quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Selvagens da bola


Selvagens da bola
Na Copa de 1938, a seleção brasileira causou surpresa e críticas na Europa com seu futebol “romântico e primitivo”
Arlei Sander Damo

“Eis os brasileiros: com seu café e seus violões!”, anunciou o jornal Petit Parisien vinte dias antes do início da Copa do Mundo de 1938. Não chega a ser uma manchete depreciativa, mas o destaque dado ao café e aos violões indica certo desdém pelo que realmente importava no caso: o nosso futebol.

Quatro anos após fazer feio na Copa anterior – quando foi desclassificada pela Espanha logo na estréia –, a seleção brasileira não inspirava grande temor nos times europeus. Mas o pouco caso com que os franceses nos receberam não era apenas fruto de ignorância sobre o talento dos jogadores brasileiros. Na época, o julgamento do mérito esportivo de cada país estava contaminado por outras influências. Nem esporte, nem negócios (como acontece nos campeonatos atuais) – a Copa de 1938 pegou a Europa às vésperas de uma nova Guerra Mundial, que teria no nacionalismo e na xenofobia seus principais combustíveis.

Difundia-se a crença de que a superioridade nos esportes refletia a supremacia racial de algumas nações. O torneio de 1934, organizado e vencido pelos italianos, as Olimpíadas sediadas na Alemanha nazista em 1936 e aquela Copa na França refletiam essas idéias. As atitudes dos atletas, individuais ou coletivas, eram projetadas sobre o caráter, o espírito e a índole de todo o povo que representavam. Por isso, embora a atuação em campo fosse a principal referência, os comentários dos cronistas franceses na imprensa a respeito dos jogadores brasileiros iam além da performance futebolística.

O nacionalismo, por sinal, fazia escola do outro lado do Atlântico. No Brasil, havia grande expectativa em relação ao desempenho da seleção, e o governo se aproveitou disso. O presidente Getulio Vargas (1882-1954) estava de olho na recuperação de sua popularidade, em baixa após o golpe de 1937 que instituiu a ditadura do Estado Novo. Pessoalmente, ele não era muito chegado a esportes, mas percebeu na ocasião uma boa chance de disseminar um discurso patriótico capaz de unir a nação.

Esforçava-se para acompanhar os jogos pelo rádio, e mobilizou pessoas de confiança para acompanhar e promover os preparativos e o desenrolar da Copa. O ministro da Educação, Gustavo Capanema (1900-1985), enviou telegramas incentivando os jogadores. Alzira Vargas (1914-1992), filha mais moça do presidente, aceitou o convite da Confederação Brasileira de Desportos (CBD, atual CBF) para ser a “madrinha da seleção”, viajando com a equipe para Paris. O embaixador do Brasil na França, Souza Dantas (1876-1954), assistiu pessoalmente aos jogos em Strasbourg e Bordeaux.

Desde a chegada, as atenções dos franceses recaíram sobre Domingos da Guia (1912-2000), chamado por eles de “famoso defensor negro”, e Leônidas da Silva (1913-2004), “o maravilhoso atacante conhecido como ‘Diamante Negro’”. Mas nossas chances no torneio sequer eram cogitadas: “A Itália é favorita... os húngaros, azarões e os brasileiros, desconhecidos”, noticiou o tablóide Paris-Soir dois dias antes do início da competição (sem saber, antecipando exatamente aqueles que seriam os três primeiros colocados). Não causaria surpresa, segundo um cronista, se o Brasil fizesse contra a Polônia seu único jogo na Copa, pois o regulamento decretava eliminação em caso de derrota.

Entre os próprios jogadores pairavam dúvidas sobre o sucesso da empreitada. Patesko (1910-1988), do Botafogo, declarou que o fato de a seleção verde-amarela continuar jogando com cinco atacantes, três meias e apenas dois defensores era um indício de que o país ainda não havia assimilado as novas tendências do futebol. O esquema tático mais moderno, criado pelos ingleses na década de 1920, era o chamado WM, letras que representavam a disposição dos jogadores em campo – três defensores e dois meio-campistas atrasados (formando o M), mais dois meio-campistas adiantados e três atacantes (formando o W). Esquadrinhando cada espaço do campo, a tática propiciaria o total controle do jogo, mas no Brasil ela não vingara. Desdenhar este princípio era como remar contra a racionalidade que se tornara a tônica do futebol.

Apesar da descrença geral, a estréia contra os poloneses, em Strasbourg, foi espetacular: empate em 4 a 4 no tempo normal, depois de o Brasil virar o primeiro tempo vencendo por 3 a 1, e uma vitória dramática por 2 a 1 no final dos 30 minutos da prorrogação, jogada sob chuva intensa. Os brasileiros impressionaram pela habilidade individual e pela impetuosidade do seu ataque, com destaque para a capacidade de improviso do “felino negro”, Leônidas da Silva. A imprensa celebrou o feito: “Grandes artistas e perfeitos tecnicamente”, foi uma das manchetes do Petit Parisien. O jornal, no entanto, também criticava a fragilidade da defesa brasileira.

A preferência pelo jogo individual em detrimento do coletivo era um problema que, segundo a crônica, cedo ou tarde seria fatal: “Os brasileiros, vencedores dos poloneses, são malabaristas da bola mais do que uma equipe de futebol”, foi a manchete do Le Miroir des Sports. O jornal descreve Leônidas como “diabo preto”, “acrobata”, “dado a fazer piruetas”, “a plantar bananeira”, “a saltar como carpa”, entre outras metáforas pitorescas. Imagens que podiam maravilhar o público, mas não se recomendava que fossem levadas a sério. Nas palavras dos cronistas franceses, os brasileiros jogavam um futebol “mais intuitivo do que inteligente”.

