segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A CIDADE DE DEUS COMO FUNDADORA DA HEGEMONIA CATÓLICA NA IDADE MÉDIA


A CIDADE DE DEUS COMO FUNDADORA
DA HEGEMONIA CATÓLICA NA IDADE MÉDIA

Glauber Freire
Aluno do Curso de Filosofia da Universidade Mackenzie


A partir do século III, o império Romano começa a passar por profundas e significativas mudanças na sua ordem estrutural, sobretudo no coração da sua administração política, Roma. Gradativamente, as províncias começam a passar da posição de conquistadas à de conquistadoras: espanhóis, gauleses e orientais iniciam sua “invasão” no senado; no mesmo espírito, com o Edito de Caracalla, promulgado em 212, todos os provincianos conquistados ascendem ao posto de cidadãos romanos, o que corrobora para a ascensão política de Trajano e Adriano, ambos de origem espanhola, e Antonino de cultura e naturalidade gaulesa, este e aqueles, futuros imperadores. Do mesmo modo, a dinastia dos severos foi composta por imperadores africanos e imperatrizes sírias. Mesclado por culturas e conivente com o processo de mutação estrutural, Roma experimentará nos séculos porvir a mudança de posição da sua artimanha política para se perpetuar no poder, tornando-se a razão de sua desgraça, inconcebível para seus compatriotas que, ao exemplo de São Jerônimo, exilado na Palestina proferiu a sentença derradeira: “A voz fica-me na garganta e os soluços interrompem-me ao ditar essas palavras. Foi conquistada a cidade que conquistou o universo”.

Na mesma perspectiva, antes do total declínio do Império, a última grande guerra vitoriosa foi encabeçada por Trajano e a última reserva financeira fora a conquista, em 107, do ouro dos Drácios. Por esse prisma, considerando que o Império se nutria, substancialmente, das conquistas de guerra, dos saques e da prisão de escravos, além da dominação de novos territórios, Roma começa a passar por uma crise que, inevitavelmente, desembocará na derrocada total do império com a conquista efetiva dos bárbaros que, por essa época, já se encontravam circundando o interior da magnífica fortaleza dos césares.

Os ataques que terão resultado efetivo a partir do século V, porém, não se apresentaram como novidade para os romanos. Desde Marco Aurélio, entre 161 a 180, se têm notícias das tentativas inglória para a dominação de parte do território romano, fato que levaria à depressão do século III. Francos e Alemanos no ano 276 devastaram o território dos espanhóis anunciando assim o massacre e a tomada do Império Romano que se concretizaria, por fim, no século V, com a tomada da Cidade Eterna por parte de Alarico em 410.

Em meio a todas essas circunstancias históricas resta-nos, porém, compreender de que maneira a Igreja Católica, já constituída como religião dominante no Estado, se firmou como o poder ideológico supremo de todo o mundo circunscrito ao antigo império, agora pertencente aos bárbaros.

Conforme sabemos, o período medieval, conseqüência imediata do fim do Império Romano, é marcado pela concentração dos homens em feudos, cultivando e produzindo o necessário para a subsistência das suas respectivas famílias, dízimo oferecido à Igreja e percentual do trabalho destinado aos senhores, detentores das terras concedidas ao trabalho. Para tanto, nos será preciso ainda, recorrer à autoridade de um dos mais influentes pensadores do Ocidente e, concomitantemente, articulador de um ideal cristão que se perpetuou por dez séculos em todo o território da cristandade: Santo Agostinho de Hipona.

Já na abertura de sua De Civitates Dei, Santo Agostinho, ao tentar encontrar uma explicação plausível para a queda do Império Romano, se utilizará da argumentação de que nada é gratuito, o fim do império, portanto, cumpriria de maneira vigorosa os desígnios de Deus. O que doravante Santo Agostinho fará, dentro da “Cidade de Deus” e, se valendo das Sagradas Escrituras, é mesclar duas realidades justapostas, uma dando sustentação à outra e, simultaneamente, alicerçando o poder a ser fundado na terra para que se encontre o lugar merecido, por meio dos atos, o reino dos diletos filhos de Javé.

Com efeito, o que se perceberá é uma relação complementar e intercambiável de poder político, fundado na ordem do Estado e poder clerical, fundamentando-se na “interpretação” da palavra divina que aos sacerdotes é revelada cabendo a eles designar as atitudes corretas a serem praticadas pelos fiéis, clero aqui entendido como os detentores da “sapiência” divina e guardiões dos textos sagrados.

