A indústria da morte
Símbolo da crueldade nazista, o campo de concentração onde 1,1 milhão de pessoas perderam a vida revela como as atrocidades foram o resultado de um trabalho planejado, disciplinado e eficiente.
por Texto Celso Miranda
Matar um inimigo é fácil. Basta disposição, oportunidade e alguma força. Matar milhares de inimigos dá mais trabalho. Requer poder e, não raro, uma guerra. Agora, matar milhões de pessoas, eliminar populações inteiras e varrer do mapa comunidades não é para qualquer um. Requer um arraigado sentimento de superioridade, doses cavalares de fundamentalismo, e consentimento popular. E, do ponto de vista puramente logístico, um grande esforço de organização, planejamento minucioso e disciplina. É preciso ter uma máquina extremamente eficiente em mãos.
Poucas vezes na história, talvez nunca antes nem depois, um governo se sentiu tão à vontade para executar a terceira situação descrita acima quanto os nazistas na Alemanha, Áustria, Romênia, Iugoslávia, Itália, França, Bélgica, Holanda, Bulgária, Hungria, Letônia, Lituânia, Ucrânia, Bielo-Rússia e Checoslováquia, mas, principalmente na Polônia. Nesses países, os seguidores de Hitler colocaram em prática um projeto inédito de limpeza étnica que levou a deportações, evacuações em massa, expurgos, migrações forçadas, prisões e, por fim, ao extermínio planejado de quase 6 milhões de pessoas. O modelo ultimado dessa máquina de extermínio só ficou pronto com os campos construídos e operados durante a guerra na Polônia. Entre eles, o maior, localizado em Auschwitz, no sul do país. Lá, entre maio de 1940 e janeiro de 1945, cerca de 1,1 milhão de pessoas morreram. A maioria era de judeus, mas havia prisioneiros de guerra soviéticos, dissidentes políticos poloneses, ciganos e testemunhas-de-jeová. Esta reportagem não vai explicar o porquê de toda essa gente ter sido morta. Isso tem rendido nos últimos 60 anos especulações e estudos profundos da alma e da política do nazismo e da Alemanha. Nosso esforço vai se concentrar em explicar como os nazistas planejaram e operaram a maior indústria de extermínio de todos os tempos. Que inteligência esteve por trás dessa máquina de assassínio em massa? Que ideologia a justificou? E quem foi quem no sistema: militares, empresários, cientistas, arquitetos, políticos, juristas, carcereiros e burocratas.
Raízes do mal
No final de abril de 1940, uma comitiva militar de 6 veículos cruzou a região da Alta Silésia, no sul da Polônia. As estradas poeirentas tornavam a viagem difícil e o avanço lento. A paisagem se limitava a extensos trechos de florestas e campos sem cultivo. Por duas horas, nenhum vilarejo foi visto. No segundo carro do cortejo estava Rudolf Hoss, um proeminente capitão da SS, a temida tropa de choque nazista. O local que eles procuravam aparecia nos velhos mapas como um conjunto de galpões construídos pelo Império Austro-Húngaro durante a 1ª Guerra Mundial, todos de madeira, a maioria em péssimo estado. No mapa da nova Europa que os nazistas desenhavam, porém, o nome daquele lugar no meio do nada ganharia destaque e ficaria para sempre marcado na história.
Seis meses antes, a Alemanha tinha invadido a Polônia e iniciado a 2ª Guerra. Agora os nazistas colocavam em marcha o plano de utilizar o número crescente de prisioneiros de guerra nas fábricas e indústrias alemãs, onde seriam explorados como mão-de-obra escrava. Hoss tinha uma missão e tanto pela frente: “Precisava criar um campo que pudesse abrigar 10 000 pessoas, antes da chegada do inverno”, escreveu. Em apenas 20 dias chegariam os 728 primeiros prisioneiros de Auschwitz: todos homens poloneses, fortes e saudáveis, acusados de resistência. Entraram pelo portão da frente, onde Hoss mandara escrever: Arbeit macht frei (ou “O trabalho liberta”). A frase, que cheira como um apfelstrudel de sarcasmo, revela a prioridade dos nazistas naqueles primeiros tempos da guerra: conquistar territórios para a Grande Alemanha e transformá-los, rapidamente, em mais um pistão da azeitada indústria de guerra. Apenas 3 meses após sua inauguração, já havia 8 000 pessoas no local.
Localizado a 30 km de um conjunto de minas com algumas das melhores jazidas de carvão da Europa, o campo de Auschwitz também chamou a atenção de um grande grupo industrial químico alemão, a IG Farben, que apresentou ao governo nazista um plano para instalar ali uma fábrica de borracha e combustíveis sintéticos. Os empresários fariam enormes investimentos na região. Em troca, pediam a garantia de mão-de-obra abundante. E barata.
