segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Uma menina: trabalho e infãncia inexistente


Uma menina: trabalho e infÂncia inexistente
no conto machadiano “O caso da vara”
João Roberto Maia
(Universidade Federal Fluminense / CNPq)


RESUMO

Aparentemente em segundo plano, a questão nuclear, no conto “O caso da vara” de Machado de Assis, é o de certa experiência de trabalho na sociedade brasileira escravocrata, em período anterior a 1850. O conto pode servir como ponto de partida para pensar o problema do trabalho na obra machadiana.

ABSTRACT

Apparently in the background, the core question, in the Machado de Assis’ short story “O caso da vara”, is a certain work experience in slavocrat brazilian society, before 1850. The short story may be a starting point to think about the labour problem in Machado’s work.


O início do título deste texto está inspirado, como é óbvio, em outro título: Duas meninas, um dos últimos livros de Roberto Schwarz. A inspiração não é gratuita. Como se verá, boa parte de minha leitura do conto machadiano deve a reflexões do crítico paulista. Além disso, a amenidade irônica daquele título de Schwarz quadra com certa leveza e prosaísmo que há no que foi escolhido (também de modo irônico) por Machado de Assis – como se o conto não passasse de um despretensioso “caso” que se desenvolve em torno de um objeto banal. Diga-se ainda que se compararmos as três meninas em questão, aquela que está no centro de interesse deste estudo ocupa posição inferior na sociedade brasileira do século 19, bem abaixo da Capitu que casa com um herdeiro de rendas e propriedades, bem como da mocinha descendente de ingleses na Diamantina oitocentista, Helena Morley. Trata-se de Lucrécia, cria de Sinhá Rita, menina que trabalha duro, aprendendo a fazer rendas e bordados, cuja voz ouvimos apenas no final da narrativa, tomada pelo desespero. Cumpre dizer que o pequeno caso em que está envolvida diz muito sobre parte da história brasileira e do legado que, como nação, ainda hoje suportamos. E é neste aspecto que a negrinha (como às vezes é referida no conto) pode ser relacionada às outras duas meninas.

Já foi dito que “os contos de Machado de Assis são uma grande exploração, muito sistematizada, extremamente poderosa, da experiência histórica brasileira”, sem concessões ao pitoresco, pois o que é importante, dentro da visada machadiana, é “o sistema das relações sociais brasileiras”, ou seja, “o problema de uma sociedade escravista inserida no mundo moderno” (SCHWARZ: 1999, 9). Meu objetivo é o de viabilizar uma leitura de “O caso da vara” que esteja ajustada a este ponto de vista.

“O caso da vara” foi publicado pela primeira vez em 1891 na Gazeta de Notícias. Estamos, pois, no período do Machado maduro, que já havia publicado Memórias póstumas de Brás Cubas. 1891 é também o ano da publicação em livro de Quincas Borba. E aquele conto, publicado em livro (Páginas recolhidas) no ano de 1899, é representante digno da produção literária madura do escritor.