Na véspera do nosso segundo jogo, contra a Tchecoslováquia, o jornal L’Auto usou outro termo para classificar os brasileiros: “românticos”. Nossos adversários, ao contrário, primavam pela racionalidade. E pelo tom do jornal, fica evidente qual dessas características era a mais admirável: “Entre os brasileiros, tudo não passa de inspiração, de criação imprevista. Entre os tchecoslovacos, o sistema é que é sua honra, o desenvolvimento racional, previsto, matemático das manobras de conjunto”. O texto fazia questão de lembrar que os tchecos representavam a Europa Central; ainda assim, pertenciam ao continente da cultura e da civilização. Os sul-americanos, por sua vez, eram associados à natureza, a um mundo selvagem.

“Cubanos... Brasileiros... será amanhã o triunfo do futebol improvisado?” Com esta pergunta provocativa, o L’Auto anunciava a segunda fase da Copa. Os cubanos trataram de colocar as coisas em seus devidos lugares: depois de vencerem surpreendentemente a Romênia, acabaram massacrados pela organizada Suécia por 8 a 0. Mas o improviso brasileiro continuou a dar samba. Em Bordeaux, empatamos em 1 a 1 com a Tchecoslováquia. O Petit Parisien, que criticara a defesa brasileira contra a Polônia, desta vez a elogiou.. Com o jogo empatado no fim da prorrogação, as regras indicavam a necessidade de uma nova partida, dois dias depois.

O vencedor desta disputa teria que viajar quase um dia de trem até Marseille para disputar na quinta-feira, contra a temida Itália, uma vaga na final. A comissão técnica brasileira tomou uma decisão ousada: na terça, ao meio-dia, embarcou o time titular para Marseille, deixando apenas o goleiro Walter e o centroavante Leônidas para jogar contra a Tchecoslováquia, ao lado dos reservas. Como não eram permitidas substituições, a estratégia foi bem-sucedida, pois os tchecos, cansados, sucumbiram no segundo tempo e o Brasil venceu o jogo por 2 a 1, de virada.

Para a semifinal, o Brasil tinha um grande desfalque. Leônidas, já combalido pelos pontapés do segundo jogo, se exaurira no terceiro e não teria condições de enfrentar a Itália. O técnico italiano, Vittorio Pozzo (1886-1968), imaginou que Leônidas estivesse sendo poupado para a final e criticou a empáfia dos brasileiros. Sem seu principal jogador, o Brasil foi um time comum, e depois de um primeiro tempo sofrível de parte a parte, acabou liquidado nos 15 minutos iniciais da segunda etapa: 2 a 1.

Na viagem de retorno a Paris depois de derrotar os brasileiros, o técnico italiano deixou escapar que as equipes se temiam mutuamente. Era uma confissão que contrastava com as bravatas ditas assim que acabou o jogo: entrevistado pelo Petit Parisien, Pozzo afirmara que os brasileiros jogavam “com seus meios naturais, que são grandes, mas sem nenhum método”. E ia além: “Eles têm a necessidade de serem educados, dirigidos”, pois, como a maioria dos sul-americanos, faltava aos brasileiros aprender a jogar coletivamente, disciplinadamente. Em resumo: eram “primitivos em matéria de futebol”.

Longe de ser uma opinião isolada, as palavras de Pozzo traduziam uma espécie de consenso entre os cronistas franceses. A excessiva troca de passes, não raro laterais, sempre curtos e rentes ao solo, tornariam o ataque brasileiro muito lento, permitindo o bom posicionamento das equipes adversárias. Alguns cronistas chegaram a classificar os brasileiros de preguiçosos, fantasiosos e esnobes.

Um fenômeno curioso foi que os franceses, na contramão dessas condenações da imprensa, torceram fervorosamente pelo Brasil. Lotaram os estádios e apoiaram a seleção, como em Marseille, ocasião em que o árbitro foi vaiado por ter marcado um pênalti que liquidou com as chances do Brasil. Acompanhando o relato dos periódicos locais, é razoável crer que o público apreciava o virtuosismo de Leônidas e companhia. Talvez identificasse no estilo brasileiro um certo “exotismo”. Na época, a classificação de “artistas da bola” não tinha a conotação positiva que lhe damos hoje. Acreditava-se que o futebol devia ser jogado para vencer, o que exigiria procedimentos metódicos e disciplinados. Não por acaso, a Itália foi aclamada pela imprensa do princípio ao fim: embora pouco vistoso, seu futebol era o mais eficiente. O país sagrou-se campeão sem maiores dificuldades ao vencer na final a Hungria por 4 a 2. Os jornais parisienses não pouparam elogios à conquista, e até o técnico derrotado considerou justa a vitória italiana, dedicada a seu ditador fascista Benito Mussolini (1883-1945).

Já os “primitivos” brasileiros retornaram a Bordeaux após perderem a semifinal, e lá venceram a Suécia por 4 a 2, conquistando o terceiro lugar na Copa do Mundo. Há setenta anos, o estilo original de jogar dos atletas brasileiros encheu os olhos do mundo pela primeira vez. Apesar das críticas e dos desmerecimentos, fundávamos uma nova concepção estética do jogo, que atribui importância maior à beleza dos lances, reflexo da alta qualidade técnica dos jogadores. Com o passar dos anos e a conquista da supremacia mundial, nosso “futebol- espetáculo” não só mostrou-se competitivo, como se tornou a maior referência dos amantes do esporte.

ARLEI SANDER DAMO é professor de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autor de Do dom à profissão – a formação de futebolista no Brasil e na França (HUCITEC, 2007).

Saiba Mais - Bibliografia:

GUEDES, Simoni. “De Criollos e Capoeiras: notas sobre futebol e identidade nacional na Argentina e no Brasil”. Exposição realizada no XXVI Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu (MG), 22 a 26 de outubro de 2002.

LEITE LOPES, José S. “A vitória do futebol que incorporou a pelada”. In: Revista USP, nº22, 1994.

