quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Russificação Soviética e Pós-soviética: Autoridade Política e Etnicidade, 1917-1997


Russificação Soviética e Pós-soviética: Autoridade Política e Etnicidade, 1917-1997 (parte 1)

“Consequentemente, se algo viesse a ocorrer
para romper a unidade e a eficácia do Partido
como instrumento político, a Rússia Soviética
poderia ser transformada, da noite para o dia,
de uma das mais fortes em uma das mais
fracas e mais lastimáveis das sociedades
nacionais”.
(George F. Kennan, In Foreign Affairs, julho de 1947)


O termo russificação deve ser entendido aqui como o processo de formação do aparato institucional do Estado soviético depois da Revolução Russa de 1917. O processo de centralização administrativa com base na estrutura de partido único irremediavelmente fundiu a construção do socialismo soviético com a difusão do russo como língua predominante da administração, de acesso às escolas, às universidades e ao aparato do partido, assim como, referência de cultura (língua interétnica) e de mobilidade social para todas as outras nacionalidades que comporiam a URSS. A longo prazo, o aparato do Estado Soviético criaria um efeito de distanciamento sobre o resto da população: com exceção de uma cooptada elite local (o setor dependente do Estado), os cidadãos soviéticos jamais sentiram que uma nação soviética efetivamente tivesse existido; mesmo entre os russos, o Estado Soviético era sentido como uma extensão natural da nação russa. Entretanto, a russificação deve ser compreendida mais amplamente do que uma simples predominância do russo como “cultura-rei” no aparato do Estado: ela significou também a etnicização da vida política da URSS, bastante visível para o mundo depois de sua desagregação em dezembro de 1991, quando os estados independentes definiram suas linhas de conflito sem alterar o contorno etnofederalizador da política das nacionalidades de Lenin (1870-1924) e Stalin (1879- 1953). Antes da Revolução Bolchevique, Lenin havia pensado que os suportes regionais da política administrativa não deveriam ser baseados em linhas étnicas.
Afinal, deveria haver uma solidariedade internacional de classe antes que de nacionalidade. Entretanto, as lutas contra a dominação czarista revelaram um caráter de libertação nacional e, por isso, para se construir uma nova formação estatal estável seria necessário, segundo Lenin, fazer concessões de direitos com base nas nações. Nisto residiu um problema central: Quais as fronteiras de uma nação?
Fazer uma federação soviética de estados “nacionais na forma e socialistas no conteúdo” significou na prática a (re)construção de nacionalidades pelo Estado, re-hierarquizando velhas tensões e criando novas no interior das circunscrições administrativas que surgiriam. Instituições políticas de caráter ambiguamente assimilativo/exclusivo foram sendo estabelecidas no interior de cada nível administrativo, com replicações não somente do aparato centralizador do Estado e de Partido Comunista, mas também instalações de âmbito cultural, científico e educacional. A promoção da cultura soviética – na verdade, uma memória da Revolução em russas roupagens – presumia a progressiva dominação de todas as outras culturas, menos a russa, a partir de quatro níveis de unidades políticoadministrativas “etnicamente fundadas”: das mais de 100 nacionalidades soviéticas, somente 53 foram eventualmente identificadas com um território específico e receberam o status de “nacionalidades titulares” e, destas 53 nacionalidades titulares, 15 foram designadas pelo mais alto status de Repúblicas Socialistas Soviéticas (RSS) ou “união das repúblicas”; seguindo em ordem descendente de status através e dentro dos territórios da “união das repúblicas” estariam 20 Repúblicas Socialistas Soviéticas Autônomas (RSSA), 8 regiões autônomas (oblasti) e 10 áreas autônomas (okruga). No entanto, além de mais de a metade dos grupos nacionais da URSS não ter reconhecimento político como nações, somente às RSS era permitido o direito de secessão.