Antes de iniciar a análise do conto, cabe uma explanação, um pouco extensa, a respeito de uma questão que precisa avançar no debate sobre Machado de Assis. Refiro-me a um problema que, até onde sei, não recebeu ainda maior atenção da crítica: os modos pelos quais o trabalho está representado em sua obra. É evidente que seria necessário, para que a discussão ganhasse substância, a especificação das formas diversas de trabalho e das diferentes esferas sociais em que se situam aqueles que trabalham. Não obstante o pequeno número de intervenções neste debate, há algumas opiniões em jogo. Afrânio Coutinho afirmou a ausência de trabalho em Machado como conseqüência do “ódio à vida”, postura machadiana relevante na ótica do crítico (COUTINHO: 1959, 116). A afirmação de Coutinho é considerada “justa” por Sérgio Buarque de Holanda, para quem as personagens machadianas “vivem de expediente ou de proteção, ou da boa fortuna, e raras se sustentam pelo próprio esforço” (HOLANDA: 1996, 317). Com efeito, se pensarmos no conjunto da obra ficcional de Machado, nossa tendência será a de reconhecer as opiniões dos dois críticos como válidas, enquanto postulações gerais. Entretanto, um exame mais detido, com foco na trajetória de algumas personagens dos romances e na situação nuclear de pelo menos dois de seus contos (“O caso da vara” e “Pai contra mãe”), pode facultar, sim, a percepção de que a questão do trabalho em Machado tem presença considerável como problema a ser estudado, e escapou às observações críticas de cunho genérico como as referidas acima. Neste pouco explorado terreno de reflexão sobre Machado de Assis, Raymundo Faoro assinala, por sua vez, que o enriquecimento das personagens machadianas é normalmente sinônimo de “pôr-se ao abrigo do trabalho”, pois proporciona a chance de desempenhar apenas “as serenas funções de capitalista”. Faoro anota que este “horror ao trabalho” é compartilhado por herdeiros como Brás Cubas, Bentinho, Estácio, Rubião e outros; aversão que, em certo passo de A mão e a luva, é objeto de censura do narrador aparentemente convencido de que é válida a asserção edificante, à feição burguesa, segundo a qual a labuta é penhor de legitimação da existência – ainda que tal asserção não esteja explicitamente enunciada. Em outra passagem de seu livro clássico, o estudioso gaúcho insiste no desprestígio do trabalho, ao qual prefere-se “a ocupação ligada à coisa pública, reservada ao estamento político”, que não exige efetivamente esforço. Em linha com as verificações anteriores, Faoro ainda acentua “a sobrevivência de um estilo senhorial, a que repugna o contato do trabalho rotineiro, valorizando-se em ocupações mais altas, sobretudo na política” (FAORO: 2001, 28-29, 231-232, 248). [1] Em suma, são observações que põem o acento na captação literária realista de um dado estrutural da sociedade brasileira à época do Segundo Império e dos primeiros anos da República, na qual era muito viva a nota infamante a respeito do trabalho que demandasse esforço real, em função da vigência ou da lembrança nítida da escravidão recentemente abolida. Sem prejuízo do acerto de tais observações, sobretudo quanto ao desmerecimento histórico da lida, elas deixam de fora a consideração de outras implicações do problema. Penso que Roberto Schwarz oferece pistas substanciais a respeito de tais implicações. Para dar formulação própria ao plano de estudo proposto pelo crítico em entrevista, digamos que em dois dos principais romances machadianos, Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, vemos que entre os personagens que pertencem à classe proprietária o trabalho está, sem dúvida, quase ausente. Brás Cubas atravessa toda sua existência sem nunca precisar ganhá-la por esforço próprio, o que ele mesmo considera, no famoso capítulo derradeiro do livro, o “das negativas”, como “boa fortuna”. Bentinho trabalha muito pouco apesar de estabelecido como advogado, pois o que lhe garante mesmo é a propriedade. Mas há também aqueles que conseguem enriquecer por força de muito trabalho, como o cunhado Cotrim das Memórias e Cristiano Palha, personagem pertencente a outro grande romance, Quincas Borba (neste aspecto a posição de Schwarz é inteiramente diversa da de Faoro). É verdade que a noção de trabalho aqui está rebaixada na medida em que, na trajetória de tais figuras, é inseparável de negociatas e contrabando de escravos (Cotrim), e da especulação e ludíbrio de incautos (Palha). Trata-se de esforços e formas de enriquecimento que ganham relevo se compreendidos criticamente no conjunto que formam e na experiência histórica de que são representativos, e que talvez possam ser comparados, por exemplo, com processos de acumulação de riquezas que são centrais n’ O cortiço e em S. Bernardo, explicitadas as diferenças dos contextos (FAVERO, PASCHOA, MARIUTTI e FALLEIROS: 2000, 58). [2]

Acrescente-se que no universo machadiano, Dona Plácida talvez seja a principal representante daqueles para os quais a dura lida, a que têm de se submeter, longe de ser um fator de enriquecimento, pode apenas manter uma existência de privações. O destino da personagem está marcado pelo esforço inteiramente destituído de sentido, o qual diz muito sobre certa forma histórica do trabalho vigente na sociedade brasileira escravocrata; forma desconectada da valorização burguesa do trabalho (SCHWARZ: 1990, 98-105).

Como ficou sugerido, “O caso da vara” é um conto em que o trabalho aparece como questão nuclear, ainda que aparentemente – por ser esforço humilde de “crias” – esteja em segundo plano. Trata-se de experiência de trabalho escravo, pois a palavra escravidão “não é forte demais”, como bem disse John Gledson, para caracterizar as relações entre Sinhá Rita e as meninas de sua “escola” (GLEDSON: 1998, 52-53). Portanto, o conto dá oportunidade para pensar o problema exposto acima na literatura de Machado de Assis. Detenho-me agora em sua análise.

