quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Da batalha das Termópilas ao 11 de setembro


Da batalha das Termópilas ao 11 de setembro
Buscando numa concepção maniqueísta da história um afrontamento incessantemente reiniciado entre civilização e barbárie, inúmeros autores, frequentemente prestigiosos, nos fazem embarcar numa máquina do tempo para encontrar as raízes dessa “guerra de 2.500 anos”
Alain Gresh

"O destino da civilização do Ocidente, o destino do homem, simplesmente, estão hoje ameaçados. Todos os viajantes, todos os estrangeiros que vivem há muito tempo no Extremo Oriente nos afirmam: em dez anos, os espíritos mudaram mais profundamente do que em dez séculos. A antiga e fácil submissão foi sucedida por uma hostilidade surda, e às vezes uma verdadeira raiva que só espera a hora propícia para passar à ação.

De Calcutá a Xangai, das estepes mongóis aos planaltos anatolianos, a Ásia toda é agitada por um surdo desejo de libertação. A supremacia com a qual o Ocidente estava acostumado desde o dia em que Jean Sobieski brecou definitivamente a corrida dos turcos e tártaros sob os muros de Viena [1] não é mais reconhecida pelos asiáticos. Esses povos aspiram a refazer sua unidade contra o homem branco, cujo desastre eles proclamam [2].”

Em 1927, Henri Massis, escritor prolífico e influente, partia em cruzada contra os perigos que se acumulavam sobre os valores e o espírito europeus – amplamente identificados por ele aos da França. No fundo, ele não estava totalmente errado: em toda parte viam-se povos colonizados se insurgirem.

Num contexto bem diferente daquele da Primeira Guerra Mundial, marcado também por sucessivos terremotos – fim da Guerra Fria, atentados do 11 de Setembro, guerras do Iraque e Afeganistão etc. – e, sobretudo, pela reorganização do mundo em proveito de potências novas como a China ou a Índia, os mesmos medos ressuscitam.

Buscando numa concepção maniqueísta da história um afrontamento incessantemente reiniciado entre civilização e barbárie, inúmeros autores, frequentemente prestigiosos, nos fazem embarcar numa máquina do tempo para encontrar as raízes dessa “guerra de 2.500 anos” – segundo o subtítulo de uma obra de Antony Pagden, Worlds at war – que ensanguenta hoje o planeta.

Esse professor ensinou nas mais renomadas universidades – Oxford, Cambridge e Harvard. Ele pinta, em cerca de 500 páginas, um quadro grosseiro da história mundial. “Uma chama foi acesa em Troia: ela deveria queimar de maneira permanente ao longo dos séculos, enquanto os troianos foram sucedidos pelos persas; os persas, pelos fenícios; os fenícios, pelos partos; os partos, pelos sassânidas; os sassânidas, pelos árabes; os árabes, pelos turcos otomanos. As linhas de batalha foram modificadas no decorrer do tempo, e as identidades dos adversários também. Mas o entendimento das duas partes sobre o que as separava permaneceu estável, baseando esse tipo de percepção em memórias históricas acumuladas, algumas razoavelmente justas, outras inteiramente falsas.”

Apesar dessa pequena reserva sobre as memórias “inteiramente falsas”, o autor retoma, ao longo de seu raciocínio, uma visão binária cujo episódio fundador seria o afrontamento entre gregos e persas, relatado pelo historiador grego Heródoto.

Heródoto mostra, segundo Pagden, que “o que separava os persas dos gregos ou os asiáticos dos europeus era mais profundo do que pequenos conflitos políticos. Era uma visão do mundo, uma compreensão de que era ser e viver como um ser humano.

Embora as cidades-Estado gregas e, mais geralmente, da “Europa” tivessem personalidades extremamente diferentes, diversos tipos de sociedades e ficassem muito contentes em trair umas às outras caso isso lhes conviesse, elas compartilhavam elementos comuns dessa visão. Todas podiam distinguir liberdade de escravidão e estavam comprometidas com o que consideramos hoje uma visão individualista do homem”.

Paul Cartledge, professor de história grega da Universidade de Cambridge, não diz outra coisa em seu livro sobre as Termópilas, essa “batalha que mudou o mundo”. “Esse afrontamento entre os espartanos e os outros gregos de um lado e a horda persa de outro”, escreve ele na introdução, “era entre a liberdade e a escravidão, e foi entendido assim tanto na época como depois. (...) A batalha das Termópilas, em resumo, foi uma virada não apenas na história da Grécia clássica, mas na história do mundo...”