NEGREIROS, Plínio. “O futebol e identidade nacional: o caso da Copa de 1938”. In: Lecturas: Educación Física y Deportes. Buenos Aires, ano 3, nº 10, maio de 1998. (Disponível em: http://www.efdeportes.com/efd10/copa38.htm)

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Quilombos - Os filhos da liberdade


Livres da escravidão e espalhados pelo sertão brasileiro em mais de 500 comunidades, os quilombos sobrevivem

IMMACULADA LOPEZ

Para a maioria das pessoas, os quilombos são apenas um capítulo da história do Brasil. Um episódio da vida nacional enterrado para sempre no passado. Não é verdade. Os quilombos ainda fazem parte da vida brasileira. Bisnetos e tataranetos de escravos negros vivem, até hoje, em comunidades criadas por seus antepassados e guardam um tesouro cultural inestimável. Espalhadas pelo interior de todo o país, 511 comunidades já foram mapeadas pelo governo federal como remanescentes de quilombos, e acredita-se que haja, pelo menos, mais cem.

Apesar de sua longa história e modo próprio de viver, esses grupos não pararam no tempo, nem estão isolados dos problemas que afligem o resto do país. Neste momento, sua maior preocupação é continuar na terra onde moram e trabalham e preservá-la para seus filhos e netos. Felizmente, a Constituição de 1988 lhes garante o direito à propriedade das áreas tradicionalmente ocupadas. Mas, por enquanto, apenas as comunidades paraenses de Boa Vista, Água Fria e Pacoval foram beneficiadas por essa decisão. Para o final do ano, foi anunciada a titulação de outra área na mesma região, desta vez englobando sete comunidades, em 80 mil hectares. No total, são 21 povoados ao longo do rio Trombetas, no norte do Pará, que em 1989 formaram a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná para exigir o reconhecimento de suas terras. Essas comunidades abrigam mais de 6 mil descendentes de escravos que durante o século 19 fugiram das fazendas de gado e de cacau do baixo Amazonas e se fixaram na região encachoeirada do rio Trombetas.

De norte a sul do país, cada comunidade apresenta uma história e costumes próprios, mas não faltam traços comuns, que as identificam como remanescentes de quilombos. E como defini-los? A Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, adota a definição da Associação Brasileira de Antropologia: "Remanescente de quilombo é toda comunidade negra rural que agrupe descendentes de escravos vivendo da cultura de subsistência e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado".


Por trás da fantasia

Com essa descrição, muitos logo imaginam uma "mini-África" no interior do Brasil, onde os habitantes tocam tambores e usam roupas coloridas. "Isso é uma fantasia do pessoal da cidade", esclarece Maria Sueli Berlanga, religiosa que há 12 anos acompanha as comunidades do vale do Ribeira, em São Paulo. A cultura secular dos remanescentes, diz ela, se revela de outras formas, "seja na maneira solidária de se relacionar, seja na alegria de viver".

"Seus moradores têm uma visão própria de mundo", acrescenta a antropóloga Lúcia Andrade, da Comissão Pró-Índio, que desde 89 vem assessorando as comunidades do Pará. Há preponderância negra (apesar de, na região norte, existir uma mistura histórica com os índios), e são fortes as relações de parentesco (são freqüentes os casamentos entre primos). Eles vivem da agricultura, caça e pesca de subsistência, usam comunitariamente a terra, em harmonia com o meio ambiente, e têm como legado comum a descendência de escravos que criaram uma comunidade alternativa para viver. E nem sempre estes eram escravos fugidos. Algumas terras foram compradas por escravos alforriados; outras, abandonadas pelos senhores que as deixavam para trás juntamente com os escravos.

De qualquer forma, a maioria dos quilombos surgiu em locais remotos - vários de acesso ainda hoje difícil. É o caso de São Pedro, uma das 51 comunidades remanescentes do vale do Ribeira, quase na divisa de São Paulo com o Paraná, com 3,5 mil hectares.

Hoje, o caminho para São Pedro margeia o rio Ribeira do Iguape e leva a uma balsa de madeira, que cruza a correnteza até o outro lado, onde uma estrada de terra entra na mata. Por essa estrada de quase 10 quilômetros, dona Benedita Furquim lembra ter carregado nas costas os blocos para erguer a atual escola, a primeira construção de alvenaria da vila. Por caminho parecido, provavelmente uma trilha aberta por animais, seu bisavô, Bernardo Furquim de Campos, chegou fugido das Minas Gerais. Ao passar por Eldorado, juntou-se a outro homem e duas mulheres, iniciando o que viria a ser uma grande família. Aos 84 anos, dona Benedita é a testemunha mais antiga dessa saga, tantas vezes recontada para os mais novos.

Nascida e criada nessas terras, a bisneta de Bernardo mora em uma casa de pau-a-pique, como ainda é metade das casas da vila. Com a construção da escola (há 17 anos) e a chegada da energia elétrica (há dois), as casas foram se concentrando na vila atual. No alto do campo gramado, fica a capela de São Pedro, padroeiro lembrado anualmente com uma grande festa, com forró, porco e frango assado, mandioca, bolo e batata-doce.

Todos se conhecem desde pequenos. A cada dia se cumprimentam com alegria e, em alguns momentos, se tratam com um respeito quase cerimonioso. As mulheres cuidam do serviço da casa, capinam e plantam. Cada família tem sua própria plantação, mas na hora de fazer o roçado ou a colheita, os homens se ajudam em mutirão. O arroz, feijão, milho ou mandioca colhidos ficam com o dono da roça. Com a inauguração da associação de moradores, foi criada uma plantação coletiva e se comprou um caminhão. Agora, não é mais necessário carregar os mortos em macas de bambu até a balsa, para levá-los ao cemitério mais próximo, e os mais moços já podem seguir os estudos na cidade vizinha. Mesmo assim, precisam sair antes do sol e só voltam no meio da tarde, quando já não podem ajudar os pais na roça. Mas estes fazem questão de que os filhos estudem.

Surpresas

Os jovens estudantes vão trazer da escola novos elementos que certamente enriquecerão o estoque cultural guardado pelos remanescentes, "muito rico", segundo Dulce Maria Pereira, presidente da Fundação Cultural Palmares. Os costumes trazidos da África se misturaram ao mundo branco e indígena, criando uma cultura diversa. No norte de Sergipe, por exemplo, a comunidade de Mocambo, que dança o samba de coco, reza em latim na festa da padroeira de Santa Cruz.