O início do conto dá notícia de uma fuga: o rapazinho Damião, que escapa do seminário, anda pelas ruas “espantado, medroso, fugitivo”, inicialmente sem rumo definido. O que chama a atenção logo nas primeiras frases é um contraste entre o propósito de exatidão quanto ao registro do momento em que se deu a fuga e a imprecisão a respeito do ano em que se passa a história. Assim, se o narrador anota, com a segurança de sua onisciência, a hora, o dia da semana e o mês do episódio - "às onze horas de uma sexta-feira de agosto" logo a seguir ele relativiza tal saber inconteste – “não sei bem o ano; foi antes de 1850” (ASSIS: 1997, 577). Embora esteja posta, a relativização da onisciência narrativa não é o mais importante na passagem. Veremos que as duas formas de notação temporal – tanto a que tem aparência de exata e constitui a primeira marcação cronológica mais imediata da peripécia, quanto a que é algo imprecisa e remete ao contexto histórico – são recursos importantes para a leitura interessada em desvelar os modos pelos quais o conto coloca em causa fundamentos sociais da época do episódio narrado, bem como sugere a possível persistência de atitudes, também elas sociais, no período da publicação do conto, já posterior à Abolição. Mais precisamente, anotemos que, além do contraste com a outra notação cronológica, aquele registro do ano de 1850, como se se tratasse de informação dispensável, contrasta ainda com sua importância para entender o passado recente (recente, é claro, do ângulo de Machado e de seus leitores coetâneos) e sugerir de modo implícito, quanto a um problema central do episódio narrado, o confronto entre aquele mesmo passado e o período da publicação do conto. Retornarei a estas questões.

Em reforço ao primeiro parágrafo que flagra o instante após a fuga, o primeiro diálogo, travado na ocasião em que o rapaz fora levado ao seminário pelo padrinho João Carneiro, define o drama da personagem fugitiva e assinala o fundamento patriarcal da sociedade brasileira oitocentista. Ao fugir do seminário como se fugisse da peste, Damião deixa explícito, já no início da narrativa, que sua destinação à carreira de padre não passa de imposição paterna. “O grande homem que há de ser”, fórmula com que o padrinho o apresentara ao reitor, é senha do projeto imposto pelo pai. A resposta do reitor corrobora a autoridade e o propósito paternos – “venha o grande homem” –, apenas acrescentando a necessidade de afirmação de valores – humildade, bondade – que tornem esta grandeza mais compatível com o exercício da carreira eclesiástica, ao menos com a face pública de tal carreira. A convergência das duas falas, a que reproduz o desígnio paterno e a eclesiástica, dá a medida do atraso e feição tradicional que caracterizam a sociedade representada, na qual a experiência do trabalho infantil escravo, sob a ameaça e efetivação de castigos físicos, bem ajustada ao cotidiano, como a que o conto dá notícia, constitui a demão última da referida caracterização.

Volto à alusão a 1850. É sintomático que este ano sirva como referência temporal para marcar o contexto histórico do episódio narrado. Como se sabe, em 1850 a aprovação da lei de 4 de setembro contribuiu decisivamente para a crise do regime escravista, que se instaurou nas décadas seguintes. Sabemos que o tráfico negreiro já era ilegal desde 1831, sua condição de contrabando foi reforçada na década de 1840, até que a lei de 1850 constituiu instrumento eficaz para obstá-lo. Registre-se a informação de que o período anterior ao ano referido no conto e ainda a década de 1850 são tempos de hegemonia senhorial-escravista. [3] É neste contexto que a experiência de trabalho de Lucrécia e de suas companheiras está situada.