Não foi o economista John Stuart Mill, no meio do século XIX, que afirmou que a batalha de Maratona foi “mais importante que a batalha de Hastings [3], até para a história britânica”?

No prefácio, Paul Carledge não esconde sua perspectiva ideológica: “Os acontecimentos do 11 de Setembro em Nova York e do 7 de Julho em Londres deram a esse projeto [compreender o sentido da batalha das Termópilas] uma urgência e uma importância novas no contexto do encontro cultural entre o Oriente e o Ocidente”. Um “encontro” que é o choque entre “despotismo” e “liberdade”...

Essa representação acadêmica foi popularizada no filme 300, de Zack Snyder, sobre a batalha das Termópilas , feito a partir de uma história em quadrinhos com o mesmo nome, de Frank Miller e Lynn Varley, e lançado em 2007. O filme, um sucesso de bilheteria nos Estados Unidos, dura duas horas, parece um videogame dominado por belos machos musculosos, dopados por anfetaminas, afrontando os bárbaros (negros ou de “tipo Oriente Médio”), feminilizados, que eles podiam matar sem maiores sentimentos. “Nada de prisioneiros”, lança o herói, o rei Leônidas, o mesmo que, no começo dofilme, mata o embaixador persa: os selvagens não merecem que lhes sejam aplicadas as leis mais sagradas da humanidade.

A civilização é, portanto, a exterminação dos bárbaros! Já em 1898, Heinrich von Treischke, especialista alemão em ciências políticas, sustentava o que, para muitos de seus contemporâneos, parecia uma banalidade: “O direito internacional torna-se apenas frases se quisermos igualmente aplicar nele os princípios dos povos bárbaros. Para punir uma tribo negra, é preciso queimar seus vilarejos; não se conseguirá nada sem tornar a sorte um exemplo. Se, em casos parecidos, o império alemão aplicava o direito internacional, isso não seria humanidade ou justiça, mas uma fraqueza vergonhosa”.

E os alemães não deram prova de “fraqueza” quando exterminaram os hererós, no sudoeste africano (Namíbia), entre 1904 e 1907, inaugurando o primeiro genocídio do século XX, que, ao lado de outras “políticas” coloniais, serviu de modelo para o genocídio dos judeus pela Alemanha nazista.

Fontes ausentes
Não se pode tampouco acusar de “fraqueza” os espartanos de 300. Eles matavam crianças malformadas e proibiam as mulheres de fazer parte do Senado. Quanto à guerra, ela representava o auge da realização dos homens. Frank Miller, que concebeu a história em quadrinhos, não dissimula suas escolhas ideológicas: “Nosso país [os Estados Unidos], assim como o mundo ocidental inteiro, está atualmente confrontado a um inimigo existencial que sabe exatamente o que quer”.

Paul Cartledge afirma que não existe mais a fonte persa das Guerras Médicas, nenhum Heródoto autóctone. No entanto, foram acumulados vários conhecimentos em relação aos impérios persas, que modificaram as perspectivas. Touraj Daryaee, professor de história antiga da Universidade do Estado da Califórnia (Fullerton) [4], lembra que a escravidão era pouco praticada ali, enquanto existia, em grande escala, na Grécia; que o estatuto da mulher não era “inferior” ao que ela tinha na Grécia; que a primeira carta conhecida dos direitos da pessoa foi dada por Ciro, o Grande, num texto que as Nações Unidas decidiram traduzir, em 1971, em todas as línguas, e que contém principalmente a tolerância religiosa, a abolição de escravatura e a liberdade de escolha da profissão.

É normal que os gregos tenham apresentado – principalmente através de Heródoto, portanto menos caricatural que seus herdeiros – o resultado da batalha como uma vitória sobre a barbárie. Desde que as guerras existem, os protagonistas se cobrem de magníficos princípios. As guerras empreendidas pelos Estados Unidos no Iraque ou no Afeganistão não eram, ao menos para os dirigentes, as do Bem contra o Mal? No entanto, uma questão se coloca: por que nós somos, 4.500 anos depois, tão obcecados pelos gregos?