A idéia ganhou de cara um apoio de peso: o marechal Heinrich Himmler, comandante supremo da SS, um dos homens fortes do Reich. Segundo o historiador Christopher Browning, da Universidade da Carolina do Norte, nos EUA, longe de ser uma iniciativa isolada, a construção de campos como Auschwitz – que Himmler chamava de colônia-modelo – estava intimamente ligada aos planos de expansão da Alemanha, revelando dois dos principais temas que qualquer nazista recitaria de cor: o lebensraum (ou “espaço vital”) e a superioridade racial.
Aqui, talvez seja necessário um parêntese. Para os nazistas, o lebensraum era o espaço necessário para a expansão territorial e a prosperidade do povo alemão. O plano incluía a reintegração de todos os povos germânicos – inclusive os do Brasil. A idéia desse Shangri-lá nazista no leste desemboca na segunda máxima do rosário nazista: a questão racial. Já que era no lebensraum que os nazistas prometiam a reunificação da raça ariana, representada pelas populações de origem germânica, ficavam de fora eslavos, judeus, ciganos. “As teorias de supremacia racial não eram novas, nem exclusivas da política nazista nos anos 30. A novidade é que, com o início da guerra, os alemães sentiram-se à vontade para pôr em prática seus planos de limpeza étnica e racial”, diz Browning. Fecha parêntese.
Himmler esteve em Auschwitz pela primeira vez em março de 1941. Numa reunião secreta, ele anunciou seu desejo: que a capacidade do campo pulasse para 30 000, o que faria de Auschwitz o maior dos campos de prisioneiros. Esses planos de ampliação só foram descobertos recentemente, após a morte do arquiteto alemão Fritz Ertl, que tinha guardado reproduções do projeto. Pelas plantas, é possível ver que o novo complexo previa até dormitórios para oficiais da SS. Himmler tinha ali seus próprios aposentos, para os quais cada móvel, dos aparadores às poltronas, das mesas de trabalho aos enfeites na parede, foi desenhado com exclusividade.
Enquanto isso, os prisioneiros trabalhavam duro, cavando fossas, fabricando tijolos, construindo prédios, abrindo estradas, colocando trilhos, carregando e descarregando trens. E, apesar do foco no trabalho – como se diria hoje em dia –, Auschwitz já demostrava outra vocação: mais da metade dos 23 000 prisioneiros enviados no primeiro ano para o campo morreu antes de completar 20 meses na prisão, abatida pela fome, exaustão e maus-tratos.
Aniquilação
Em maio de 1941, as tropas alemãs invadiram a URSS. Em 4 semanas de combates, foram feitos 3 milhões de prisioneiros – 2 milhões morreriam antes de 9 meses na prisão. Segundo o historiador britânico Robert Gellately, autor de The Specter of Genocide (“O Espectro do Genocídio”, inédito no Brasil), a invasão da URSS alterou os rumos da guerra no leste, iniciando a guerra de aniquilação, ou vernichtungskrieg, termo utilizado por Hitler para explicar que o objetivo alemão seria destruir completamente o Estado comunista. Para os nazistas, a aniquilação dos soviéticos era justificável: primeiro por causa das crenças racistas, que viam na mistura do comunismo com o judaismo a pior raça possível – eram numerosas as comunidades judaicas na URSS. Depois, do ponto de vista prático e logístico, o desfecho das vitórias que fatalmente aconteceriam elevaria sobremaneira a quantidade de prisioneiros sob os cuidados da Alemanha, tornando-se inviável garantir sua sobrevivência.
Em 22 de maio de 1941, a comissão econômica do 3º Reich se reuniu para discutir a logística após as primeiras semanas da invasão. As atas desse encontro foram encontradas em Berlim após a guerra e permaneceram durante muito tempo secretas. Recentemente foram publicadas pelo historiador americano Richard Overy, no livro Russia’s War (“A Guerra da Rússia”, sem tradução em português). “Se quisermos avançar em território soviético, temos que reduzir o consumo de alimentos e de energia das populações locais”, diz um trecho do relatório. Mais adiante, o documento conclui: “Nada de falsa piedade. Milhões morrerão de fome”.
A entrada em cena dos prisioneiros soviéticos acelerou os planos de extermínio nos campos. Em julho de 1941, membros do Programa de Eutanásia de Adultos, o Aktion T4, visitaram Auschwitz pela primeira vez. Criado em 1937, o programa de limpeza genética dos nazistas incluía a eliminação de crianças portadoras de deficiências ou com doenças terminais e a esterilização de adultos nessas condições. “Após o início da guerra, o T4 foi levado aos territórios ocupados e a lista passou a incluir adultos que não estivessem aptos para o trabalho”, diz Gellately. Os indesejáveis eram enviados para clínicas como a de Sonnestein e lá conduzidos a salas com falsos chuveiros, cujos canos não estavam ligados à água, mas a cilindros de monóxido de carbono. Cerca de 70 000 pacientes foram assassinados assim, entre 1939 e 1941. Naquele mês de julho, o T4 selecionou 575 prisioneiros de Auschwitz para morrer assim.