Para Lenin, o fato de algumas nações ganharem distinção representava uma antecipação de assimilação, ou seja, a unidade não seria construída sem homogeneidade. Por isso, não paradoxalmente, onde as nações não existiam foram criadas, trazendo questões étnicas para certas áreas ou regiões onde anteriormente não existiam: o caso mais exemplar é o Tadjiquistão, em que uma identidade política tadjique não existia antes da demarcação das fronteiras estatais, sendo, pois, uma criação soviética por excelência. Esta política inicial das nacionalidades é o que foi chamado em russo de enizatsia, ou seja, nativização: as “culturas nacionais” foram promovidas (“folclorizadas”) e aos membros de certas nacionalidades foram dadas preferências no acesso a benefícios controlados pelo Estado, como educação, habitação e emprego, para os quais necessitariam do russo. Portanto, as políticas econômicas deram apoio soviético para as nacionalidades com base na premissa de conceder a cada uma conforme as suas necessidades e obter de cada uma conforme as suas habilidades.
A política de distribuição de recursos da união fundou-se, portanto, na afirmação de uma base nacional de ação. Resumidamente, pode-se dizer que se fragmentava a população soviética para manter a unidade administrativa a partir de bases étnicas de patronagem política. A desconfiança das lideranças centrais em relação a toda forma de manifestação ritualística de nacionalismo das periferias temperou os efeitos do reenquadramento cultural soviético, exacerbando nas populações locais excluídas a sensação de estarem sob um regime colonial que
captava seus recursos e não os redistribuía conforme a propaganda oficial do regime em torno dos ideais socialistas. Não por acaso, para muitas nacionalidades, a autonomia servirá como um contraponto político de sentido bastante específico: a oportunidade de manter as riquezas em casa. Portanto, havia um enorme fosso entre as nacionalidades de jure e as nacionalidades de facto da URSS e, com o passar do tempo, uma definição passou a contaminar a outra, fazendo com que as demanda dos outsiders fossem feitas e norteadas a partir de uma busca de maior
participação no interior da própria estrutura estatal.
Durante os anos dos governos Stalin (1924-1953) e Brejnev (1964-1982), a tentativa de criar um “povo soviético” ou uma “nova sociedade histórica” adquiriu feições mais autoritárias: instituições burocráticas foram formadas massivamente com linhas simétricas de autoridade desde Moscou até os governos locais; nos territórios fora da Rússia, Stalin foi aniquilando as elites tradicionais dos primeiros anos da Revolução e foi apontando quadros étnicos para estabilizar novos poderes diretamente subordinados ao Centro; particularmente nas regiões não eslavas, o centro soviético tentou convencer uma variedade de nações que não teria prioridade cultural no período soviético, ao mesmo tempo que consolidava uma elite administrativa local interessada em manter a lealdade de seu grupo étnico e, assim, ter tanto acesso direto aos recursos locais ou advindos do Centro quanto controle sobre os meios de comunicação locais. Por isso, além do deslocamento forçado de massas inteiras de população como forma de punição por manifestações de autonomia política e cultural – como foi o caso exemplar da deportação de chechenos para a Ásia Central em 1944, que resultou na morte de mais da metade da população –, durante todo o período soviético a migração de russos para repúblicas não-russas foi promovida pelo Estado soviético. Intensificou-se também a doutrinação política através das escolas e grupos jovens, as organizações religiosas foram reprimidas e as economias locais se tornaram mais dependentes do centro planejador soviético.
Olhando prospectivamente, os anos do governo de Krushchev (1953-1964) parecem um breve interlúdio nessa tendência geral. Para além da família, da vizinhança e da vila, a sociedade soviética foi tolhida de formas próprias de organização de seus interesses, sendo estruturada por e dependente do aparato do Estado. Por isso, quando reagiu contra ou se acomodou a esta estrutura, a população usou o dispositivo tradicional de poder que tinha a seu alcance: a patronagem política (etnicamente determinada ou não) tendeu a estabilizar elites locais e teias de dependentes cujos interesses se fundiram diretamente com o centro. As autoridades centrais determinavam o perfil econômico de cada região, alocavam recursos, tomavam o que desejavam, cobravam taxas, redistribuíam recursos entre as regiões e fixavam o tamanho dos orçamentos de cada república ou região. Como responsáveis por sua república ou região, as elites locais cuidavam das taxas que deveriam ser pagas, do alimento da população e da manutenção da lei e da ordem, além de serem os controladores diretos da produção agrícola.