Marcel Detienne, professor da Johns Hopkins e diretor de Altos Estudos, dá uma resposta irônica: “Que ‘nossa história começa com os gregos’, como escrevia Lavisse em suas Instruções [5], é o que se precisa ensinar aos alunos das escolas secundárias, e isso sem que eles percebam. Nossa história começa com os gregos que inventaram a liberdade e a democracia, que nos trouxeram o Belo e o gosto pelo universal. Nós somos os herdeiros da única civilização que ofereceu ao mundo “a expressão perfeita, e como ideal da liberdade”. Eis porque nossa história deve começar com os gregos. Com essa primeira crença, veio uma outra, tão forte quanto a primeira: ‘Os gregos não eram como os outros’. Como, aliás, eles poderiam ter sido, se estavam no início de nossa História? Duas propostas essenciais para uma mitologia nacional que atinge todos os humanistas tradicionais e os historiadores entusiastas da nação [6]”.

E o autor conclui que gostamos de acreditar “não apenas que o político ou a política tenham caído do céu num belo dia e, portanto, na Atenas ‘clássica’, sob a forma miraculosa e autenticada da democracia, mas que é natural que uma história divinamente linear nos conduza desde a Revolução Americana, passando pela ‘Revolução Francesa’, até nossas sociedades ocidentais, tão felizmente convencidas de que sua missão é converter todos os povos à verdadeira religião da democracia”.

É essa concepção de uma Europa “excepcional”, de uma genealogia direta entre a Antiguidade clássica e a Europa atual, passando pelo Renascimento – termo inventado, vale lembrar, pelo historiador Jules Michelet no século XIX – que várias obras anglo-saxãs abalaram sem que, na maior parte das vezes, sua mensagem tenha chegado ao lado francês.

No livro intitulado The Eastern Origins of Western Civilisation, John M. Hobson mostra que é impossível compreender a história do mundo esquecendo-se do Oriente. Esse “silêncio” reflete três omissões maiores. “Em primeiro lugar, o Oriente foi pioneiro em seu substancial desenvolvimento econômico depois do ano 500. Segundo, ele criou e manteve a economia mundial depois de 500. Terceiro, o Oriente contribuiu de maneira ativa e importante à emergência do Ocidente, inventando e exportando suas tecnologias, instituições e ideias para a Europa.”

Quem sabe que a primeira revolução industrial foi iniciada no século XI, na China dos Song? O reinado produzia 125 mil toneladas de ferro em 1078, enquanto foi preciso esperar até 1788 para que a Grã-Bretanha atingisse 76 mil toneladas. Os chineses do-minavam também técnicas avançadas, principalmente de produção de fundição, e eles já haviam substituído o coque pelo carvão de madeira para resolver os problemas de desmatamento. Assistimos também, durante esse período, a uma revolução nos transportes, na energia (com os moinhos de água), no desenvolvimento do imposto e de uma economia de comércio, no desenvolvimento das grandes cidades, uma revolução verde com uma produtividade agrícola que a Europa só alcançaria no século XX.

O papel da China
Entre as grandes potências, a China permaneceu “primus inter pares”, até 1800, sendo a economia mundial descrita por alguns como sino-centrada – já que a Índia, por seu lado, também ocupava um lugar de destaque. Várias de suas técnicas, ideias e instituições alcançaram as fronteiras da Europa e ajudaram no surgimento do capitalismo moderno. A Revolução Industrial britânica não teria sido possível sem o aporte da China. Poderia se dizer o mesmo sobre o papel dos grandes impérios muçulmanos.

Para Hobson, os pesquisadores “eurocentristas” colocam dois tipos de questões: “O que permitiu ao Ocidente a abertura em direção à modernidade capitalista?” e “O que impediu o Oriente de realizar essa abertura?”. Ora, essas questões supõem que a dominação do Ocidente era inevitável. Elas levam o historiador a buscar tudo o que, no passado, explica essa dominação. “A ascensão do Ocidente é compreendida a partir de uma lógica de imanência que só pode ser analisada por fatores endógenos à Europa” e leva, portanto, a considerar o Oriente e o Ocidente como duas entidades separadas por uma muralha da China cultural, essa barreira que nos protege das invasões bárbaras.