“A experiência da T4 na utilização de gás nas execuções foi a resposta para um problema logístico”, diz o historiador Michael Vildt, da Universidade de Hamburgo. Em 1941, os fuzilamentos em massa tornavam-se cada vez mais comuns. Os einsatzgruppen da SS (literalmente “grupos de mobilização”, mas que pode ser traduzido como “operações móveis de assassinato”), circulavam por trás das linhas de combate e perseguiam civis soviéticos e membros das comunidades judaicas da região, contando, muitas vezes, com o apoio de voluntários locais – ucranianos, lituanos, letões, entre outros – para capturar, fuzilar e enterrar os corpos. Em 15 de agosto daquele ano, Himmler assistiu à execução de prisioneiros acusados de incitar uma revolta contra os alemães em Minsk, na Bielo-Rússia. Em seus diários, encontrados em 1998 nos arquivos da extinta KGB, Himmler relatou que as vítimas chegaram em caminhões a um campo onde havia valas já abertas. Ao ver as covas, alguns presos tentaram correr e foram baleados, 1, 2, às vezes 3 vezes. “Enorme esforço para fuzilar apenas 100 pessoas”, anotou o líder da SS. Após o “esforço”, o general Erich von dem Bach Zelewski teria dito a Himmler que havia mais um inconveniente: o efeito negativo sobre os soldados. O rito sumário, a morte de crianças, velhos e mulheres civis, estaria abalando o moral dos seus homens.
“Himmler saiu dali convencido de que era preciso arrumar uma maneira melhor de matar”, afirma Vildt. “Tanto que incumbiu Albert Widman, tenente da polícia técnica e científica da SS, um veterano do T4 na Alemanha, de adaptar suas experiência com monóxido de carbono aos campos de prisioneiros.” Em junho, Widman havia questionando a viabilidade de deslocar cilindros do gás para locais de execução fora da Alemanha. Diante disso, ele sugeria um novo tipo de câmara de gás volante – caminhões fechados que tinham o cano de descarga voltado para o interior do veículo. Na mesma época, em Auschwitz, Karl Fritzch, tenente da SS e vice de Rudolf Hoss no comando do campo, fazia suas próprias experiências. Segundo Hoss, foi durante uma viagem dele a Berlim, que Fritzch teria tido a idéia de usar ácido cianídrico para eliminar os prisioneiros. Na época, uma marca popular desse produto era comercializada com o nome de Zyklon B (“ciclone”, em português) e ele estava fartamente disponível em Auschwitz, onde era usado para combater as constantes infestações de piolhos e outros insetos – o veneno tinha a vantagem de ser altamente tóxico e invariavelmente letal. Fritzch escolheu o bloco 11 para seu primeiro teste com Zyklon B. Numa noite entre o fim de agosto e o início de setembro de 1941, portas e janelas do galpão foram vedadas e os guardas da SS receberam máscaras de proteção. Cerca de 160 prisioneiros foram colocados nas celas do porão e o Zyklon, espalhado pelo local. Na manhã seguinte, muitos continuavam vivos. A dose teve de ser repetida até que todos morressem. Hoss admitiu “Essa história do gás me tranqüilizou. Sempre tive horror das execuções com pelotões de fuzilamento. Fiquei aliviado ao pensar que seríamos poupados daqueles banhos de sangue”.
No final daquele ano, Auschwitz havia ficado pequeno para tanta atividade, e o engenheiro Karl Bischoff foi incumbido de desenhar o projeto que praticamente criaria um novo campo, a 3 km do anterior. O local escolhido fora ocupado por uma pequena aldeia que os poloneses chamavam de Brzezinka, mas ficaria famoso pelo nome em alemão: Birkenau. O projeto previa 100 000 prisioneiros e estrutura de uma pequena cidade. Diferentemente do antigo Auschwitz, de onde a maioria das plantas e projetos desapareceram, o desenho original de Birkenau foi localizado entre os documentos secretos da antiga URSS, em 1990. Ele revela que, desde o início, o local foi desenhado para abrigar os prisioneiros em condições repugnantes. Não havia água encanada ou assoalho nos barracões. Adaptados dos antigos campos da Alemanha, onde cada preso tinha seu catre, os planos de Birkenau previam a colocação de 3 pessoas no mesmo espaço, ou 550 pessoas por barracão. As plantas originais revelam que Bischoff não ficou satisfeito com esses números. Onde se lia “550 por barracão” há uma anotação feita à mão, com o número riscado e trocado por 774. Ou seja, o espaço que nos campos da Alemanha era usado por 1 prisioneiro em Birkenau receberia 4.