Krushchev, por sua vez, havia ensaiado a descentralização administrativa ao permitir que as elites locais definissem planos econômicos e metas específicos às suas regiões; entretanto, baseou sua política de ação afirmativa sobre a velha estrutura das maiorias étnicas, ao mesmo tempo que tornou ambígua e insegura a posição dos apoios locais ao tentar eliminar a vitaliciedade nos quadros administrativos do Estado e do Partido Comunista.
A tendência à localização e fortalecimento do aparato do Estado e do Partido no interior das elites regionais e republicanas foi reforçada por Brejnev, mas de forma distinta de Krushchev: em vez de mover as pessoas de uma região para outra ou tornar rotativa e voluntária a sua participação na burocracia do Estado e do Partido, ele reestreitou a relação entre o centro e as periferias ao estabilizar a composição de seus aparatos regionais a partir de membros escolhidos pela própria
elite local e, de preferência, de uma nacionalidade titular. Assim, diferentemente do período de Stalin, as carreiras horizontais raramente se estenderam até Moscou: para a maioria das lideranças republicanas, o alvo principal estava dentro de sua própria república ou região, tornando os aparatos administrativos do centro um reforço extra com o qual se podia contar para se manter no poder. Por outro lado, como contra-efeito, a linha de lealdade dos oficiais do partido, dos sovietes e mesmo do KGB também tendeu a se horizontalizar: foram influenciados mais pelas lideranças políticas republicanas do que por aquelas da união.
Entretanto, o efeito da localização do poder do Estado e do Partido não teve o mesmo significado para todos: os russos não sentiam diferença entre os aparatos da URSS e da Rússia, visto que na prática as suas instituições se sobrepunham; para as repúblicas não-russas, a localização era sentida como uma conquista de relativa autonomia em relação ao poder central da URSS – uma leve “desrussificação da união”, mas a deferência ao centro continuou sendo uma regra de sobrevivência para os “titulares do poder” de cada localidade. As elites locais eram uma espécie de corpo intermediário que servia ao centro e justificavam o seu privilégio de governo por manterem bem regrada a sua população, estabelecerem ordens e adequarem a política econômica de acordo com as diretrizes vindas de cima. O governo de Moscou ainda era percebido por elas como um centro imensamente poderoso, distribuidor ilimitado de recursos e protetor contra eventuais oposições locais.
No entanto, a administração industrial não tendeu à localização e, particularmente nas regiões não eslavas, era contrastante a presença de russos como administradores e operários diretamente subordinados ao centro. A existência de grandes empresas, quase sempre partes do complexo industrial-militar, significava a esmagadora presença de diretores vindos diretamente de Moscou e que traziam ordens dos ministros da indústria. Os oficiais do partido e dos sovietes locais deveriam estabelecer boas relações com os diretores para garantir os objetivos e interesses locais, visto que tais empresas eram quase sempre responsáveis pela provisão de recursos federais para habitação e serviços sociais do lugar, que eram em parte desviados por membros da elite local para seus consumos privados e para a manutenção de sua rede particular de patronagem. Logicamente, tal estrutura seria um pólo de disputas no período pós-soviético.
Oficiais do partido e dos sovietes, diretores de indústrias, administradores das fazendas estatais e coletivas, todos se sentiam como responsáveis pela administração dos recursos do Estado e, já que tinham que “carregar este fardo”, justificavam o tratamento diferenciado que tinham no interior da sociedade soviética. No entanto, a sua inclusão com sua rede particular de clientes significava necessariamente a exclusão de muitos outros da estrutura deliberativa do Estado, assim como a construção de um arcabouço para disputas que se manteria mesmo depois da desagregação da URSS – quando, então, a Rússia surgiria como a principal mediadora dos conflitos de interesses entre as repúblicas pós-soviéticas.
No contexto soviético, mesmo quando o objetivo era a desagregação do antigo aparato administrativo do Estado, as resistências à estrutura de poder ocorreriam dentro de seus limites: a patronagem e o nacionalismo continuaram sendo os principais filtros para a negociação. Algumas tipologias podem nos ajudar a entender essa outra face da russificação.
Alexander Martins Vianna
Laboratório de Estudos do Tempo Presente – TEMPO

Revista Cantareira - UFF

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