Tradições européias e africanas convivem no mesmo espaço. Cada grupo remanescente revela uma surpresa. No Cafundó, na região paulista de Sorocaba, os moradores, vivendo quase em miséria, encantam com a poesia de uma língua própria de origem africana, a cupópia, tema do livro Cafundó - A África no Brasil, do lingüista Carlos Vogt e do antropólogo Peter Fry. Todo ano, durante mais de dois séculos, os calungas (grande grupo de descendentes de escravos divididos em várias comunidades em Goiás) interrompiam a fabricação artesanal da farinha de mandioca para celebrar as festas do Divino e da Folia de Reis. "A musicalidade, religiosidade, artesanato e toda a produção estética dos remanescentes constituem uma diversidade cultural valiosa frente à mesmice geral", avalia Dulce Pereira. Há 30 anos estudando a trajetória dos quilombos, o sociólogo Clóvis Moura, da Universidade de São Paulo, vê os remanescentes como uma fonte de reconstrução da memória e identidade brasileira. "Até hoje, a história dos pobres ficou invisível."

Para o país, será bom resgatá-la. Segundo o etnólogo Guilherme Barboza, o primeiro elemento a ser recuperado é a dignidade. "A dança e a música vêm junto. Se as pessoas se sentem gente, vivem seus valores." Certamente, as festas e a arte fascinam com mais facilidade os olhos estranhos. "Mas não é possível preservar a cultura sem criar melhores condições de vida e trabalho nas comunidades", diz Flávio Rodrigues da Silva, do Fórum Estadual de Entidades Negras. Muitos povoados não têm as mínimas condições de saúde, transporte ou educação. "No Maranhão, a maioria dos remanescentes não tem poço artesiano, escola primária ou eletrificação", informa Ivan Rodrigues Costa, do Projeto Vida de Negro, em São Luís. "Até hoje, as prefeituras trataram de forma diferente as comunidades negras e as caboclas (brancas) da vizinhança." O projeto já identificou 135 comunidades em todo o Maranhão, chamadas na região de "terras de preto".

Segundo Ivan, até os anos 60, esses grupos conseguiram sobreviver graças à própria estrutura fundiária do estado, baseada em pequenas propriedades e com muitas terras devolutas. "Mas chegaram as estradas e os projetos agropecuários, a terra se valorizou, e os moradores antigos foram sendo expulsos."

O próprio governo reconhece que, sem a titulação das terras, os remanescentes dos quilombos e toda a sua cultura estão ameaçados. "Não poder colher e plantar é a morte para essas pessoas", sentencia Dulce Pereira.

Terra sagrada

"A terra onde vivemos é uma fortaleza que os mais antigos deixaram para a gente", define Edu Nolasco de França, morador de 60 anos de São Pedro, no vale do Ribeira. Ele conta que as famílias sempre tiraram o sustento da terra. Nos últimos anos, entretanto, todos dividem uma angústia crescente: não poder trabalhar. A área foi definida como de proteção ambiental e os moradores não podem mais extrair palmito para vender, nem pescar, nem caçar, nem fazer o descanso da terra, pois quando a vegetação cresce é proibido cortá-la. Todos temem a fiscalização, e as multas são constantes.

"A legislação não respeita o uso tradicional da terra", aponta a advogada Michael Mary Nolan, que assessora os remanescentes do vale do Ribeira. "Não podemos esquecer que as comunidades são anteriores aos parques e que, se hoje ainda existe mata nesta região, é justamente graças a elas." Outro temor de todas as comunidades da região é a construção de barragens no rio Ribeira do Iguape (quatro projetos estão em estudo). Michael não entende como a mesma mata, que hoje merece tanta fiscalização, simplesmente poderá ser inundada. Seja pelo conflito de interesses, seja pelas restrições ambientais ou pela confusão cartorial, o processo de titulação promete ser trabalhoso.

Até o momento, o governo federal não estabeleceu um procedimento geral para a emissão dos títulos. Há dois projetos de lei em andamento no Legislativo, e outro está sendo preparado pelo governo. De qualquer maneira, já é consensual que o artigo 68 não precisa de regulamentação, sendo necessário apenas definir quem é o órgão competente e quais são os critérios para a titulação.

A Fundação Cultural Palmares, depois de fazer um primeiro mapeamento, está emitindo laudos identificatórios e organizando um banco de dados sobre a produção cultural dos grupos. Por sua vez, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), também do governo federal, foi o responsável pelas primeiras três titulações no Pará. Acredita-se que o instituto deve atuar nos casos das terras devolutas da União e das particulares, que seriam desapropriadas para fins de reforma agrária. Ainda não se sabe se haverá orçamento para cumprir a tarefa até o fim, mas o compromisso está sendo assumido. "Acreditamos que devemos interferir, pois há um direito constitucional a ser respeitado e também conflitos a ser evitados", diz Sebastião Azevedo, procurador-geral do Incra. Ele reconhece que o processo de grilagem ameaça as comunidades remanescentes.

Na esfera estadual, porém, sem esperar uma definição federal, alguns governos já estão se mobilizando. Em São Paulo, o governo reconheceu preliminarmente 21 comunidades. Uma lei, aprovada em setembro, determina que sejam tituladas as comunidades fixadas em áreas públicas estaduais. O procedimento deve ser definido até o final do ano, e alguns critérios já foram bastante discutidos. A demarcação das terras envolverá a comunidade, respeitando sua forma tradicional de ocupação. O título será coletivo, em nome da associação de moradores, e não individual. Em paralelo, o Itesp (Instituto de Terras de São Paulo), órgão encarregado da titulação, incluiu na sua proposta orçamentária de 1998 um projeto de assistência técnica às comunidades.

No Maranhão, o trabalho também já começou. No início de outubro, um decreto estadual reconheceu 15 comunidades remanescentes, determinando que tenham suas áreas medidas, demarcadas e tituladas. Também está previsto o investimento em infra-estrutura básica.