Solução final
A invasão da URSS revelou outro aspecto que teria desdobramentos trágicos nos territórios ocupados: o anti-semitismo. A presença de um grande número de comunidades judaicas no país sempre foi apregoada pelos nazistas como prova da conspiração entre bolcheviques e judeus, que teria sido responsável pelos males que assolaram a Alemanha após a 1ª Guerra. “Os judeus começaram a ser sistematicamente perseguidos na Alemanha em 1933, bem antes da guerra. Mas foi nos territórios soviéticos que o anti-semitismo se manifestou numa vertente até então inédita: o extermínio sistemático”, diz Robert Gellately. O britânico Christopher Browning concorda: “O plano nazista para liquidação dos judeus desenvolveu-se por etapas, durante a 2ª metade de 1941, e não era consensual em toda a cúpula nazista. Até a invasão da URSS não se pode afirmar que havia o objetivo de realizar o extermínio”, diz. Segundo ele, o aumento brutal do número de prisioneiros, que superlotou campos e guetos, e a percepção de que a vitória na URSS não seria rápida, fez os nazistas concluir que deportar judeus para o leste consumia homens, armamentos e recursos demais.
Em 31 de julho de 1941, Hermann Goering, um dos homens mais poderosos da cúpula nazista e próximo de Hitler, encomendou ao general Reinhard Heydrich da SS a elaboração de um plano completo de “solução final da questão judaica”, que se tornaria o Protocolo de Wannsee, apresentado à cúpula nazista em Berlim no início de 1942 numa reunião que teve como anfitrião Adolf Eichman, do Ministério Central da Segurança (leia quadro acima). Antes mesmo do encontro em Wannsee, porém, os primeiros trens de deportação de judeus para os campos de extermínio já haviam partido em 15, 16 e 18 de outubro de 1941, de Viena, Praga e Berlim, respectivamente.
Os superlotados guetos poloneses tornaram-se a primeira escala da viagem de centenas de milhares de judeus rumo aos campos de extermínio. Em janeiro de 1942, os primeiros 2 500 judeus de Lodz foram enviados para Chelmno, um pequeno campo na Polônia, dirigido por Herbert Lange, um dos líderes do Programa de Eutanásia de Adultos. Imediatamente ao chegar, os prisioneiros foram obrigados a se despir e levados até uma casa sem janelas. Atrás deles as portas foram lacradas. Um caminhão encostou junto a uma das laterais do prédio e o escapamento foi conectado a uma rede de canos que levava o monóxido de carbono para dentro da casa. Depois de algumas horas, a maioria estava morta. Aqueles que resistiram foram fuzilados. Operações semelhantes estavam sendo feitas em diversos campos na Polônia, como em Belzec, por exemplo, onde morreram os judeus do gueto de Lublin.
Em julho de 1942, Himmler anunciou que todos os judeus sob autoridade do Governo Geral – que era como chamavam a Polônia ocupada – deveriam ser evacuados até o fim do ano. Uma meta e tanto, já que havia 2 milhões de judeus na Polônia, 400 000 só no gueto de Varsóvia. O impacto da notícia em Auschwitz foi tamanho que Rudolf Hoss passou a realizar duas e não mais uma reunião semanal. Todas às terças e sextas, pontualmente às 9 horas, ele juntava seu pessoal para discutir a administração do campo, garantir o ritmo das obras em Birkenau e coordenar a chegada dos novos prisioneiros. Num desses encontros foi decidida a construção de novas câmaras de gás. Adaptadas a partir de duas velhas casas, as chamadas “casinha vermelha” e “casinha branca” tornaram-se, na prática, duas caixas de tijolos com portas e janelas lacradas e apenas duas aberturas: uma na frente por onde os prisioneiros entravam caminhando e uma saída na parte de trás, por onde os corpos eram retirados. Outros campos poloneses, como Treblinka, Sobibor e Belzec, tornaram-se genuínas fábricas de morte. Treblinka, o maior deles, ficava a 100 km de Varsóvia e lá 900 000 pessoas foram mortas. Muito menor que Auschwitz, o campo todo tinha apenas apenas uma plataforma de trens, meia dúzia de barracões e um enorme complexo de câmaras de gás, com capacidade para 2 000 pessoas ao mesmo tempo. O comandante de Treblinka, Franz Stangl, mandou plantar flores, pintou as plataformas em tons vivos e colocou placas com os horários de chegada e partida dos trens, como se aquilo fosse uma estação de verdade. Disfarçou as câmaras de gás em salas de banho, para que os prisioneiros permanecessem calmos, sem reclamar, sem tentar fugir ou provocar confusão. A oferta do banho tinha, ainda, um objetivo muito prático (e muito cínico). Nus, os corpos depois de mortos não precisavam ser despidos, o que poupava as roupas para serem reaproveitadas. Entre os prisioneiros enviados para lá, 99% estavam mortos duas horas após desembarcar do trem.