Vimos que Damião fugiu do seminário e estava sem saber qual o rumo que deveria tomar. Em certo momento ilumina-se o cérebro do rapazinho e ele se lembra de recorrer ao auxílio de Sinhá Rita, pois tinha a percepção vaga da ascendência desta mulher sobre o padrinho. Nos termos contidos do narrador machadiano, quase sempre mais inclinado a insinuar, trata-se de “uma viúva, querida de João Carneiro” (ASSIS: 1997, 577). A caracterização de Sinhá Rita, feita após as explicações de Damião e seu pedido de ajuda à viúva, é sumária, mas suficiente para deixar à vista a articulação entre as disposições da esfera individual e o que só é efetivamente inteligível no âmbito da posição na sociedade. Diga-se de passagem que este modo de desvelar uma personagem, de que Machado é mestre, faz lembrar, sem prejuízo das óbvias diferenças, passagens célebres de outras obras do mesmo autor, como as que consagra ao cunhado de Brás Cubas, o Cotrim, e ao agregado José Dias de Dom Casmurro. A viúva em questão é apresentada como “apessoada”, prazenteira, chegada a uma boa farra. No entanto, ela é também “brava como diabo”, e para captar a duplicidade de tal qualificativo é preciso não o reduzir à exposição de certo traço psicológico individual, como parece ser o caso à primeira vista. Na verdade, não obstante sua definição como elemento comportamental de um indivíduo, o qualificativo dá expressão envenenada, com certa pretensão escarninha, à posição de tal senhora no sistema de relações da sociedade escravocrata. Pois esta mulher, tão boa praça, vive do trabalho de meninas, às quais ensina “a fazer renda, crivo e bordado”, obrigando-as a trabalhar por período extenso para dar conta das tarefas determinadas, cujo não cumprimento tem como conseqüência, para as “crias”, uma boa surra a golpes de vara. Diga-se que no conto a vítima do ser “bravo como diabo” é uma das pequenas, Lucrécia, que não consegue terminar a contento a incumbência imposta. Assim, em sociedade tão assimétrica, constituída em parte substantiva por pessoas postas no mesmo nível de “qualquer outra coisa de domínio particular”, os cativos (NABUCO: 2000, 123), é fácil para alguém, dependendo da posição social que ocupe, dar largas ao seu mau gênio, dirigindo-o aos muitos que podem estar em nível subalterno ou, abaixo de todos, aos que se encontram na condição servil. Acrescente-se que no mesmo parágrafo e na fala seguinte de Sinhá Rita, a descrição de seu modo de ser é posta em situação. Em outras palavras, a ação da viúva, logo a seguir, reforça os termos com que o narrador a caracterizou, num trecho muito concentrado, elaborado com um poder de síntese capaz de definir, de uma vez por todas, dinamismos centrais daquela personagem. Refiro-me a seu empenho em alegrar o seminarista forçado e fazer com que o momento difícil pese menos no espírito do rapaz. Para isso provoca-lhe risos, conta-lhe anedotas, pede-lhe que conte outras por sua vez. Uma das anedotas desperta a comicidade de Lucrécia, que esquece por um instante o trabalho, atenta aos trejeitos do moço que conta a piada. A pequena interrupção da faina infantil não escapa à vigilância de Sinhá Rita. Num instante a agradável senhora, “amiga de rir>”, dá lugar à matrona severa – o seu lado “brava como diabo” –, sempre pronta a mostrar o instrumento de castigo e ameaçar: “Lucrécia, olha a vara!” (ASSIS: 1997, 578).

Inteirada da situação do rapaz e do pedido de ajuda suplicante que lhe dirige, a querida de João Carneiro não toma inicialmente o partido daquele que é a vítima da imposição. Pelo contrário, sua intervenção inicial indica convergência com o desígnio imposto (“A vida de padre era santa e bonita”), estando portanto afinada ou conformada com o poder paternalista a que estão submetidos os dependentes. Entretanto, Sinhá Rita muda de posição logo após a referência de Damião ao padrinho, com quem o rapaz julgava não poder contar, pois ninguém seria capaz de fazê-lo assumir a causa do lado mais fraco. “Ferida em seus brios”, toma para si o problema do mocinho para fazer valer o domínio que tem sobre João Carneiro. Assim, o que a move é a força do orgulho pessoal e não a atitude solidária perante o desespero do outro ou a postura crítica face à vontade do mais forte que se quer incontrastável. Sintomaticamente, um pouco antes as súplicas do rapaz só foram capazes de deixá-la “lisonjeada”.

Quando o padrinho chega, a “brava como diabo” dá-lhe a conhecer sua opinião e postura intransigente, já abertamente adversárias da aspiração paterna – “antes um padre de menos que um padre ruim” (ASSIS: 1997, 579), diz-lhe. Por sua vez, João Carneiro tenta mostrar a autoridade que tem sobre o jovem, à base da promessa de castigos. Detido neste intento por Sinhá Rita, não lhe cabe senão colocar-se a serviço da causa de Damião, enfrentando a previsível ira de seu compadre, com o objetivo de salvaguardar suas relações com a amante. Vê-se diante da assimetria entre suas próprias forças e os dois poderes representados por sua querida e pelo compadre – “Estava entre um puxar de forças opostas”; “Imaginai que o barbeiro de Napoleão era encarregado de comandar a batalha de Austerlitz” (ASSIS: 1997, 580).