Santo Agostinho se valerá de alguns conceitos, para fundamentar suas afirmações, que se nos apresentam como chaves explicativas para a compreensão, desde os textos e as fundamentações teológicas, até a efetiva influência política que elas exercerão sobre o poder, tornando a própria Igreja detentora maior do poderio político-econômico, a saber, a idéia de intelecto finito.

Segundo De Civitates Dei, o fato curioso, não para os que detêm um conhecimento da verdade revelada, é que os bárbaros que invadiram Roma tiveram misericórdia de todos os refugiados nas catedrais cristãs. Todavia, cumpre asseverar que o grande fautor que teria levado o império à decadência seria a própria Roma, pelo apego à temporalidade da vida, afastando-se de Deus. Do mesmo modo, os inocentes que sofreram por conta dos erros alheios, segundo Agostinho, sofreram para serem testados quanto à sua dignidade de passar para a outra vida; os injustos, por sua vez, sofreram para verem já na vida presente o que futuramente terão de experimentar. Por qual motivo Deus faria isso, nos é impossível determinar, posto que temos um intelecto finito, impossível seria , portanto, apreender os desígnios de Deus. “O conhecimento do mundo daí resultante será, pois”, nos lembraria Denis Rosenfield, “fundado nos axiomas da fé”.

O que Santo Agostinho inaugura é um curioso vínculo entre o mundo a ser alcançado depois da morte, pelos merecimentos próprios de cada indivíduo, tendo por base as práticas no mundo presente, e a realidade política em vigor, a necessidade de adaptação de um contingente rebelde e grupos provenientes do poder, para que ambas as esferas possam coabitar mesclando-se para legitimar o poder de Deus na terra, representado pela sua Igreja; ao contrário de Pascal, por exemplo, ele não se retira deste mundo preparando-se para o outro, Agostinho vê na passagem por ele uma missão concreta a ser desempenhada, missão essa que é, há um só tempo, política e religiosa. Baseando-se nesses axiomas que, em primeira instância, são retirados da Bíblia, Agostinho frisa a necessidade do desapego à realidade temporal e aos bens da terra que, de alguma maneira, afastam o homem de Deus. A prisão pela satisfação pessoal à vida na terra poderia custar-lhes a salvação na outra vida, na eternidade.

Por fim, duas características históricas ainda mereceriam nossa atenção, a primeira é a relação entre as palavras de Agostinho e o desenrolar do processo do feudalismo na Europa, manifestação cultural, aliás, que só estará definitivamente extinto após a Revolução Francesa em 1789; a outra, e conseqüência desta, é o poderio que a Igreja Católica pôde exercer durante mais de mil anos na história, como tutora absoluta da revelação divina. O que, finalmente, poderíamos conjecturar é a maneira como o catolicismo após a queda do Império Romano do Ocidente, se firmou no poder; na mesma linha, como a obra agostiniana tem uma estreita relação teórica com o que foi a prática na Idade Média no referente à organização dos homens e, de que maneira, tais fatos se relacionam e corroboram reciprocamente para a instauração de um reino de Deus na cidade dos homens, enquanto os homens abdicam da sua condição de humanos em sua plenitude para viverem à espera de poderem habitar a Cidade de Deus.

Ora, o que aqui se quer defender, longe de teorias que se valham de argumentos fictícios, é uma relação causal estreita e claramente manifesta na história; de um lado, uma crise causada pela falta de elementos coerentes dentro da política administrativa romana e; por outro lado, uma teologia que, embora comungando com toda uma tradição e inspirada no “livro da revelação divina”, se fundamentou em uma manifestação específica e, simultaneamente, influenciou os séculos posteriores da historia do Ocidente. A Cidade de Deus de Santo Agostinho, portanto, no que tange ao estudo e ao entendimento da Idade Média, apresenta-se como uma das obras magistrais que explicam a razão passada, o contexto presente e o desenrolar daquele processo ou, como nos diria Jorge Luis Borges em outro contexto, no seu Avelino Arredondo, no que se refere à Cidade de Deus é preciso percorrer “página por página, às vezes com interesse, às vezes com tédio”, nos impondo “o dever de aprender de cor algum capítulo” para entendermos mais de nós mesmo.

Revista Pandora

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