A escalada de mortes causava outro desafio logístico: livrar-se de tantos corpos. Em Auschwitz, no início, eles eram enterrados, mas com o verão o cheiro se tornava insuportável. Em setembro de 1942, Hoss visitou o campo de Chelmno e lá conheceu um método de cremação único e muito eficiente. Ele contou que o coronel Paul Blobel tinha mandado abrir valas de 3 x 3 metros e 4 metros de profundidade. A um metro do fundo, instalava barras de aço transversais. Depois, despejava gasolina no buraco. Sobre as barras ele depositava os corpos intercalando-os com lenha, para que queimassem completamente. As cinzas caiam pelo vão entre as barras, liberando a grelha para que pudesse ser usada novamente. Quando elas atingissem a altura das barras de aço, bastava manejar a estrutura para cima, até que toda a vala ficasse repleta de cinzas. Humanas.
Em março de 1942, embora mais de 1 milhão de judeus já estivessem mortos, cerca de 80% de todos os que morreriam durante a guerra ainda estavam vivos. Durante os 12 meses seguintes, a porcentagem se inverteria. Em maio de 1943, apenas 20% de todos os judeus que morreram no Holocausto ainda estavam vivos.
Apogeu e queda
Os arquitetos alemães estavam trabalhando duro em Auschwitz na 2ª metade de 1942, na construção dos novos crematórios em Birkenau. No projeto inicial, os prédios sob o nível do solo serviriam como necrotérios, para onde os corpos seriam levados e queimados. No entanto, as plantas passaram por consecutivas alterações. O enorme porão foi dividido em salas menores e a rampa entre os porões 1 e 2, por onde desceriam os corpos, deu lugar a uma escada de degraus largos. Algo aparentemente incoerente, já que o prédio receberia mais gente morta do que viva. As portas duplas, que abririam para dentro, foram substituídas por uma porta única, abrindo para fora, com vedação reforçada e um visor. No final das alterações, o necrotério havia se transformado numa supercâmara de gás, que matava até 2 000 pessoas em uma hora e garantiria a fama do lugar.
Outro nome para sempre associado a Auschwitz, o médico Josef Mengele, chegou ao campo no início de 1943. Mengele instalou-se no crematório 2, onde mantinha consultório, ambulatório com 8 leitos e laboratório. Ali, ele realizou estudos genéticos – uma obsessão nazista – e fez experiências médicas ligadas à guerra, como com gangrena e queimaduras. Uma de suas atividades prediletas era realizar autópsias simultâneas em gêmeos, algo raríssimo – em que outras circunstâncias dois irmãos gêmeos morrem ao mesmo tempo e no mesmo lugar? No laboratório de Mengele, assim que morria um gêmeo, seu irmão era trazido e assassinado.
Em meados de 1943, Auschwitz atingiu seu tamanho máximo. A estrutura se parecia com uma pequena cidade. Para os soldados da SS, a vida era boa. Havia mercearias, cantinas, cinema, clube esportivo e um teatro com programação regular. A turma promovia festas e bebedeiras. O complexo industrial montado pela IG Farben produzia de armamentos a tinta e faturava US$ 250 milhões ao ano, em valores atualizados. Os cerca de 100 000 prisioneiros ficavam divididos em 45 subcampos. Havia um só para mulheres, com 30 000 prisioneiras. Perto dali ficava o “Canadá”, uma área que recebeu esse nome porque o Canadá era tido como um país rico, próspero e, sobretudo, pacífico. Lá funcionava a triagem da bagagem dos presos: de roupas a relógios, o que pudesse ser reaproveitado era enviado para a Alemanha. Para os prisioneiros, aquele era um dos poucos serviços almejados, pois era onde se vivia melhor.
Havia também prisioneiros que trabalhavam diretamente com os alemães, como alfaiates, barbeiros e garçons. Mas o trabalho sujo sobrava para o sonderkommando (“comando especial”, em português), o grupo de prisioneiros, judeus ou não, que ajudavam os alemães na operação dos assassinatos. Cada conjunto de câmaras e crematório funcionava com 100 prisioneiros e apenas 4 alemães, aos quais cabia somente introduzir os cristais de Zyklon B. Os prisioneiros eram quem recolhia os corpos e os levava a um elevador. Outra turma os recolhia lá em cima e tratava de queimá-los nos fornos ou em grandes valas a céu aberto.