"Regularizar a propriedade dessas terras é um sinal de modernidade", conclui a antropóloga Lúcia Andrade. Para ela, a titulação dos remanescentes pode ser encarada como uma reforma agrária preventiva, pois fixa os moradores no campo. No vale do Ribeira, metade dos moradores da comunidade de São Pedro precisaram deixar suas casas para tentar a vida como meeiros em plantações da redondeza. Muitos dos que foram querem voltar, e os que ficaram não querem ir. "A nossa vida é aqui", diz Leonardo Dias Morato, morador da comunidade.

Revista Problemas Brasileiros

Apóstolos do Brasil


Apóstolos do Brasil

CECÍLIA PRADA

A coincidência em 1997 de duas efemérides - 300 anos da morte do padre Antônio Vieira e 400 anos da do padre José de Anchieta - propicia um olhar mais demorado sobre o papel que a Companhia de Jesus teve na colonização do Brasil e incita-nos a rememorar a vida e a obra dessas duas figuras importantes da literatura e da história pátria.

As circunstâncias do cotidiano da colonização - uma árdua luta contra a natureza selvagem e os costumes dos índios, para que se instaurasse no Novo Mundo o reino cristão da civilização ibérica - traçam para ambos esses homens um pedestal comum, fornecido pelo mesmo treinamento ignaciano que enquadrava a Igreja Católica num militarismo rígido, necessário ao grande empreendimento da Contra-Reforma. "Soldados de Cristo", os jesuítas desde os primórdios do século 16 trouxeram literalmente a cruz e a espada para as colônias da América, não hesitando em brandi-las contra os "selvagens" e os "hereges" protestantes que ameaçavam a consolidação dos interesses portugueses e espanhóis e a integridade das consciências com o livre-exame e a nova cultura da Renascença.

A pergunta que muitas vezes ocorre a todos os estudiosos do período colonial é esta: o que teria acontecido com o Brasil, se os holandeses e os franceses não tivessem sido rechaçados?

Os que lamentam simplesmente esse fato, suspirando por uma América Latina à semelhança da do norte, dotada de um capitalismo seguro e de desenvolvimento econômico e cultural superior, esquecem que já desde o início os países de colonização ibérica - principalmente o Brasil - foram marcados por contradições específicas, choque de culturas várias, uma gama maior de influências. E que nenhum grande grupo cultural uniforme para aqui se transplantou, à semelhança dos pilgrims norte-americanos. A sociedade colonial brasileira não foi simplesmente uma cultura de transplante. Mas sim de elaboração, de integração, de luta renhida, de dominação grosseira, estabelecida por uma verdadeira ralé de aventureiros e deportados - a colônia foi, desde os primórdios, terra de ninguém, porque de todos, e de degredo.

Nesse contexto, os padres da Companhia de Jesus - e principalmente Anchieta e Vieira - representaram um elemento de união e foram costurando o tecido da nacionalidade com a sua visão do mundo, o dogmatismo ferrenho de um catolicismo renitentemente medieval, mas que contribuiu para a manutenção de um imenso território, sujeito a um único rei, com a mesma língua - integrando os elementos autóctones, como o tupi-guarani, e concretamente ampliando, com sua obra missionária, os limites territoriais.

Padre José

O elemento que ressalta, na iconografia de Anchieta, é uma extrema fragilidade física aliada a um espírito forte. Pequeno e magro, doente, corcunda, arrancado a custo da tuberculose que contraíra exagerando o ascetismo e as devoções, José de Anchieta parece nos encarar até hoje, do fundo dos tempos, com o olhar determinado do solitário e do fanático. Figura velada por imensa humildade, obediência cega aos ditames da religião, da Companhia, místico, bondoso, um "santo" - mas, estudada mais profundamente, marcada pela contradição entre o pensar e o agir, homem do seu tempo, da sua ideologia.

Nenhum retrato melhor dele do que o feito em 1582 por Diogo Flores Valdez, comandante de um navio espanhol atracado no Rio, e a quem Anchieta suplicara que soltasse um prisioneiro. Valdez ordenou: "Solte-se logo e faça-se como o padre Anchieta manda. Porque Deus nunca queira que eu deixe de fazer o que ele me mandar, porque a primeira vez que o vi, nunca coisa mais abjeta e desprezível se me apresentou, porém depois, olhando bem para ele, nunca em presença de alguma majestade me senti mais apoucado do que diante dele..."

Nascido em 1534 na ilha de Tenerife, território espanhol, ao ingressar como noviço da Companhia de Jesus em Coimbra - onde fora estudar - assumiu a nacionalidade portuguesa. Seu único ideal na vida era o martírio e seu grande patrono foi São Francisco Xavier, mártir na China. A vinda para uma terra selvagem, povoada por índios antropófagos, era o desafio que o fascinava - dar a vida pela "conversão do Brasil". A coragem que mostrou sempre, diante da ferocidade dos índios e dos perigos de toda sorte, não era nada para aquele jovem que suplicava diariamente a Deus que o deixasse morrer pela fé.

Para seu grande desgosto, Deus não o atendeu. Ao sentir-se próximo da morte, aos 63 anos, já recolhido à aldeia indígena de Reritiba, ainda planejava acompanhar os outros padres em "alguma entrada pelo sertão... pois se não mereço por outra via ser mártir, ao menos me ache a morte desamparado, em alguma destas montanhas, onde possa dar a minha alma em favor dos meus irmãos..."

Para tanta abnegação, para tanto amor real, inegável, pelos índios que ajudou a aldear e manter em estado "civilizado", e que o consideravam um pai, contrapõem-se entretanto, na biografia de Anchieta, numerosos exemplos de atitudes e idéias aderentes ao máximo à política luso-hispânica de dominação, levada a efeito pela Companhia de Jesus. Não hesita mesmo, nas cartas aos superiores, em pedir que el-rei mande homens e armas para acabar com os índios, posto que "são gente tão indômita e bestial que somente será resolvido o problema do índio quando se acabar com ele"...