Mas quem são esses “bárbaros”? Criticando Lévi-Strauss, para quem bárbaro é aquele que acredita na barbárie, Tzvetan Todorov replica: “É aquele que crê que uma população ou um ser não pertencem plenamente à humanidade e merecem tratamentos que eles mesmos recusariam firmemente aplicar a si mesmos”. Em seu novo livro, La peur des barbares [O medo dos bárbaros], Todorov continua uma reflexão empreendida há muito tempo, principalmente em Nous et les autres, la réflexion française sur la diversité humaine [7] [Nós e os outros, a reflexão francesa sobre a diversidade humana], uma obra fecunda que deveria ser colocada à disposição de todos.

“O medo dos bárbaros”, escreve ele na introdução, “é o que nos expõe ao risco de nos tornar bárbaros. E o mal que nós faremos ultrapassará aquele que nós temíamos no início. Se dispomos de um termo com um conteúdo absoluto, ‘bárbaro’, assim será seu contrário. É civilizado, emqualquer época e em qualquer lugar, aquele que sabe reconhecer plenamente a humanidade dos outros.”

Isso acontece em duas etapas: descobrir que os outros têm modos de vida diferentes dos nossos; aceitar vê-los portadores da mesma humanidade que nós, o que não quer dizer aceitar tudo o que venha de fora nem se obscurecer no relativismo.

“Durante muito tempo”, nota ele, “o pensamento das Luzes serviu como fonte de inspiração a uma corrente reformista e liberal, que combatia o conservadorismo em nome da universalidade e do respeito igual para todos. Sabe-se que hoje as coisas mudaram e que esse pensamento é evocado pelos defensores conservadores do pensamento ocidental superior, que se acreditam engajados num combate contra o “relativismo”, que seria oriundo da reação romântica, no começo do século XIX.

Eles só podem fazê-lo ao custo de uma amputação da verdadeira tradição das Luzes, que sabia articular a universalidade dos valores e a pluralidade das culturas. É preciso sair dos clichês: esse pensamento não se confundia nem com o dogmatismo (minha cultura deve se impor a todos) nem com o niilismo (todas as culturas se equivalem); colocá-la a serviço de denegrir os outros para se autorizar a submetê-los ou destruí-los representa um verdadeiro sequestro das Luzes.”

Trata-se de um “sequestro”, ou alguns elementos do pensamento das Luzes favoreceram esse desvio? Para Hobson, a construção da identidade europeia dos séculos XVIII e XIX permitiu a afirmação de uma “excepcionalidade” que nenhuma outra civilização jamais reivindicou. “Os europeus não buscaram refazer o mundo porque eles podiam (como dizem as explicações materialistas), mas porque acreditavam que deviam. Suas ações eram ditadas por sua identidade, que julgava o imperialismo como uma política moralmente aceitável.”

No entanto, vários europeus, solidários com as lutas anticoloniais ou dos povos do sul, recusaram essa visão, frequentemente em nome das Luzes. De qualquer forma, o debate merece ser levado adiante…



[1] Batalha de 12 de setembro de 1683, durante a qual os otomanos foram vencidos pela Santa Liga, composta por poloneses, alemães e austríacos.

[2] Défense de l’Occident, Paris, Plon, 1927.

[3] Batalha que ocorreu em 1066 e opôs o último rei anglo-saxão a Guilherme, o Conquistador. A vitória deste último marcou o início de sua conquista da Inglaterra.

[4] “Go tell the Spartan”, 14 de março de 2007.

[5] Nascido em 1842, Ernest Lavisse teve um papel primordial na concepção dos programas de história durante a Terceira República.

[6] Les Grecs et nous, Paris, Perrin, 2005, p. 16-17.

[7] Le Seuil, coleção “Points Essais”, 2001.

Le Monde Diplomatique

2 comentários:

Elaine Crespo disse...

Gosto muito de teu Blog!!
Pena não ter tempo para passar mais aqui!!

Beijos
Elaine

Anônimo disse...

Cara, viajei muito neste texto, muito bom! Eu nunca tinha pensado a Batalha das Termópilas pelo prisma da dicotomia utilizada como argumento até os dias de hoje.

Bom texto.

Um abraço,
Prof_Michel

Obs.: O que você acha de trocarmos links entre os blogs? Se estiver interessado, visite:

http://www.historiadigital.org/2009/07/blogs-parceiros-do-profmichel.html