quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Russificação Soviética e Pós-soviética: Autoridade Política e Etnicidade, 1917-1997


Russificação Soviética e Pós-soviética: Autoridade Política e Etnicidade, 1917-1997 (parte final)

As relações do centro com as nacionalidades não titulares foram de completa assimilação, visto que não se criou para elas nenhuma estrutura que pudesse diferenciá-las como uma cultura de Estado: territórios e direitos lingüísticos não foram delimitados e, assim, muitas de suas práticas culturais se viram enfraquecidas. Por outro lado, a relação das nacionalidades não titulares com o centro foi de colusão quando tentaram trazer para a sua proteção o aparato estatal contra as nacionalidades titulares que por ventura se tornassem uma ameaça contra a sua continuidade física ou cultural. Neste caso, ao chamar para si o aparato do Estado contra as nacionalidades titulares, a reação das nacionalidades não titulares é de libertação. Nas relações dos bashkir, buryat, chukchi, chuvash, karachai e tártaros com o centro soviético, o nacionalismo de colusão era mais aparente. Por sua vez, em relação ao centro, o nacionalismo das nacionalidades titulares poderia ter um caráter de libertação para aquelas que a longo tempo desejavam ter seu próprio monopólio sobre os aparatos locais do Estado e sobre os mecanismos econômicos regionais, assim como, impor suas próprias normas à população, solapando o poder de o centro aplicar uma regulação direta e unitária. As repúblicas da Ásia Central, do Báltico e a Geórgia enquadrar-se-iam mais perfeitamente neste caso. No contexto soviético, o centro é visto mais como russo (que é uma nacionalidade titular) do que soviético pelos povos não-russos. Não há uma nacionalidade toda-abrangente sentida como soviética: um nacionalismo de colusão ou libertação em relação ao centro enxerga russos e não soviéticos.
Além dos casos já assinalados, o nacionalismo pode adquirir a forma de competição quando duas ou mais nacionalidades titulares dentro de uma mesma região ou república disputam entre si territórios, recursos naturais e logísticos e a precedência em sua gestão, o que abriria uma brecha para a intervenção do poder central no contexto soviético, ou da Rússia ou outros países vizinhos no contexto pós-soviético. Exemplos deste tipo podem ser encontrados nas relações estabelecidas entre uzbeques, tadjiques, armênios e turcos, assim como nas relações entre a Rússia e as nacionalidades da fronteira oeste. De igual forma, dentro de uma região ou república, nacionalidades não titulares podem expressar entre si nacionalismo de competição e fazer colusão com uma nacionalidade titular.
No contexto pós-soviético, um novo fenômeno de identidade nacional tornouse evidente, demonstrando a sua continuidade com o processo soviético de russificação: a colusão de nacionalidades não titulares definidas etnicamente como não-russas – mas que têm o russo como primeira língua para a vida familiar e de convívio social mais amplo (como judeus, poloneses, ucranianos e bielo-russos) – tem tido o efeito de tradicionalizar e, portanto, mobilizar uma identidade reativa às nacionalidades titulares das repúblicas não-russas. Como a nacionalidade titular de cada república soviética definia uma hegemonia interna, apenas uma parcela menor
da população entre as titulares não-russas efetivamente se preocupou em dominar o russo (a língua da administração soviética), ao passo que o russo tornou-se para muitas populações residentes não titulares uma língua de unidade. Assim, o processo de russificação delineou uma certa ambigüidade: no interior das repúblicas não-russas, o russo tendeu a desaparecer como etnia, mas revigorou através das “nacionalidades que falam o russo”, tendo alcançado grande visibilidade no contexto das soberanias pós-soviéticas. O irônico de todo este processo é que tais
nacionalidades que não são titulares e não são russas mas hegemonizaram entre si o russo tornaram-se diaspóricas sem que houvesse uma homeland para reivindicarem como lugar de imaginário retorno, posto que nem mais existe a pátria soviética. A ausência de ligações sociais no passado torna as estratégias assimilacionistas mais difíceis no presente, particularmente quando este é marcado por uma excessiva individualização dos problemas sociais, pelo aumento da desigualdade social e pela apatia política, levando a maioria dos russos a expressar completa indiferença quanto ao destino de “seu povo” dentro e fora da Rússia.