Até o início de 1944, 550 000 pessoas já haviam sido mortas em Auschwitz. A essa altura, os Aliados sabiam o que ocorria lá e nos demais campos poloneses. Os prisioneiros passaram a conviver com a esperança (e com a desilusão) ao verem e ouvirem aviões aliados sobrevoar o complexo. Em agosto, a unidade da IG Farben em Monowitz, a apenas 6 km de Birkenau foi destruída por um ataque britânico. Os prisioneiros se perguntavam por que as linhas de trem ou as câmaras de gás não eram bombardeadas. E essa é uma das grandes questões da guerra que continuam sem resposta.
Com americanos e ingleses pelo ar e o Exército Vermelho pelo chão, o ritmo de mortes em Auschwitz caiu. Se em julho foram 10 000 execuções por dia, nos meses seguintes o número chegou a menos de 1 000. Hoss, então, resolveu eliminar o maior número de prisioneiros possível. No dia 2 de agosto, 21 000 ciganos foram ao crematório 5. Imaginando que seriam os próximos, os sonderkommando se rebelaram – em 7 de outubro. Atacaram os guardas e tentaram fugir, mas foram capturados e só não acabaram todos mortos porque havia 4 000 cadáveres para serem queimados. Para puni-los, Hoss decidiu alinhá-los e fuzilar 1 em cada 3. Sobraram apenas 92.
Em janeiro de 1945, veio a ordem para que se esvaziasse o campo. Documentos, plantas e telegramas foram queimados e crematórios e câmaras de gás, explodidos. Os soviéticos haviam interrompido as linhas e os trens não chegavam mais ao campo. Por isso, os últimos 50 000 prisioneiros que restavam foram obrigados a andar por 35 km, em meio à neve e sob - 20 ºC. Quem parou ou atrasou a marcha foi morto no caminho. O Exército Vermelho chegou a Auschwitz em 27 de janeiro. Não havia muito mais gente a libertar – apenas 1 200 prisioneiros fracos e doentes que haviam sido abandonados. Em 30 de abril, Adolf Hitler se matou num porão de Berlim. Em 5 de maio, a Academia Naval de Murwick, em Flensburg, norte da Alemanha, território ainda controlado pelos nazistas, foi sede da última reunião da SS. Rudolf Hoss esperava que uma derradeira e heróica ação fosse anunciada. Mas o marechal Himmler despediu-se do grupo e recomendou que todos aproveitassem o colapso do 3º Reich para sumirem no meio da multidão. Hoss então trocou sua farda de oficial por um traje comum da Marinha e se misturou a outros marinheiros em Sylt, uma ilha de veraneio sem nenhum valor estratégico. Himmler foi capturado dias depois e se matou engolindo cápsulas de cianeto de potássio.
Com o nome de Franz Lang, Hoss empregou-se numa fazenda em Gottrupel, norte da Alemanha. Acabou denunciado pela esposa, que havia sido presa e estava sob ameaça de deportação para a URSS. Preso enquanto dormia num estábulo, Hoss foi levado ao Tribunal de Nuremberg. O julgamento levou 3 semanas – tempo que aproveitou para escrever suas memórias, de onde as declarações reproduzidas nesta reportagem foram retiradas. A sentença – morte na forca – foi cumprida em 16 de abril de 1947, num pátio quase vazio em Auschwitz.
Mengele escapou para a Itália e com a colaboração das autoridades locais conseguiu passaporte e uma passagem para a Argentina. Viveu no Paraguai e no Brasil, onde morreu, em 1979, incógnito. Adolf Eichmann se escondeu na Argentina até 1960, quando foi seqüestrado por espiões israelenses. Julgado em Tel-Aviv, ele foi condenado e enforcado. Franz Stangl, o eficiente comandante de Treblinka, fugiu para o Brasil, onde trabalhou no almoxarifado da Volkswagen usando o próprio nome, até 1967, quando foi enfim deportado para a Alemanha. Morreu de ataque do coração aguardando o julgamento. Personagens menos importantes, como o tenente Oskar Gronning, que recolhia os bens dos prisioneiros no “Canadá”, também ficaram impunes. Após a guerra, ele empregou-se na área de recursos humanos de uma multinacional . Em 1964, foi nomeado juiz trabalhista, função que exerceu até se aposentar. Nunca foi julgado e vive hoje em Hannover.
Em 1963, os 22 últimos acusados por crimes em Auschwitz foram julgados: 17 saíram condenados, 6 à pena máxima de prisão perpétua. Ao todo, 8 000 homens da SS trabalharam em Auschwitz. Sete mil sobreviveram à guerra. Oitocentos foram julgados. A 90% deles, nunca foi imputado qualquer crime.
Rudolf Hoss
Proeminente capitão da Schutzstaffel, a polícia política de Hitler, mais conhecida pela sigla SS, liderou o campo de prisioneiros de Daschau, na Alemanha, antes de ser nomeado para comandar Auschwitz. Super- dedicado ao trabalho, em suas memórias escreveu que só se arrependia de “não ter podido dedicar mais tempo aos filhos”.
