quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Antonio Conselheiro: um abolicionista da plebe



Antonio Conselheiro: um abolicionista da plebe

Clóvis Moura

O movimento camponês de Canudos, no interior da Bahia, durante o governo de Prudente de Morais, infelizmente ainda não foi estudado em todas as suas diversas vertentes e devida profundidade. A obra de Euclides da Cunha Os sertões tornou-se um clássico literário e aqueles que procuram analisar e interpretar esse acontecimento histórico quase sempre partem de suas informações. Uma pesquisa sistemática e exaustiva, por isto mesmo, ainda não foi feita com a profundidade que o tema merece. Um dos defeitos mais visíveis é ignorar-se a importância de Antônio Vicente Mendes Maciel (O Conselheiro) como líder, agitador e organizador. Ele é sempre visto como um místico, messiânico, quando não um desequilibrado mental. O seu crânio, após a sua degola, foi enviado a Salvador, para estudos médico-legais e antropológicos por cientistas influenciados pela Escola de Lombroso, para serem procurados nele os estigmas do ‘criminoso nato’ (1).

Até hoje, por outro lado, não possui um biógrafo que o estudasse por meio de pesquisas modernas e de uma metodologia satisfatória. O livro de Edmundo Moniz, no particular, que vai nessa direção, ressente-se de falhas teóricas muito acentuadas (2). O certo é que a figura de Antônio Conselheiro é sempre apresentada como se fosse a de uma individualidade mórbida, desligada do contexto social do qual surgiu e sem nenhuma ligação funcional e dinâmica com os problemas e as contradições emergentes da região em que a luta eclodiu.

Por essas razões, poucas vezes é lembrado como abolicionista e pregador para a massa escrava. Mas, esse personagem, que percorreu a partir de 1874 grande parte do território cuja população escrava era considerável, não podia deixar de interessar-se pelos cativos, muitos deles egressos dos quilombos da região ou com a revolta latente em face das condições em que viviam.

Em primeiro lugar, devemos ver as suas raízes étnicas, pois quase todos os que dele se ocuparam afirmam ter sido branco. No entanto, no seu batistério ele é registrado como pardo. Vejamos:

Aos vinte e dois de maio de mil oitocentos e trinta batizei e pus os Santos Óleos nesta Matriz de Quixeramobim ao párvulo Antônio pardo nascido aos treze de março do mesmo ano, filho natural de Maria Joaquina: foram padrinhos, Gonçalo Nunes Leitão e Maria Francisca de Paula. Do que, para constar, fiz este termo em que me assinei. O Vigário Domingos Álvaro Vieira. (3)

Como podemos ver, pela sua certidão de batismo, foi considerado pardo pelo padre que o batizou. Se isto, porém, não é de grande significado para avaliar o seu abolicionismo, serve para repor a verdade. O que é importante é apurar-se se na sua biografia pode se constatar uma postura abolicionista nas suas pregações e mais especialmente se essas prédicas foram dirigidas aos próprios escravos.

Quem toma como fonte de informações de sua vida o texto de Os Sertões de Euclides da Cunha certamente nada encontrará. O seu racismo no particular é evidente pois, como acentua muito bem o professor José Calasans, apoiado em livro que Pedro A. Pinto organizou sobre o vocabulário do livro, as palavras escravo e escravidão não se encontram ali uma vez sequer (4) .

Outras fontes, porém, revelam um Antônio Conselheiro preocupado com a escravidão e a sorte dos cativos, dirigindo-se aos próprios escravos, os quais posteriormente irão engrossar as suas hostes. Ainda o professor Calasans escreve que o jornalista Manoel Benício, correspondente do Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, junto às forças em operações contra os jagunços, autor de um bom livro relativo à vida dos conselheiristas e de seu guia, percebeu e registrou a posição adotada pelo "Bom Jesus" em face do problema da escravidão:

"Ignorante e enraizado nos velhos hábitos da administração de então, desconfiado como são todos os sertanejos" escreveu Manuel Benício, "de índole conservadora por nascença, achava que toda reforma na administração e toda inovação na economia política eram um meio de se roubar o povo. Fora contra a introdução do sistema métrico-decimal no comércio e a única reforma que encontrou sua aquiescência mais tarde, em 1888, foi a abolição dos escravos. Talvez porque grande porção de quilombos e mucambeiros acautelassem sua errante cruzada."



