Selvagens da bola
Na Copa de 1938, a seleção brasileira causou surpresa e críticas na Europa com seu futebol “romântico e primitivo”
Arlei Sander Damo
“Eis os brasileiros: com seu café e seus violões!”, anunciou o jornal Petit Parisien vinte dias antes do início da Copa do Mundo de 1938. Não chega a ser uma manchete depreciativa, mas o destaque dado ao café e aos violões indica certo desdém pelo que realmente importava no caso: o nosso futebol.
Quatro anos após fazer feio na Copa anterior – quando foi desclassificada pela Espanha logo na estréia –, a seleção brasileira não inspirava grande temor nos times europeus. Mas o pouco caso com que os franceses nos receberam não era apenas fruto de ignorância sobre o talento dos jogadores brasileiros. Na época, o julgamento do mérito esportivo de cada país estava contaminado por outras influências. Nem esporte, nem negócios (como acontece nos campeonatos atuais) – a Copa de 1938 pegou a Europa às vésperas de uma nova Guerra Mundial, que teria no nacionalismo e na xenofobia seus principais combustíveis.
Difundia-se a crença de que a superioridade nos esportes refletia a supremacia racial de algumas nações. O torneio de 1934, organizado e vencido pelos italianos, as Olimpíadas sediadas na Alemanha nazista em 1936 e aquela Copa na França refletiam essas idéias. As atitudes dos atletas, individuais ou coletivas, eram projetadas sobre o caráter, o espírito e a índole de todo o povo que representavam. Por isso, embora a atuação em campo fosse a principal referência, os comentários dos cronistas franceses na imprensa a respeito dos jogadores brasileiros iam além da performance futebolística.
O nacionalismo, por sinal, fazia escola do outro lado do Atlântico. No Brasil, havia grande expectativa em relação ao desempenho da seleção, e o governo se aproveitou disso. O presidente Getulio Vargas (1882-1954) estava de olho na recuperação de sua popularidade, em baixa após o golpe de 1937 que instituiu a ditadura do Estado Novo. Pessoalmente, ele não era muito chegado a esportes, mas percebeu na ocasião uma boa chance de disseminar um discurso patriótico capaz de unir a nação.
Esforçava-se para acompanhar os jogos pelo rádio, e mobilizou pessoas de confiança para acompanhar e promover os preparativos e o desenrolar da Copa. O ministro da Educação, Gustavo Capanema (1900-1985), enviou telegramas incentivando os jogadores. Alzira Vargas (1914-1992), filha mais moça do presidente, aceitou o convite da Confederação Brasileira de Desportos (CBD, atual CBF) para ser a “madrinha da seleção”, viajando com a equipe para Paris. O embaixador do Brasil na França, Souza Dantas (1876-1954), assistiu pessoalmente aos jogos em Strasbourg e Bordeaux.
Desde a chegada, as atenções dos franceses recaíram sobre Domingos da Guia (1912-2000), chamado por eles de “famoso defensor negro”, e Leônidas da Silva (1913-2004), “o maravilhoso atacante conhecido como ‘Diamante Negro’”. Mas nossas chances no torneio sequer eram cogitadas: “A Itália é favorita... os húngaros, azarões e os brasileiros, desconhecidos”, noticiou o tablóide Paris-Soir dois dias antes do início da competição (sem saber, antecipando exatamente aqueles que seriam os três primeiros colocados). Não causaria surpresa, segundo um cronista, se o Brasil fizesse contra a Polônia seu único jogo na Copa, pois o regulamento decretava eliminação em caso de derrota.
Entre os próprios jogadores pairavam dúvidas sobre o sucesso da empreitada. Patesko (1910-1988), do Botafogo, declarou que o fato de a seleção verde-amarela continuar jogando com cinco atacantes, três meias e apenas dois defensores era um indício de que o país ainda não havia assimilado as novas tendências do futebol. O esquema tático mais moderno, criado pelos ingleses na década de 1920, era o chamado WM, letras que representavam a disposição dos jogadores em campo – três defensores e dois meio-campistas atrasados (formando o M), mais dois meio-campistas adiantados e três atacantes (formando o W). Esquadrinhando cada espaço do campo, a tática propiciaria o total controle do jogo, mas no Brasil ela não vingara. Desdenhar este princípio era como remar contra a racionalidade que se tornara a tônica do futebol.