Não há como decidir, já que o conto não nos dá informação pronta a respeito, se a relutância de João Carneiro em se colocar contra o projeto eclesiástico deve-se apenas ao fato de ele ser “um moleirão sem vontade>” ou se há alguma relação de dependência sua perante o pai de Damião. A primeira hipótese é, sem dúvida, a mais provável e a única que está explicitada, mas há indicações que talvez permitam não descartar inteiramente a segunda. O verdadeiro pavor que o homem sente ao antever sua conversa com o outro sobre o assunto delicado – “João Carneiro estava com a pupila desvairada, a pálpebra trêmula, o peito ofegante” – não sugeriria a situação de alguém posto em estado de alguma espécie de sujeição pessoal? Prevê mesmo a possibilidade de a ira do outro voltar-se contra ele próprio, tornando-se até, na hipótese mais extrema, vítima de agressão física: “Conhecia o velho; era capaz de lhe quebrar uma jarra na cara.” (ASSIS: 1997, 580). Claro que esta sua tentativa de antecipar uma reação adversa pode ser compreendida menos como risco efetivo para sua integridade física do que como versão hiperbólica da consideração do mau gênio do compadre. Mas acho razoável admitir a hipótese de que, além do que é ditado pelo temperamento, a atitude muito acovardada resultaria de condições objetivas de sujeição, as quais poderiam ser o resultado, por sua vez, da organização paternalista da sociedade brasileira àquela época.

Seja como for, ainda mais explicitamente do que no caso de Sinhá Rita, João Carneiro só toma para si a defesa de Damião em razão de seu interesse exclusivo. A sorte do jovem está na conta dos assuntos aos quais não dedica o menor interesse. O contraponto destes dois modos de interferências em prol de outra pessoa, pautados por desejos e conveniências alheias à causa em si, pode ser encontrado no sentimento que Lucrécia inspira a Damião, quando ele decide que lhe tomaria a defesa se ela não terminasse a tarefa a tempo. Além de sentir-se responsável pelo riso fora de hora da menina (na perspectiva da matrona), parece haver no rapaz, de fato, interesse e compaixão por aquela criança. Também não há no caso, como é óbvio, nenhuma chance de vantagem pessoal para o mocinho. No final do conto o propósito do seminarista forçado não se mantém. Verificamos então que é mais forte sua própria necessidade de escapar a uma determinação da esfera do poder paterno, crucial para sua vida, valendo-se da instância de um poder feminino sobre o padrinho; instância que representa, ao mesmo tempo, trunfo para ainda vislumbrar alguma chance de autodeterminação na escolha da carreira profissional, que é a parte que cabe a Damião, e inclemência dos castigos físicos, que é o que fica com Lucrécia.

Se tomarmos o quadro que foi traçado até aqui pelo ângulo da matéria social representada no conto, veremos que algumas das linhas de força desta já estão explicitadas. Assim, em primeiro lugar estampa-se a posição do pater famílias, cujas prerrogativas se querem incontornáveis e, de fato, não podem ser enfrentadas diretamente, de peito aberto, por aqueles que estão mais à mercê de seu raio de ação – por isso, Damião tem de recorrer à força de outros que lhe possam garantir alguma chance de intervenção diante do arbítrio paterno. Vemos também que a mesma mulher que toma decididamente o partido da autodeterminação do jovem contra a decisão autoritária, ainda que tal atitude esteja motivada pelo orgulho pessoal, não se faz de rogada ao tirar o proveito que pode da estrutura de relações sociais iníquas, sabendo ser cruel – ou “brava como diabo” – com meninas indefesas. Sublinhemos ainda que o limite da única manifestação de interesse verdadeiro pelo drama do outro no conto, o que se revela em Damião pelas dificuldades de Lucrécia, tem fundamento prático, uma vez que sua principal razão de ser está na desigualdade social extrema, que pode tornar incompatíveis a recorrência ao poder mais à mão para garantir alguma margem de manobra e a capacidade de manter solidariedade a alguém que se encontra sob este mesmo poder, sobretudo se alguém for um escravo. E entre parênteses, assinale-se que esta razão não impede de considerar criticamente a pusilanimidade do rapaz e sua decisão de sequer arriscar o próprio interesse, mas ela sinaliza que o foco da postura crítica não deve estar principalmente, neste caso, na esfera individual de responsabilidade.

A cena seguinte, após a incumbência imposta ao padrinho, é um dos momentos fortes do conto, representativo da sutileza machadiana. Antes de comentá-la, tocarei num assunto – que foi posto por Wilson Martins – cuja pertinência será verificada em relação à mesma cena.

No terceiro volume de História da inteligência brasileira, Martins cita um poema escrito por Bittencourt Sampaio no ano de 1860, intitulado “A mucama”, que tem afinidade, como lembra o crítico, com o poema “A crioula” (1853) de Trajano Galvão. Trata-se de “poesia antiabolicionista” e que aponta, como afirma Martins, para um aspecto da sociedade escravocrata: não obstante “os horrores da escravidão”, que não podem ser negados ou minimizados, o regime servil estava bem integrado à estrutura social como “um dos elementos da banalidade cotidiana” (MARTINS: 1977, 96-98). Deste ângulo, a ausência da escravidão como instituição inaceitável nesta poesia tinha, em parte, fundamento prático e sinalizava a existência de distinções no mundo dos escravos em razão da diferença de suas funções e até da posição social dos senhores a que serviam.