Nas suas cartas estão registradas cenas do cotidiano da aldeia paulista, onde se pode ver que o índio bom era somente aquele que obedecia, muitas vezes a chicotadas, aos padres, e a eles servia, levando a sujeição ao extremo de adotar vida casta, com matrimônio cristão. No fanatismo de salvarem as suas almas, os bons padres consideravam obra benemérita separar os meninos índios das famílias e orgulhavam-se de que muitos deles "nem mostravam mais desejo de falar com a mãe". Aos rebeldes, aos fugitivos, uma verdadeira caçada, a pena do chicote e da tortura.

Mas inegavelmente é à personalidade de Anchieta, forte, inquebrantável, que devemos a fundação de São Paulo. Já em 1563, dizia o padre Diogo Laynez, geral da Companhia, que "desde o dia da fundação até 1560 e por mais três anos ainda, o colégio (núcleo da povoação) pode-se dizer que não foi senão Anchieta". À tarefa do ensino juntou o papel de líder da comunidade, realizando os mais variados misteres, curando os doentes, ensinando carpintaria, marcenaria, empreitando obras, organizando a resistência armada contra ataques de índios selvagens.

Desempenhando também papel relevante na fundação do Rio de Janeiro e de numerosos núcleos populacionais - como a atual cidade de Anchieta, no Espírito Santo -, fundando e visitando colégios em todo o país, Anchieta é figura de maior relevo nos primórdios de nossa civilização.

Antônio Vieira

Como José de Anchieta, um século mais tarde outro noviço da Companhia, Antônio Vieira, faria voto de consagrar sua vida à evangelização dos silvícolas brasileiros. Mas, à diferença daquele, por ordem dos superiores daria rumo diverso à sua carreira eclesiástica, mergulhando fundo na filosofia e tornando-se elemento de suma importância na alta diplomacia da corte portuguesa de dom João IV, mas servindo sempre aos interesses da sua congregação e da Igreja. Pôde, no entanto, em sua longa vida conciliar o brilho da vida intelectual com a prática missionária, homem de pensamento, luminar da oratória barroca, mas também homem de ação.

Nascido em 1608 em Lisboa e morto na Bahia em 1697, veio com os pais para o Brasil com oito anos de idade e aqui passou mais de 50 dos 89 anos que viveu. Teve uma vida extremamente aventurosa, marcada por mil perigos - naufrágios, perseguições políticas e de caráter religioso, condenações e encarceramento. Os temas ousados que abordava em seus sermões, defendendo a causa dos índios, indignando-se contra o tratamento dado aos escravos ou defendendo os judeus, marcaram longas lutas, tanto com os colonizadores do Brasil como com a temível Inquisição. O pior período foi o que passou preso em Lisboa (1665-67), por ordem desta (ver artigo do professor Alfredo Bosi, abaixo).

Em 1681 regressa definitivamente ao Brasil e, enquanto a Inquisição o faz queimar em efígie, em Coimbra, recolhe-se à Quinta do Tanque, na Bahia, escrevendo novos livros e editando seus sermões, e ali falece, em 18 de julho de 1697.

À sombra da roupeta

A cultura humanística da Companhia de Jesus, transplantada para a colônia no ensino, e o talento literário de Anchieta e Vieira marcam os primórdios da nossa literatura. Como diz Jamil Almansur Haddad, "a literatura brasileira nasceu associada à pedagogia jesuítica e a sombra da roupeta prosseguiu estendida sobre a nossa literatura e foi essencial na evolução do nosso pensamento".

Um ou dois anos após a chegada ao Brasil, Anchieta já escrevia uma Gramática da língua mais usada no Brasil (o abanheenga, língua tronco do tupi), para facilitar a comunicação entre missionários e índios. Segundo o historiador padre Hélio Viotti, "na opinião dos mestres de hoje, sua gramática é a melhor de todas as que se escreveram nos tempos coloniais e a que mais corresponde às exigências científicas modernas".

Nos autos compostos ora em português ora em tupi, Anchieta seguia a tradição do teatro medieval religioso e procurava instruir na fé os curumins. Dos seus oito autos, o mais importante é Na Festa de São Lourenço, de 1583. Mas é na poesia que revela suas elhores qualidades, principalmente no grande Poema à Virgem, em versos latinos, que começou a escrever nas areias da praia de Iperoí em 1563 - quando era prisioneiro dos índios tamoios, antropófagos (ver texto abaixo).

Da maior importância é também o Anchieta cronista e historiador do seu tempo. Nas cartas que durante 40 anos escreveu aos superiores e em outros escritos sobre a Capitania de São Vicente, ele nos traça um quadro completo dos costumes, dos episódios históricos, e nos dá uma descrição detalhada até da flora e da fauna brasileiras. A Academia Brasileira de Letras publicou em 1933 um volume que abrange todos esses escritos - Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões.

Quanto a Vieira, seu estilo brilhante até hoje traça normas do bem escrever e falar. Sua oratória é o triunfo do barroco e ao mesmo tempo o reflexo do cotidiano colonial. O Sermão da Sexagésima, proferido em 1655 na Capela Real de Lisboa, é considerado leitura obrigatória para estudantes de letras. Nele o orador identifica o estilo, o ritmo e a unidade de assunto-texto, definindo que a voz do orador deve ser "um trovão do céu que assombre e faça temer o mundo."

Igualmente célebres são o Sermão a Favor das Armas Portuguesas contra as de Holanda (Bahia, 1634), em que ousa apostrofar o Senhor - "Por que dormes, Senhor?" -, por permitir vitórias de hereges em terras católicas, e o Da Primeira Dominga da Quaresma (Maranhão, 1653), em que tenta persuadir os colonos a libertarem os indígenas, "porque melhor é sustentar-se do suor próprio que do sangue alheio. Ah! fazendas do Maranhão, que se esses mantos e essas capas se torceram, haviam de lançar sangue!"

O seu empenho a favor dos índios não ficou em palavras. Em 1654 viaja para a Corte e exerce pressão sobre o rei dom João IV até que este, um ano mais tarde, proíba a escravização dos nativos. Empenhado também em denunciar os abusos da escravidão negra, no Sermão XIV do Rosário, dirigido aos próprios escravos, equipara os seus sofrimentos aos de Cristo e chama de "doce inferno" a vida nos engenhos de açúcar. Mas, homem do seu tempo e obediente à ideologia vigente, habilmente tempera a denúncia com a exortação ao "sofrimento paciente", visando ao gozo na vida eterna...

