebastião dos Ferros”. A fé do vulgo sobrepuja o discurso prosaico e profano. Tal qual o corpo do morto, a mística, a crença, também vem de longe, é ancestral. O que veio de longe tanto pode ser o santo a ser adorado quanto o blasfemo que conspurcou o morto. Repare-se na elipse: não é o homem que veio de longe, é o sobrenatural, para o bem e para o mal. O conto termina com a “natural” morte do forasteiro, que se atreveu a desmistificar o Messias. A última frase é assaz reveladora: “Na medida certa para arrastarem outro corpo”, leva à idéia do ciclo das águas, o eterno retorno da natureza que equivale à fúria da natureza humana conspurcada em sua crença. Quanto à ficção de Brito, a narrativa se desdobra, não satisfez sua fúria ficcional com o conto “Faca” e faz o eterno retorno com “O que veio de longe”, que tem um andamento narrativo tradicional. Em ambos os contos o narrador faz o casamento perfeito entre forma e matéria, no uso das elipses e redundâncias, que se mostram recursos próprios da tradição oral. Entretanto, ao contrário de “Faca”, com quem dialoga, “O que veio de longe” não apresenta vários tempos narrativos, nele se impõe a cronologia convencional. Uma possível resposta para essa opção narrativa reside no fato de que uma identidade, como a da cultura sertaneja, se construir com o passar do tempo, uma tradição que vai se forjando continuamente, sem interrupções. Daí a isomorfia: uma narrativa conservadora para uma comunidade igualmente conservadora. Outro detalhe que chama a atenção é que em “O que veio de longe” há a espera do momento para matar o desafeto do santo forjado pela comunidade, através do eterno retorno purificador das águas, que trouxeram o santo a ser reverenciado e que levam embora o demônio que o profanou. Para Davi Arrigucci Jr., na narrativa de Brito “o resultado, referido ao tempo da natureza, é uma espécie de condenação à recorrência, uma volta ao mesmo, que rege os destinos narrados e funciona como um princípio de composição”. A estratégia permite, segundo o ensaísta, “o corte abrupto do fim da história”, sem desmanchar o “segredo do destino” da narrativa (2003, p. 174-175).
Mostra-se cabível aplicar às narrativas de Brito, em linhas gerais, a seguinte classificação de foco narrativo: presença de “autor implícito”, conceito formulado por Booth, combinado com “narrador onisciente neutro”, conceito de Friedman, em 3ª pessoa, tendendo ao “sumário” da narrativa tradicional. Explique-se que o conceito “autor implícito” pode ser entendido como “imagem do autor real criada pela escrita”, de quem “comanda os movimentos do narrador, das personagens, dos acontecimentos narrados, do tempo cronológico e psicológico, do espaço e da linguagem em que se narram indiretamente os fatos ou em que se expressam diretamente as personagens envolvidas na História” (Leite, 1994, p.19). No caso de Brito, autor implícito é sinônimo de autor engajado, pois o narrador de seus contos está deliberadamente a serviço de valores que lhe são caros, quais sejam de defender uma cultura anterior à industrialização. Desse modo, “Faca” e “O que veio de longe” são contos que têm em comum a marcante presença do passado. Segundo Wolfang Kayser, é o tempo usual da narrativa épica, que “referenda a sua objetividade, fixando o acontecido” (Apud Leite, 1994, p.11). O passado é um outro tempo para um mundo de outros costumes. Trata-se do tempo forte das narrativas de Brito, através do qual o escritor expõe seu ponto de vista sobre o mundo que o cerca, no sentido de referendar as experiências e os valores de uma cultura sertaneja gestada há séculos, de caráter oral, um ethos que permanece, teimando em não sucumbir à sua degradação na época contemporânea. O narrador, assim, atinge o universal ao tratar do regional, vislumbra as essências em torno das aparências, se posicionando solenemente como o mediador do choque entre o tradicional e o moderno, não se eximindo de assumir sua predileção pelo primeiro. O narrador, em narrativas desdobradas, se nega a cantar “excelências”, pois na obra o ethos sertanejo se mostra vivo e pulsante, a afirmar sua resistência cultural.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRITO, Ronaldo Correia de. Faca. Pósfácio de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
__________________. Livro dos Homens. São Paulo: Cosac & Naify, 2005.
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Trad. Vera Costa e Silva et. al., 8 ed., rev. aum., Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.
KAYSER, Wolfang. Análise e Interpretação da Obra Literária (Introdução à Ciência da Literatura) 2 Vol. Trad. Paulo Quintela. 5 ed., Coimbra: Arménio Amado, 1970.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O Foco Narrativo. 7 ed., São Paulo: Ática, 1994.
SOUZA, Gilda de Mello e. O vertiginoso relance. In Exercício de Leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980.
TRASK, R. L. Dicionário de Linguagem e Lingüística. Trad. Adapt. Rodolfo Ilari. São Paulo: Contexto, 2004.
Revista Pandora
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