Apesar da descrença geral, a estréia contra os poloneses, em Strasbourg, foi espetacular: empate em 4 a 4 no tempo normal, depois de o Brasil virar o primeiro tempo vencendo por 3 a 1, e uma vitória dramática por 2 a 1 no final dos 30 minutos da prorrogação, jogada sob chuva intensa. Os brasileiros impressionaram pela habilidade individual e pela impetuosidade do seu ataque, com destaque para a capacidade de improviso do “felino negro”, Leônidas da Silva. A imprensa celebrou o feito: “Grandes artistas e perfeitos tecnicamente”, foi uma das manchetes do Petit Parisien. O jornal, no entanto, também criticava a fragilidade da defesa brasileira.
A preferência pelo jogo individual em detrimento do coletivo era um problema que, segundo a crônica, cedo ou tarde seria fatal: “Os brasileiros, vencedores dos poloneses, são malabaristas da bola mais do que uma equipe de futebol”, foi a manchete do Le Miroir des Sports. O jornal descreve Leônidas como “diabo preto”, “acrobata”, “dado a fazer piruetas”, “a plantar bananeira”, “a saltar como carpa”, entre outras metáforas pitorescas. Imagens que podiam maravilhar o público, mas não se recomendava que fossem levadas a sério. Nas palavras dos cronistas franceses, os brasileiros jogavam um futebol “mais intuitivo do que inteligente”.
Na véspera do nosso segundo jogo, contra a Tchecoslováquia, o jornal L’Auto usou outro termo para classificar os brasileiros: “românticos”. Nossos adversários, ao contrário, primavam pela racionalidade. E pelo tom do jornal, fica evidente qual dessas características era a mais admirável: “Entre os brasileiros, tudo não passa de inspiração, de criação imprevista. Entre os tchecoslovacos, o sistema é que é sua honra, o desenvolvimento racional, previsto, matemático das manobras de conjunto”. O texto fazia questão de lembrar que os tchecos representavam a Europa Central; ainda assim, pertenciam ao continente da cultura e da civilização. Os sul-americanos, por sua vez, eram associados à natureza, a um mundo selvagem.
“Cubanos... Brasileiros... será amanhã o triunfo do futebol improvisado?” Com esta pergunta provocativa, o L’Auto anunciava a segunda fase da Copa. Os cubanos trataram de colocar as coisas em seus devidos lugares: depois de vencerem surpreendentemente a Romênia, acabaram massacrados pela organizada Suécia por 8 a 0. Mas o improviso brasileiro continuou a dar samba. Em Bordeaux, empatamos em 1 a 1 com a Tchecoslováquia. O Petit Parisien, que criticara a defesa brasileira contra a Polônia, desta vez a elogiou.. Com o jogo empatado no fim da prorrogação, as regras indicavam a necessidade de uma nova partida, dois dias depois.
O vencedor desta disputa teria que viajar quase um dia de trem até Marseille para disputar na quinta-feira, contra a temida Itália, uma vaga na final. A comissão técnica brasileira tomou uma decisão ousada: na terça, ao meio-dia, embarcou o time titular para Marseille, deixando apenas o goleiro Walter e o centroavante Leônidas para jogar contra a Tchecoslováquia, ao lado dos reservas. Como não eram permitidas substituições, a estratégia foi bem-sucedida, pois os tchecos, cansados, sucumbiram no segundo tempo e o Brasil venceu o jogo por 2 a 1, de virada.