É a Alfredo Bosi, crítico literário e professor da Universidade de São Paulo (USP), que devemos a avaliação do talento de Vieira. Em História concisa da literatura brasileira, Bosi assim se refere ao mestre barroco: "Existe um Vieira brasileiro, um Vieira português e um Vieira europeu, e essa riqueza de dimensões deve-se não apenas ao caráter supranacional da Companhia de Jesus, que ele tão bem encarnou, como à sua estatura humana, em que não me parece exagero reconhecer traços de gênio".


Amor sublimado

A inspiração para o mais importante poema de José de Anchieta, extensa obra mística em latim e que constituiu o primeiro documento poético da literatura brasileira - "De beata virgine dei matre Maria" -, nasceu, conforme ele mesmo conta, de um grande esforço de sublimação sexual.

Em 1563, refém em Iperoí (Ubatuba) dos antropófagos tamoios durante quatro meses, Anchieta, primeiro com Manuel da Nóbrega e depois sozinho, enfrentou perigos terríveis e escapou três ou quatro vezes da carnificina - principalmente por ser considerado pelos índios como "feiticeiro". O próprio ritual devocional dos jesuítas, a concentração que conseguiam obter nas preces e na celebração do sacrifício da missa passavam aos índios a idéia de que devia ser grande o poder daqueles homens que falavam diretamente com Deus. Além disso, testemunhas desses tempos narram como o "santo" fora visto elevar-se do chão durante a prece, na choupana do próprio cacique, causando assim grande temor aos índios.

Mas se a própria sede de martírio que trazia ao vir para o Brasil dava-lhe coragem para expor-se de tal maneira, outra tentação, muito pior, a seu ver, ia consumindo suas forças morais: a do pecado carnal. Rodeado constantemente de índias nuas, oferecidas naturalmente aos viajantes por desejo próprio e também pela obrigação tribal de hospitalidade, o missionário considerava esta "a pior provação" - como ele próprio contaria, mais tarde, em cartas aos superiores. Serviram-lhe de escudo para resistir ao poder da mulher duas coisas: o treinamento mental fornecido pelos exercícios espirituais de Loyola, que metodicamente induzem o praticante a visões aterradoras do castigo divino, e a devoção extraordinária à Virgem Maria - a "outra mulher", a Mãe, a Puríssima, a Indesejável.

Passeando pela praia, o missionário de 29 anos substituía assim a visão das índias nuas pela da Puríssima Conceição e ia escrevendo na areia versos requintados, maneiristas, que depois memorizava - e que dois anos mais tarde organizaria e publicaria.

Às vésperas da canonização

Em alguma curva do labirinto burocrático do Vaticano, transitam documentos que podem resultar numa boa notícia para os católicos brasileiros: a canonização de José de Anchieta. Se os argumentos contidos no processo convencerem a Santa Sé, Anchieta, que já foi beatificado, pode se tornar o primeiro santo que viveu no Brasil.

Mas o fato que pode decidir essa questão não diz respeito propriamente a atitudes do missionário durante sua vida. Segundo o padre jesuíta Roque Schneider, vice-postulador da causa de Anchieta, só recentemente surgiu algo que pode se encaixar nas exigências do Vaticano para a canonização: "um milagre forte, autêntico e definitivo" atribuído à fé no beato Anchieta.

A beneficiada pelo milagre teria sido Maria Auxiliadora Valiate, médica capixaba de 39 anos. Ela teria nascido sem um osso do tornozelo direito. Após envolver no local uma relíquia de Anchieta – um pedaço de pano que passou certo tempo em contato com um osso do beato preservado no Pátio do Colégio, em São Paulo – e rezar 45 dias, o osso teria aparecido de repente, de maneira inexplicável.

Como vice-postulador, Schneider recolheu todos os dados relativos ao suposto milagre e os enviou ao jesuíta Paolo Molinari, postulador dessa e de outras causas no Vaticano. O protocolo é extenso: o processo é rigorosamente examinado por uma comissão, com direito a testemunhas, perícias e evidências. Passa também pelas mãos de uma pessoa cuja função é encontrar defeitos na postulação e no candidato: o advogado do diabo.

Um dos argumentos já levantados contra a canonização é o registro de uma passagem da vida de Anchieta. Um condenado a enforcamento teria sobrevivido dramaticamente às tentativas de executá-lo, por incompetência do carrasco. Anchieta então, por misericórdia, teria colaborado em finalizar a terrível tarefa.

O vice-postulador argumenta que a credibilidade desse relato é abalada pelo fato de seu autor ser da ordem dos franciscanos, que àquela época tinham conflitos com os jesuítas. E acha que esse fato, que "está diluído na bruma da história", não pesará na decisão do Vaticano.

Schneider, que é também diretor nacional do Apostolado da Oração, um grupo religioso que reúne 10 milhões de pessoas no Brasil, diz ter recebido de Roma sinais de que a canonização pode ser anunciada no ano 2000, como parte das comemorações dos 500 anos da colonização da América do Sul.

Vieira e o reino deste mundo

(Excerto, gentilmente cedido pelo professor Alfredo Bosi, de artigo que vai integrar livro em homenagem a Décio de Almeida Prado, a ser publicado pela Edusp)

Embora eu já conhecesse a edição exemplar que Hernani Cidade fez da defesa de Vieira perante o Santo Ofício, não pude deixar de me comover quando tive em mãos o processo original que se encontra na Torre do Tombo1. São quase 900 folhas de pergaminho, mal costuradas com fio grosso. A letra do réu é fina e se mantém clara até uma certa altura, depois começa a empastar-se.

Entrevemos o rosto do acusado ardendo em febres de malária que contraíra nas missões do Amazonas. Ouvimos a tosse do tísico já cortada nos últimos meses de cárcere por violentas hemoptises. Muitas das folhas já estão coladas, e o manuscrito parece às vezes uma só mancha informe. Mas o espírito, que sopra onde quer, não se abate nem desfalece em momento algum. Vieira insiste em provar o tempo todo aos seus inquisidores a verdade e a ortodoxia da sua leitura das trovas proféticas do sapateiro Bandarra: versos messiânicos escritos havia mais de um século em uma vila da Beira chamada Trancoso.