Para José Calasans, ele "transmitiu aos escravos os ensinamentos dos Evangelhos. Não estando formulando uma hipótese", prossegue:

Baseamos nossa assertiva num depoimento contemporâneo, perdido nas folhas de uma gazeta baiana de 1897, no auge da luta fratricida. Um italiano, que trabalhava na construção da estrada de ferro Salvador-Timbó, narrou, nesses termos, seu encontro com o peregrino: "Veja como este povo", disse-lhe o Conselheiro apontando a gente que aguardava a sua pregação, "na sua totalidade escrava vive pobre e miserável. Veja como ele vem de quatro e mais léguas para ouvir a palavra de Deus. Sem alimentar-se, sem saber como se alimentará amanhã, ele nunca deixa de atrair pressuroso às palavras religiosas, que, indigno servo de Deus e por ele amaldiçoado, iniciei neste local para a redenção dos meus pecados". No lugarejo mencionado, que outro não era senão Saco, entre Timbó e Vila do Conde, na então província da Bahia, durante o dia quase não havia viva alma. Mais de duas mil pessoas, porém, surgiram de noite, ansiosas para ouvirem os conselhos do Bom Jesus. "Ao anoitecer", prosseguiu o empreiteiro, "começavam a chegar e às 8 horas a praça estava cheia, tendo mais de mil pessoas, todas escravas, e após o sermão, que em seguida um explicava ao outro, visto que somente os vizinhos podiam ouví-lo, todos cantavam as seguintes estrofes: Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo, ao que as mulheres e meninos respondiam para sempre seja louvado o santo nome de Maria, e isto até a meia noite, algumas vezes. De manhã não havia pessoa alguma no arraial".

A informação transcrita, documenta, com segurança, as relações do Conselheiro com os escravos da zona citada, que atentamente escutavam a pregação do ‘santo’ de Quixeramobim. Convém esclarescer, desde logo, que na região de Itapicuru, onde Antônio Conselheiro passou grande parte de sua vida de pregador, havia, na época aqui estudada, apreciável número de pequenos engenhos, o que explica a presença de grande quantidade de escravos. Os cativos necessitavam da palavra de conforto e de ajuda do bondoso peregrino, que conforme escreveu o informante acima citado, distribuía apreciáveis quantias às famílias pobres, naturalmente obtidas nas casas dos mais ricos, daqueles senhores de engenhos e negociantes mais generosos. (5).



Convém notar que, na zona de Itapicuru, existiu um quilombo que durante muito tempo deu trabalho às autoridades e do qual certamente Antônio Conselheiro ouvira falar, assim como na região de Tucano, um dos locais que forneceu grande número de adeptos ao Conselheiro. José Calasans, cujo notável trabalho estamos acompanhando, escreve ainda que

Outros elementos poderão ser apresentados no mesmo sentido, isto é, comprobatório do papel desempenhado pelo Conselheiro, junto à população escrava no Nordeste baiano, que ele mais de perto conheceu e assistiu. Num interessante artigo publicado no Jornal de Notícias, da Bahia, edição de 5 de março de 1897, o doutor Cícero Dantas, barão de Geremoabo, proprietário no município de Itapicuru, e prestigioso chefe político, contou que com a abolição da escravatura aumentara o número de acompanhantes do ‘Bom Jesus Conselheiro’. "O povo em massa", declarou Geremoabo, "abandonava suas casas e seus afazeres para acompanhá-lo. Com a abolição do elemento servil ainda mais se faziam sentir os efeitos da propaganda pela falta de braços livre no trabalho. A população vivia como que em delírio ou êxtase e tudo quanto fosse útil ao inculcado enviado de Deus facilmente não prestava. (...) Assim foi escasseando o trabalho agrícola e é atualmente com dificuldade que uma ou outra propriedade funciona, embora sem precisa regularidade". (6)



O mesmo autor, refutando as razões do barão de Geremoabo, afirma que talvez esse chefe conservador tivesse confundido a causa com o efeito, pois não teria sido