Como o próprio título indica, no poema de Bittencourt Sampaio trata-se de uma escrava cuja vida não é das mais duras entre cativos, pois está incumbida do serviço doméstico. Ela ostenta orgulho por ter certa proximidade afetiva com a senhora, declara ter gosto pela vida que lhe cabe e não admite ser chamada de crioula, pois, por certo, sente-se rebaixada quando a designam com uma palavra que podia ser endereçada a qualquer escrava. É flagrante o contraponto entre as preferências e disponibilidades da mucama e alguns dos temas que cevam a atmosfera de denúncia e inconformismo da poesia abolicionista. Sobre tal contraponto, são suficientes os dois seguintes exemplos. Num poema como “Mauro, o escravo” de Fagundes Varela, todo o conflito, de que resultam duas mortes, é desencadeado pela tentativa do senhor de abusar fisicamente da escrava; ação que é claramente objeto de denúncia no poema. Já no de Bittencourt Sampaio não há sinal de drama e conflito, porque a mucama entrega-se, com enlevo, ao senhor. Outro exemplo: se o exílio imposto tortura o escravo e as saudades de seu torrão natal o enchem de pesar n’ “A canção do africano” de Castro Alves, à mucama, ao contrário, não a pungem as recordações da terra de origem, pois, como ela própria afirma, sua aceitação plena da condição de escrava anula o sentimento da saudade por uma origem longínqua (SAMPAIO: 1959, 117-118) [4] .

Concordo parcialmente com Wilson Martins. No entanto, o crítico não tenta ver a questão que assinala por outro ângulo, e por isso não nota o que, a meu ver, é uma limitação séria desta poesia, e diminui bastante seu fundamento objetivo: o tratamento edulcorado da escravidão, uma vez que esta é concebida de um ponto de vista por demais descomprometido e que força a nota quanto à existência de uma felicidade deslocada da extrema brutalidade das relações na sociedade escravocrata (os dois exemplos assinalados acima explicitam a suavização da matéria). Como se sabe, mesmo a condição de mucama, embora fosse de fato portadora de privilégios em relação à grande maioria dos escravos, estava mais diretamente exposta a toda a sorte de caprichos de amas e senhores, além de submetida à fiscalização mais severa (COSTA: 1998, 297).

Volto a “O caso da vara” e passo a comentar a cena que apresenta, em situação e concepção diversas, o mesmo problema posto por Wilson Martins.

À espera da resposta de seu pai à intervenção do padrinho, Damião fica apreensivo e cabisbaixo durante algum tempo, mas à tarde volta às anedotas da manhã. Logo chegam cinco moças vizinhas, visitantes habituais da viúva, com quem tomavam café todas as tardes. Após a janta, enquanto as “discípulas” voltam incontinenti ao trabalho, Sinhá Rita, Damião e as moças entregam-se ao recreio. Neste momento de descontração (de que estão excluídas as pequenas), “o sussurro dos bilros”, índice da faina que recomeça, ajusta-se ao “palavrear das moças” no espírito do seminarista forçado, enquanto anódinos “ecos tão mundanos” – em verdade, trata-se de ajustamento alheio ao desajuste real, vale dizer social, daqueles sons. Envolvido pelo clima alegre e atendendo a um pedido de Sinhá Rita, o rapaz torna a contar a anedota que fizera rir Lucrécia. Após o riso das visitantes, ele não esquece de olhar para a “cria” e verificar se ela rira de novo. A pequena, porém, parece estar inteiramente absorvida pela urgência de terminar a tarefa. Por isso, “não ria; ou teria rido para dentro, como tossia” (ASSIS: 1997, 581). Assim, na mesma sala coexistem pilhérias, conversação alegre, cantorias e trabalho duro de meninas. A distribuição das partes constitutivas de tal arranjo, divertimento e dureza, estabelecida de modo a destinar esta última a crianças – as que menos a deveriam suportar – possui força sugestiva suficiente para dispensar comentários do narrador, oferecendo curso livre à leitura crítica. É um bom exemplo do que já se chamou de “técnica de espectador”, uma especialidade narrativa que Machado soube apurar a seu modo (CANDIDO: 1995, 26-27). No caso, a técnica de espectador favorece a exposição sutil de relações sociais recriadas pela ficção, à margem da denúncia explícita, cujo norte é a aposta no discernimento crítico do leitor. Com efeito, a cena aviva a inaceitabilidade da imposição de trabalho a crianças (em última instância, a inaceitabilidade da escravidão) por sua inserção num quadro doméstico em que a contigüidade dos prazeres da recreação (a que pouco ou nenhum acesso têm aqueles que estão sob o jugo do cumprimento compulsório de tarefas) dá-lhe matiz de trivialidade cotidiana. Adaptando ao caso um comentário de Roberto Schwarz a respeito de uma passagem de Memórias póstumas de Brás Cubas, digamos que a promiscuidade entre divertimentos de adultos e fardos do trabalho infantil em ambiência doméstica, bem ajustada ao dia-a-dia, pode ser visto como “um traço ferino de ‘cor local’” (SCHWARZ: 1990, 106). A esta altura, creio que o leitor já entendeu que o mesmo problema percebido por Wilson Martins na poesia antiabolicionista, a normalização cotidiana de práticas do regime servil, comparece aqui em clave bem diversa, que não edulcora nada, muito pelo contrário. A cena ilustra outra técnica que Machado soube desenvolver, segundo a definição lapidar de Antonio Candido: “o contraste entre a normalidade social dos fatos e a sua anormalidade essencial” (CANDIDO: 1995, 27).