Lebensraum
Elaborado por Konrad Meyer, professor da Universidade de Berlim, o Plano Geral do Leste previa o reassentamento, na região entre a Alemanha e a Rússia, de 10 milhões de alemães espalhados pelo mundo. Para isso, cerca de 31 milhões de pessoas seriam declaradas “racialmente indesejáveis” e enviadas para a Sibéria. E as restantes, usadas como escravas.
Heinrich Himmler
O plano nazista para liquidação dos judeus não era consensual em toda a cúpula nazista, dividida entre o extermínio e a exploração. Comandante supremo da SS, Himmler era um dos expoentes do grupo que defendia o “extermínio pelo trabalho”.
Karl Fritzch
Tenente da SS, era um tipo de vice de Hoss em Auschwitz que assumia o comando quando o chefe estava fora. Numa dessas ausências, foi o primeiro a testar o Zyklon B para envenenar prisioneiros.
Zyklon B
Era comercializado na forma de cristais, que sublimavam em um gás tóxico ao entrarem contato com o ar. Só foi utilizado pela primeira vez por causa da iniciativa de Fritzch. Mas logo cairia nas graças dos nazistas, ao se mostrar o gás capaz de matar mais rápido.
Albert Widman
Membro do programa de eutanásia de adultos, Albert Widman recebeu a missão de adaptar suas experiências com monóxido de carbono aos campos de prisioneiros. Como transportar os cilindros seria caro demais, Widman sugeriu criar caminhões fechados, com o escapamento voltado para dentro do veículo. Mas a idéia não emplacou: o processo era lento demais – e matava apenas 30 prisioneiros por viagem.
Karl Bischoff
Engenheiro aviador e major da SS, foi um dos autores do projeto de expansão de Auschwitz que criou o novo campo de Birkenau. Depois disso, conseguiu se esconder – seu envolvimento com o genocídio só foi descoberto depois de sua morte, em 1950.
Chelmno
Foi o primeiro campo de extermínio a usar gases tóxicos para matar judeus, no final de 1941. Mais tarde, seria também o primeiro a desenvolver fornos crematórios. Quem chegava lá era informado que seria enviado para trabalhar na Alemanha, mas que antes deveria passar por um banho de higienização. Para dar veracidade ao teatro, os soldados da SS se preocupavam em vestir jalecos brancos e se fingir de médicos. No total, 152 000 pessoas foram assassinadas em Chelmno.
Josef Mengele
Médico e cientista, serviu na frente leste, onde recebeu a cruz de ferro por bravura. Em Auschwitz realizou experiências com cobaias humanas, como Eva Mozes Kor, húngara judia, que tinha 9 anos. “Três vezes por semana meu braço era amarrado para restringir o fluxo sanguíneo. Depois eles tiravam meu sangue até eu desmaiar.” A irmã gêmea de Eva, Míriam, não passava pelas mesmas privações, para que os efeitos do “tratamento” pudessem ser comparados.
IG Farben
A indústria química alemã já havia sido a maior do mundo, mas a derrota na 1ª Guerra Mundial deixou-a em situação delicada. Foi aí que Hermann Schmitz teve a idéia – inovadora e óbvia: reunir as maiores empresas do setor em uma grande corporação, a IG Farben. A agenda econômica dos nazistas, um dos aspectos mais populares do regime, previa o fortalecimento das empresas através de grandes conglomerados. O governo garantia bons contratos, restrições à concorrência externa e um controle policial dos sindicatos. Do seu lado, as empresas garantiam aumento da produção e do emprego. A IG Farben aderiu ao esforço de guerra – produziu o pesticida Zyklon B, usado nas câmaras de gás. Ao fim do conflito, durante o esforço americano para normalizar a Europa – que incluiu ocupação militar, apoio financeiro e uma dose de “deixa para lá” – o conglomerado se desfez e as empresas voltaram a utilizar os nomes originais: Bayer, Basf, Hoechst e Agfa.
Morte todo dia
Com mais de 100 000 prisioneiros e a chegada diária de trens lotados, o extermínio no maior campo de concentração nazista atingiu sua capacidade máxima entre novembro de 1942 e o final de 1943. A indústria do assassinato funcionava assim:
1. Triagem
Em primeiro lugar, homens fortes e jovens. Depois, mulheres sem filhos. Quem não tivesse esse perfil, dificilmente sobreviveria ao primeiro dia em Auschwitz. Mães, crianças, velhos, doentes e feridos eram assassinados imediatamente. Quem reagisse era fuzilado na hora. Cerca de 70% dos prisioneiros que chegaram a partir de 1943 acabaram mortos nas câmaras de gás.