Antônio Vicente quem afastou das propriedades agrícolas os negros libertados pela Lei de 1888. O Santo Conselheiro outra coisa não teria feito senão recebê-los e, possivelmente, ampará-los, quando eles próprios, sequiosos de desfrutarem a liberdade alcançada, fugiram dos antigos locais de cativeiro. (...) Não foram poucos os ex-escravos recebidos na comunidade conselheirista. Antonio de Cerqueira Galo, morador em Tucano, localidade baiana donde saíram inúmeros seguidores do Conselheiro, numa carta enviada ao barão de Geremoabo, dando notícias dos habitantes de Canudos, destacou que o contingente de ex-escravos formava a maioria. "Lá os vultos que estão disinvolvendo (sic) a revolta" escreveu o missivista, "é o mesmo Conselheiro com os seus sequazes d’entre estes soldados e desertores de diversos Estados e o povo 13 de maio que é a maior parte." (7)



O depoimento altamente esclarecedor de José Calasans, descobrindo novas fontes de informações que recolocam não apenas o pensamento, mas também, a ação de Antônio Conselheiro em relação ao sistema escravista e suas contradições estruturais, é plenamente corroborado pelas próprias palavras do líder de Canudos no manuscrito que sobreviveu à chacina (sabemos que ele redigiu ou ditou outros que certamente foram destruídos) intitulado Prédicas aos canudenses e um discurso sobre a República (8).

A obra foi encontrada em uma velha caixa, no santuário, por João Pondé, médico baiano que se encontrava na expedição. Afrânio Peixoto recebeu-o de quem o encontrou e fez a doação do mesmo a Euclides da Cunha cuja reação sobre o seu texto ninguém sabe. O certo é que o subestimou, pois refere-se a outros manuscritos encontrados nos escombros, mas silencia sobre este (9).

Dizia Antônio Vicente Mendes Maciel nesse manuscrito, referindo-se à escravidão e à abolição do trabalho escravo:

É preciso, porém, que não deixe no silêncio a origem do ódio que tendes à família imperial, porque sua alteza a senhora Dona Isabel libertou a escravidão, que não fez mais do que cumprir a ordem do céu; porque era chegado o tempo marcado por Deus para libertar esse povo de semelhante estado, o mais degradante a que podia ser reduzido o ser humano; a força moral (que tanto a orna), com que ela procedeu à satisfação da vontade divina, constitui a confiança que tem em Deus para libertar esse povo, (mas) não era suficiente para soar o brado da indignação que arrancou o ódio da maior parte daqueles a quem o povo estava sujeito. Mas os homens não penetram a inspiração divina que moveu o coração da digna e virtuosa princesa para dar semelhante passo; não obstante ela dispor do seu poder, todavia era de supor que meditaria, antes de o pôr em execução, acerca da perseguição que havia de sofrer, tanto assim que na noite que tinha de assinar o decreto da liberdade, um ministro lhe disse: Sua Alteza assina o decreto da liberdade, olhe a República como ameaça; ao que ela não ligou a mínima importância, assinando o decreto com aquela disposição que tanto a caracteriza. A sua disposição, porém, é prova que atesta do modo mais significativo que era a vontade de Deus que libertasse esse povo. Os homens ficaram assombrados com o belo acontecimento, porque já sentiam o braço que sustentava o seu tesouro, correspondendo com a ingratidão e a irresponsabilidade ao trabalho que desse povo recebiam. Quantos morriam debaixo dos açoites por algumas faltas que cometiam; alguns quase nus, oprimidos da fome e de pesado trabalho. E que direi eu daqueles que não levavam com paciência tanta crueldade e no furor do excesso de sua infeliz estrela se matavam? Chegou enfim o dia em que Deus tinha de pôr termo a tanta crueldade, movido de compaixão a favor do seu povo e ordena para que se liberte de tão penosa escravidão. (10) .



Pelo exposto, podemos concluir que Antônio Conselheiro não foi aquele personagem bronco ou louco como se costuma afirmar nos ensaios tradicionais sobre Canudos, mas um agente de dinamização social no período que vai da escravidão e posteriormente de 13 de maio até a luta e a destruição do arraial de Belo Monte. Na primeira fase, reunia os escravos e com eles falava mediante um código de linguagem ligado à simbologia religiosa para denunciar a sua situação e sugerir a necessidade de se libertarem, com isto atraindo, numa região de pequena densidade demográfica na época, cerca de dois mil escravos para ouvirem suas prédicas, segundo testemunha da época.

Em 1897, escreve em um dos seus muitos manuscritos a aprovação que deu à abolição e procura explicar, a seu modo, porque a princesa Isabel estava apoiada nas forças divinas ao assinar a Lei de 13 de Maio, defendendo a necessidade de se acabar com a escravidão que para ele era uma situação que chegava aos limites da degradação humana.