Para a semifinal, o Brasil tinha um grande desfalque. Leônidas, já combalido pelos pontapés do segundo jogo, se exaurira no terceiro e não teria condições de enfrentar a Itália. O técnico italiano, Vittorio Pozzo (1886-1968), imaginou que Leônidas estivesse sendo poupado para a final e criticou a empáfia dos brasileiros. Sem seu principal jogador, o Brasil foi um time comum, e depois de um primeiro tempo sofrível de parte a parte, acabou liquidado nos 15 minutos iniciais da segunda etapa: 2 a 1.
Na viagem de retorno a Paris depois de derrotar os brasileiros, o técnico italiano deixou escapar que as equipes se temiam mutuamente. Era uma confissão que contrastava com as bravatas ditas assim que acabou o jogo: entrevistado pelo Petit Parisien, Pozzo afirmara que os brasileiros jogavam “com seus meios naturais, que são grandes, mas sem nenhum método”. E ia além: “Eles têm a necessidade de serem educados, dirigidos”, pois, como a maioria dos sul-americanos, faltava aos brasileiros aprender a jogar coletivamente, disciplinadamente. Em resumo: eram “primitivos em matéria de futebol”.
Longe de ser uma opinião isolada, as palavras de Pozzo traduziam uma espécie de consenso entre os cronistas franceses. A excessiva troca de passes, não raro laterais, sempre curtos e rentes ao solo, tornariam o ataque brasileiro muito lento, permitindo o bom posicionamento das equipes adversárias. Alguns cronistas chegaram a classificar os brasileiros de preguiçosos, fantasiosos e esnobes.
Um fenômeno curioso foi que os franceses, na contramão dessas condenações da imprensa, torceram fervorosamente pelo Brasil. Lotaram os estádios e apoiaram a seleção, como em Marseille, ocasião em que o árbitro foi vaiado por ter marcado um pênalti que liquidou com as chances do Brasil. Acompanhando o relato dos periódicos locais, é razoável crer que o público apreciava o virtuosismo de Leônidas e companhia. Talvez identificasse no estilo brasileiro um certo “exotismo”. Na época, a classificação de “artistas da bola” não tinha a conotação positiva que lhe damos hoje. Acreditava-se que o futebol devia ser jogado para vencer, o que exigiria procedimentos metódicos e disciplinados. Não por acaso, a Itália foi aclamada pela imprensa do princípio ao fim: embora pouco vistoso, seu futebol era o mais eficiente. O país sagrou-se campeão sem maiores dificuldades ao vencer na final a Hungria por 4 a 2. Os jornais parisienses não pouparam elogios à conquista, e até o técnico derrotado considerou justa a vitória italiana, dedicada a seu ditador fascista Benito Mussolini (1883-1945).
Já os “primitivos” brasileiros retornaram a Bordeaux após perderem a semifinal, e lá venceram a Suécia por 4 a 2, conquistando o terceiro lugar na Copa do Mundo. Há setenta anos, o estilo original de jogar dos atletas brasileiros encheu os olhos do mundo pela primeira vez. Apesar das críticas e dos desmerecimentos, fundávamos uma nova concepção estética do jogo, que atribui importância maior à beleza dos lances, reflexo da alta qualidade técnica dos jogadores. Com o passar dos anos e a conquista da supremacia mundial, nosso “futebol- espetáculo” não só mostrou-se competitivo, como se tornou a maior referência dos amantes do esporte.
ARLEI SANDER DAMO é professor de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autor de Do dom à profissão – a formação de futebolista no Brasil e na França (HUCITEC, 2007).
Saiba Mais - Bibliografia:
GUEDES, Simoni. “De Criollos e Capoeiras: notas sobre futebol e identidade nacional na Argentina e no Brasil”. Exposição realizada no XXVI Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu (MG), 22 a 26 de outubro de 2002.
LEITE LOPES, José S. “A vitória do futebol que incorporou a pelada”. In: Revista USP, nº22, 1994.
NEGREIROS, Plínio. “O futebol e identidade nacional: o caso da Copa de 1938”. In: Lecturas: Educación Física y Deportes. Buenos Aires, ano 3, nº 10, maio de 1998. (Disponível em: http://www.efdeportes.com/efd10/copa38.htm)
Revista de Historia da Biblioteca Nacional