Vejamos ainda o mesmo problema na esfera da cronologia, considerada enquanto marcação temporal do episódio narrado e como indicativo do contexto histórico.

Em relação ao episódio narrado, é preciso atentar para a longa jornada de trabalho das meninas sugerida no conto. Uma vez mais, também aqui a postura do narrador é aparentemente descomprometida, pois seu interesse vincula-se ostensivamente a outra cronologia, como a mimetizar a opinião dominante, segundo a qual na sociedade brasileira escravocrata, dentro dos limites históricos em que se insere a peripécia em questão, o trabalho excessivo dos sem eira nem beira, mesmo quando se trata de crianças, não dá motivo algum para escândalo. Porém, o leitor atento não deixa de perceber que, se em primeiro plano, a discreta mas recorrente notação de referências temporais dá configuração cronológica ao drama de Damião à espera da resolução de seu pai, subliminarmente, com a meia palavra que requer o bom entendedor, registra a extensão do período de trabalho das pequenas, o qual cobre grande parte do dia.

A primeira informação fornecida pelo narrador é que a fuga de Damião ocorreu às onze horas da manhã. Pouco depois, ainda pela manhã, ele chega à casa de Sinhá Rita. Já neste período matutino trabalham as “crias”. Aliás, atenta ao fato de que elas “fizeram parar os bilros e as mãos” quando da chegada do rapaz, a viúva logo “ordenou às pequenas que trabalhassem” (ASSIS: 1997, 577-578). Vimos que à tarde, após a refeição, elas retornam imediatamente a suas tarefas. No momento em que as moças vizinhas saem do serão divertido, a tarde já havia caído inteiramente e as meninas continuavam na labuta. Só “à boca da noite” a tarefa chega ao fim, período em que a “brava como diabo” examina e recolhe os trabalhos. Assim, da manhã ao princípio da noite, vigiadas, compulsoriamente absorvidas pela tarefa rotineira sob ameaças de castigos físicos, as meninas trabalham.

Quanto ao contexto histórico, valho-me da sugestão de Regina Zilberman, para quem a escolha do período anterior ao ano de 1850 para situar a ação não correspondia apenas ao intento do autor de expor a ambiência doméstica e cotidiana de práticas bem representativas de um período de domínio senhorial-escravista. Como ficou dito, “O caso da vara” foi publicado na década de 1890. Há margem para pensar, de acordo com Zilberman, que Machado tinha em mira a sociedade brasileira contemporânea à publicação do conto, pois uma das questões implícitas que a narrativa levanta pode ser assim formulada: as posturas e práticas que o conto situa na primeira metade do século XIX dizem respeito apenas àquele período ou persistem, ainda que modificadas, no final do mesmo século, em contexto não-escravista e republicano (ZILBERMAN: 1989, 19-24)? [5] Em reforço à pertinência em pôr na pauta esta questão, lembremos o ceticismo de Machado a respeito dos resultados da Abolição e do avanço que representaria a República.