No entanto, a indiferença não barra os processos deliberativos que definem os rumos de um governo: em 1993, menos da metade dos eleitores compareceu às urnas em abril para votar o referendum de Boris Yeltsin sobre a reforma constitucional que tornaria o poder executivo mais forte na Rússia, e apenas 1/3 dos eleitores participou das eleições parlamentares de dezembro, quando os tópicos da segurança, da ordem e da estabilidade estiveram na boca de muitos candidatos. Ao final dos anos de 1990, a grande maioria da população russa não se sentia responsável pelos rumos do desenvolvimento de seu país, o que representa um sentimento de descrença, de não pertencimento ao todo social ou às suas instituições políticas muito perigoso para a autonomia democrática, visto que pode exacerbar tanto as demandas por carismas de chefes políticos autoritários quanto aquelas por carismas grupais de maior ou menor escala. O governo da Federação Russa continua tendo um interesse especial em justificar a sua esfera de influência sobre os “estrangeiros próximos” afirmando serem uma preocupação da Rússia os
direitos dos povos que falam russo, embora as suas fronteiras não estejam tão permeáveis e nem a sua população esteja disposta a receber novos imigrantes.
Os sentimentos de nacionalismo que foram tipificados não são mutuamente excludentes, mas devem ser entendidos conforme cada contexto político, demográfico e de relações de poder. Com a desagregação da URSS, vários centros de disputas surgiram dentro e entre as 15 repúblicas que emergiram nos marcos da antiga estrutura. Cada novo centro vem buscando definir suas hegemonias regionais. O próprio governo Russo esforçou-se em coordenar a formação de uma
Comunidade de Estados Independentes (CEI) e, entre 1992 e 1994, muitas das exrepúblicas
soviéticas acrescentaram à integração econômica a possibilidade de formar uma unidade regional integrada de defesa. Das 15 repúblicas, apenas Letônia, Estônia e Lituânia não se integraram, ao passo que a desconfiada Geórgia de Shevardnadze entrou na CEI em 22 de outubro de 1993.
Com a Rússia monopolizando pontos chaves da infra-estrutura econômica e estratégica, em particular a exportação e importação de energia, a CEI poderá servir como uma forma de reintegração dos antigos estados soviéticos em uma nova estrutura imperial. Como resultado, uma forma de colusão vem surgindo entre a Rússia e as nacionalidades não titulares das outras repúblicas, particularmente nas áreas de fronteiras. O seu efeito mais imediato é a limitação do vôo das soberanias dos novos estados, que sofrem a ameaça periódica da intervenção de tropas russas toda vez que a situação interna (inter-étnica ou inter-religiosa) torna-se excessivamente instável. Nas relações centro/periferias pós-soviéticas, o imperialismo neo-russo tem uma forte componente etno-nacionalista: as possíveis bases da assimilação não são supranacionais, mas nacional-russas. Isto torna imensamente insegura a situação das minorias russas fora da Rússia: o censo de 1989 já apontava que o número de russos nas repúblicas soviéticas não-russas era de 23 milhões de habitantes. Entretanto, os possíveis apoios russos às minorias não são incondicionais, mas sim levados conforme os próprios interesses estratégicos da Federação Russa. Da mesma forma, muitos russos fora da Rússia – como é o caso daqueles que vivem com um padrão de vida mais alto na Ucrânia que seus congêneres na Rússia – dificilmente enxergam nela uma possível homeland.
As relações políticas pós-soviéticas mais do que nunca vêm se etnicizando: as pessoas começaram a considerar que seus interesses somente poderiam ser melhor representados por um administrador que fosse o seu igual em etnia e/ou religião. Isto significa um completo apagamento da precária identidade política de “povo soviético”, um desvio na autonomia civil democrática e uma solução sempre violenta (etnicamente situada) para as divergências de projetos políticos. As populações russas se tornaram por si mesmas uma ameaça à estabilidade dos novos governos fora da Rússia já que ocupam o papel de minoria que busca lugar de expressão no seio de suas instituições políticas, econômicas e culturais; tanto mais porque, em nome de uma identidade russa transnacional, os estados póssoviéticos correm o risco periódico de sofrerem intervenções armadas da Rússia. Os perigos são particularmente grandes em regiões onde os russos se concentraram em uma base territorial bem demarcada, como no nordeste da Estônia, no norte do Kasaquistão e na Moldávia, o que pode suscitar uma intervenção em nome de uma homeland russa. Portanto, pode-se dizer que a lógica das estruturas de poder que possibilitaram a russificação permaneceu intacta mesmo depois da desintegração do sistema soviético, e vem temperando as relações políticas, econômicas e diplomáticas entre os governos pós-soviéticos.
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Alexander Martins Vianna
Laboratório de Estudos do Tempo Presente – TEMPO
Revista Cantareira

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