Finalmente, quando os ex-escravos fugiam das terras que simbolizavam para eles a escravidão, Antônio Conselheiro abre-lhes um espaço físico, social e humano no qual eles se integraram, participando ativamente como agentes históricos da comunidade de Canudos até o seu final. Fizeram parte de seu componente militar, religioso e político. Lutaram juntamente com o líder que os reintegrou na sua condição humana. E, antes, quando eram ainda escravos, acenava-lhes com a possibilidade da liberdade, com eles reunindo-se e esclarecendo a possibilidade de mudança social capaz de libertá-los, palavra que era transmitida de boca em boca.

Queremos crer, por tudo isto, que Antônio Conselheiro foi um abolicionista plebeu, atuando na área rural do Nordeste, em uma região em que os líderes tradicionais do abolicionismo nunca atuaram dinamicamente, com uma mensagem dirigida às populações oprimidas e à massa dos escravos descontentes, muitos dos quais, possivelmente, saíam dos quilombos para ouvi-lo.

Notas

1. Quem fez o exame craniométrico de Antônio Conselheiro foram os médicos Nina Rodrigues e Sá de Oliveira, tendo escrito o primeiro que "o crânio de Antônio Conselheiro não apresentava nenhuma anomalia que denunciasse traços de degenerescência: é um crânio de mestiço, onde se associam caracteres antropológicos de raças diferentes". Apesar desta conclusão, Nina Rodrigues não teve dúvidas de escrever que "em Canudos representa de elemento passivo o jagunço que corrigindo a loucura mística de Antônio Conselheiro e dando-lhe umas tinturas das questões políticas e sociais do momento, criou, tornou plausível e deu objeto ao conteúdo do delírio, tornando-o capaz de fazer vibrar a nota étnica dos instintos guerreiros, atávicos, mal extintos ou apenas sofreados no meio social híbrido dos nossos sertões de que o louco como os contagionados são fiéis e legítimas criações. Alí se chocavam de fato, admiravelmente realizadas, todas as condições para uma constituição epidêmica da loucura". Ver RODRIGUES, Nina. As coletividades anormais. São Paulo: Civilização Brasileira, 1939. p.42.

2. MUNIZ, Edmundo. Canudos: a guerra social. Rio de Janeiro: Elo, 1987.

3. Citado por MACEDO, N. Antônio Conselheiro: a morte em vida do beato de Canudos. Rio de Janeiro: Record, 1969. p.42.

4. Ver PINTO, P. A. Os Sertões de Euclides da Cunha: vocabulário e notas lexográficas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1930. Para se ter uma posição revisionada do pensamento de Euclides da Cunha em relação à escravidão, ao negro e ao Abolicionismo, veja-se MOURA, Clóvis. Introdução ao pensamento de Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, s. d. p.67-94.

5. CALASANS, J. Antônio Conselheiro e a escravidão. Salvador: s. n., s. d.

6. Idem, ibid.

7. Idem, ibid.

8. CONSELHEIRO, Antônio. Prédicas aos canudenses e um discurso sobre a República. Belo Monte (província da Bahia), 12 jan. 1897 apud NOGUEIRA, A. Antônio Conselheiro e Canudos. São Paulo: Editora Nacional, 1974.

9. Cf. CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1933. p.171. Euclides da Cunha refere-se a outros manuscritos encontrados nos escombros, escrevendo ao dar a fonte da transcrição de algumas profecias de Antônio Conselheiro: "Os dizeres dessa profecia estavam escritos em grande número de pequenos cadernos encontrados em Canudos. Os que aí vão, foram, lá mesmo, copiados de um deles pertencente ao secretário do comandante em chefe da campanha".

10. Antônio Conselheiro, apud CUNHA, E., op. cit., p.47.

Clóvis Moura é sociólogo e escritor, professor examinador de pós-graduação da Universidade de São Paulo, autor de vários livros entre eles Introdução ao pensamento de Euclides da Cunha.

Revista Olho da Historia

Um comentário:

Alejandro disse...

Parabens pelo seu blog!
Gosto muito de historia e pude ver artigos interessantes.
Ja o favoritei,para poder ler-lo quando quiser.
E esta bem atualizado ainda!
Abraço!