2. Esforço
As jornadas eram duras: não menos que 12 horas diárias de trabalho em obras de manutenção e expansão do campo, recuperação de estradas e operação das fábricas da IG Farben. Cada prisioneiro recebia 3 refeições por dia, que limitavam-se a pão, café e sopa de batata, às vezes engrossada com aveia ou farelo de trigo.
3. Contagem
Sem banheiros ou calefação, os prisioneiros dormiam amontoados: em alguns casos, com 5 pessoas por cama. Todos os dias, de manhã e à noite, eram levados para fora dos barracões e contados, fizesse chuva, sol ou neve. Judeus, ciganos, soviéticos e presos políticos não ficavam juntos. Viviam separados e eram mortos separados.
4. Engenharia
Os novos complexos, inaugurados em 1943, já haviam sido construídos prevendo o extermínio em massa. As câmaras de gás ficavam abaixo do nível do solo e tinham uma única abertura no teto, por onde os soldados da SS, protegidos por máscaras especiais, introduziam os cristais de ácido cianídrico.
5. 20 minutos
As aberturas eram conectadas a longas colunas que levavam o gás até o subsolo, onde as câmaras eram totalmente vedadas. A morte chegava em até 10 minutos, mas por garantia os corpos eram removidos apenas uma hora depois. O serviço era feito por prisioneiros dos sonderkommando, em grande carrinhos que pareciam caçambas com rodas.
6. Fornos
Ligados às câmaras, havia 5 fornos a gás que, juntos, podiam destruir 5 000 corpos por dia. As altas temperaturas deixavam poucas cinzas e resíduos, eliminados através da chaminé. Como em alguns momentos os fornos não atendiam à demanda, que chegou a 20 000 mortos por dia, alguns corpos eram queimados em valas abertas ao ar livre.
A solução final
Na manhã de 20 de janeiro de 1942, o general Reinhard Heydrich pousou o próprio avião sobre o lago congelado de Wannsee. O frio de -15 0C havia afastado quase todos os turistas da região. Era o cenário perfeito para a reunião de 15 dos principais membros do Reich. Em pauta, um tema dos mais relevantes: a solução final da questão judaica.
Heydrich abriu o encontro lendo um documento assinado pelo marechal Hermann Goering, chefe da Força Aérea e número 2 de Hitler. “Ficam incumbidos de tomar todas as medidas logísticas e financeiras para solucionar totalmente a questão dos judeus na esfera de influência alemã”, ele leu. A seguir, sugeriu que todos consultassem os papéis colocados em suas pastas. Lá estava uma análise da política de incentivo à emigração judaica e dados sobre a quantidade de judeus que restavam na Europa – 11 milhões. O número precedeu a conclusão do general de que era impossível alimentar essa gente toda. O representante da administração do governo geral da Polônia ocupada, Josef Bühler, pediu a palavra e sugeriu que a “solução judaica” fosse logo iniciada, porque “na Polônia havia tantos judeus sem utilidade”.
A reunião durou apenas duas horas e deu origem a um documento que ficaria conhecido como Protocolo de Wannsee. “Depois da conferência, 90% dos judeus que chegavam aos campos eram levados direto para as câmaras de gás”, escreveu a historiadora Annalena Staudte-Lauber, em Holocaust (inédito no Brasil). Trinta cópias com o relato das discussões foram feitas. Uma delas acabou descoberta em 1947 – é até hoje o documento mais explícito acerca do genocídio planejado pelos nazistas. “Com o Protocolo, o tratamento aos judeus entrou em uma nova fase”, diz o historiador Robert Gellately. “No início, havia discriminação e restrições de trabalho e estudo. Em seguida, ocorreram as expropriações de bens e o confinamento em guetos. Depois de Wannsee, iniciou-se o extermínio”, diz. Gellately, porém, concorda com os historiadores que questionam a importância do Protocolo. “Nenhuma decisão importante foi tomada lá.” Para ele, a opção pelo extermínio dos judeus já havia sido feita. O encontro apenas confirmou seu caráter prioritário dali em diante.
Para saber mais
The Specter of Genocide,
Robert Gellately, Cambridge University Press, 2003.
The Origins of the Final Solution
Christopher Browning, William Heinemann, 2004.
The Architect of Genocide: Himmler and Final Solution
Richard Breitman, Alfred Knopf, 1991.
Revista Superinteressante
2 comentários:
Seu blog é perfeito!!!!!!!
Tenho indicado para os meus alunos...
Beijos,
Dani
Oi Eduardo!
Não sei se o nazismo foi pior que Iroshima, ou o contrário.
Mas o que nunca entendi, é que em número infinitamente superior, e com inteligência acima da média, os judeus se comportavam como cordeiros. Nenhuma reação, nenhuma manifestação contra.
É impressionante! E ainda hoje é assim.
Realmente não entendo essa passividade.
Belíssima postagem!
Abraços
Mirse
Postar um comentário