A cena final de “O caso da vara” é forte. Embora tenha prometido a si mesmo apadrinhar a pequena, Damião sucumbe à força de seu interesse pessoal e prefere atender à Sinhá Rita, entregando-lhe a vara com que castigará Lucrécia, a ceder às súplicas desesperadas da “cria”: “– me acuda, meu sinhô moço!” (ASSIS: 1997, 582). Este desfecho talvez tenha efeito desconcertante para o leitor que porventura acompanhasse com mais interesse, a despeito do próprio título do conto, o drama que se desenrola em nível mais ostensivo: o de Damião. Com efeito, em consonância com o seu significado social enquanto experiência integrada ao dia-a-dia do regime escravista, os esforços de Lucrécia têm visibilidade bem menor e estão quase no nível de pano de fundo na economia do conto. Entretanto, o desfecho que a narrativa nos faculta não é o do drama do seminarista, mas sim o da menina; desfecho que na verdade vinha sendo sinalizado e sobre o qual talvez incidisse, para o leitor mais preocupado com os sofrimentos da menina, a expectativa da intervenção de Damião no sentido de evitar a surra prometida. Por ser assim, digamos figuradamente que o drama encenado no fundo do palco ganha ao final relevo maior do que aquele que vinha sendo encenado no proscênio, o que talvez permita dizer que o principal alvo de Machado de Assis aqui, entre os problemas diante dos quais o conto se situa, é o de fazer pensar sobre certa experiência do trabalho, imposta a crianças, na sociedade escravocrata, insinuando possivelmente aos seus contemporâneos na década de 1890 as conseqüências de tal experiência num país que não fizera ou sequer iniciara (e ainda não fez) as reformas sociais necessárias para a efetiva integração dos negros, ex-escravos e seus descendentes.

Para finalizar, note-se em “O caso da vara” a ausência de personagens, práticas e assuntos que estão entre os principais do mundo patriarcal-escravista: o proprietário de escravos poderoso, o tráfico negreiro, a vida nas senzalas etc. O episódio narrado tem alcance modesto, pois se dá em torno de uma senhora que vive principalmente do favor proporcionado pelo amante (que lhe arranjara as “crias”), e os dramas e experiência de trabalho, que na narrativa se desvelam, são vistos apenas em ambiência doméstica. Nem por isso, como vimos, este microcosmo deixa de apresentar algumas das linhas de força da sociedade representada. E quanto ao problema que foi aqui priorizado, “O caso da vara” é mais um exemplo da capacidade de tratar as matérias sociais em chave realmente crítica, um dos pontos altos da ficção machadiana e um dos fatores que a distinguem no quadro da literatura brasileira feita por seus contemporâneos.


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[1] A observação sobre o narrador de A mão e a luva também pertence a Faoro.

[2] Nesta entrevista concedida por Schwarz, o crítico lançou a sugestão de um estudo comparativo entre Machado, Aluísio Azevedo e Graciliano, cujo eixo é o tema do trabalho.

[3] Sobre a relação entre a obra machadiana e esse momento histórico, do ângulo de um historiador, ver o livro recém-publicado de alguém que é um dos bons estudiosos de Machado: CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis historiador, 2003.

[4] O poema “A crioula” está reproduzido no mesmo volume, pp. 117 – 118.

[5] Não obstante a convergência de pontos de vista quanto à sugestão de que me aproprio, minha leitura do conto é divergente da de Zilberman.


Referências bibliográficas:


ASSIS, Machado de. “O caso da vara”. In: Obra completa, v. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.

CANDIDO, Antonio. “Esquema de Machado de Assis”. In: Vários escritos, 3ª ed., São Paulo: Duas cidades, 1995.

CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 3ª ed., São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.

COUTINHO, Afrânio. A filosofia de Machado de Assis e outros estudos. 2ª ed., Rio de Janeiro, Livraria São José, 1959.

FAVERO, Afonso, PASCHOA, Airton, MARIUTTI, Francisco e FALLEIROS, Marcos. Tira-dúvidas com Roberto Schwarz. Novos Estudos Cebrap (58), 2000.

FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio, 4ª ed., São Paulo: Globo, 2001.

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MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, v. III. São Paulo: Cultrix, 1977.

NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Publifolha, 2000.

SAMPAIO, Bittencourt. “A mucama”. In: Cavalheiro, Edgard. Panorama da poesia brasileira, v. II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1959.

SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. 2ª ed., São Paulo: Duas Cidades, 1990.

________. “ A pulga no cachorro” . Folha de S. Paulo, Mais!, 28/03/1999.

ZILBERMAN, Regina. “ Um caso para o leitor pensar” . In: Revista de Letras, v. 29, São Paulo, 1989.


João Roberto Maia é doutor em Letras Vernáculas pela UFRJ. Bolsista do CNPq (Recém-Doutor) no setor de Literatura Brasileira da UFF, onde desenvolve projeto de pesquisa cujo título é “O trabalho e seus resultados em Machado de Assis, Aluísio Azevedo e Graciliano Ramos”.

Contato: jrmcruz@uol.com.br
Revista Brasil de Literatura

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