O processo durou de 1663 a 1667. Para defender-se Vieira redige duas longas representações. O Tribunal não se convence e o submete a exames pontuais cada vez mais apertados, aos quais o réu responde esgrimindo a sua retórica temerária que se engenha em tornar crível o impossível, provável o apenas possível, e absolutamente certo o apenas provável. Mas no fundo dessa arte ingenuamente sutil pulsava um desejo que é belo e é nobre ainda e sempre: o sonho de um reino de justiça que se realizaria cá na Terra, neste nosso mundo, e não tão-somente no outro.

Pelos autos vê-se o quanto essa utopia do réu suscitou as iras dos seus juízes. O fato é que Vieira atraíra contra si um concurso de motivações ameaçadoras. O anti-semitismo da Inquisição, de velas enfunadas nos Seiscentos, vislumbrou, com a perspicácia feroz dos perseguidores, traços judaizantes naquelas elucubrações proféticas. Era, aliás, notória a posição do nosso jesuíta em favor dos "homens de nação" desde quando interviera junto ao rei pedindo-lhe que fossem bem acolhidos em Portugal os judeus dispersos pela Europa. Deles poderiam vir recursos para financiar a Companhia das Índias Ocidentais projetada pelo mesmo Vieira. Esse é o teor da sua "proposta feita a el-rei dom João IV, em que se lhe representavam o miserável estado do reino e as necessidades que tinha de admitir os judeus mercadores que andavam por diversas partes da Europa".

Havia ainda outros motivos que explicariam a animosidade do Santo Ofício: a antipatia que os dominicanos nutriam pela Companhia de Jesus e, last but not least, a vaidade literária de um de seus pregadores, frei Domingos de Santo Tomás, ferida pelas setas do nosso orador, que traçara a sua caricatura no Sermão da Sexagésima.

Voltemos aos autos. Vieira exalta as trovas do Bandarra, erguendo-as à altura das profecias de Isaías e Daniel e dos versos dos Salmos e dos Cantares. Não contente com essa mostra de credulidade, interpreta a figura do Encoberto como alusão a dom João IV. Sucede que este rei, seu protetor, morrera em 1656. Vieira não hesitara então em escrever à rainha viúva uma carta anunciando a próxima ressurreição de dom João IV, o qual venceria os maometanos e instauraria o Quinto Império, enfim o reino de paz profetizado nas Escrituras.

Vieira operara uma substituição tática, pois o Encoberto era para os primeiros crentes do Bandarra ninguém menos que dom Sebastião, o jovem rei que desaparecera nos areais de Alcácer-Quibir. A este, sim, o povo, desconsolado com o desastre nacional, atribuía poderes messiânicos, esperanças tenazes que, passados três séculos, o nosso Euclides da Cunha ainda ouviria da boca dos sertanejos reunidos em Canudos em torno do Conselheiro.

O leitor culto dos nossos dias talvez pasme ao perceber o candor com que um homem da estatura de Vieira dissertava sobre a ressurreição próxima de um rei morto havia pouco. No entanto, esse homem é o mesmo a quem Cristina da Suécia, discípula de Descartes, escolheria para diretor espiritual nos seus anos romanos. E mais se espantará quando ler, na Defesa, a justificação do réu, que declara ter feito uma diligência (diríamos hoje uma pesquisa), a qual "sem ser tão esquisita como eu quisera, nem estar acabada, já tinha descoberto, nesses 120 últimos anos, 95 mortos ressuscitados; pois assim como ressuscitaram 95, que muito seria que fossem 96?"

O monarca redivivo fundaria o Quinto Império, que duraria mil anos, até que sobreviesse o dia do Juízo. Aqui confluem o traço mais arcaico e o mais atual do milenarismo. Vieira imagina um tempo que nunca existiu a não ser nas dobras de um desejo coletivo de felicidade. Eram saudades do futuro as que ditavam as suas esperanças.

Os inquisidores exigiram que ele falasse do reino somente em termos metafóricos. Vieira sustentou quanto pôde o sentido literal: o reino se erguerá na terra dos homens. Ao cabo de dois anos, abalado pela informação de que o papa condenara as suas proposições, retratou-se. Mesmo assim, foi proibido de pregar em Portugal. Saiu da pátria, foi viver em Roma, onde Clemente X lhe concedeu honrarias e um salvo-conduto, o breve que o livraria de novas arremetidas da Inquisição lusitana. No fim da vida, já octogenário, no refúgio baiano da Quinta do Tanque, Vieira continuou a escrever, contra tudo e contra todos, a Clavis prophetarum.

1Padre Antônio Vieira, Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício. Introdução e notas do professor Hernani Cidade. Tomos I e II. Salvador, Livraria Progresso Ed., 1957.

Revista Problemas Brasileiros

Sérgio Buarque de Holanda - Um leitor especial



Um leitor especial

Livro que reúne textos do historiador Sérgio Buarque de Holanda revela um grande crítico literário

JOSÉ GERALDO COUTO

O espírito e a letra (Companhia das Letras, dois volumes, total de 1.088 páginas), que reúne as críticas literárias publicadas na imprensa por Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), é um livro precioso sob vários aspectos.

Os discípulos ou admiradores da obra do crítico e historiador lerão esses dois volumes como um extenso e rico registro de quatro décadas de vigorosa militância intelectual. Os estudiosos ou curiosos da literatura brasileira moderna encontrarão neles um compêndio de quase tudo o que de importante surgiu no setor entre 1920 e 1959. Por fim, os interessados na própria crítica literária como disciplina específica, terão ali um exercício incessante de reflexão sobre as relações entre texto e contexto, ou, em outras palavras, entre forma e história.

Pois Sérgio Buarque – um dos maiores historiadores que o Brasil já teve, autor de clássicos como Raízes do Brasil e Visão do paraíso – nunca se deixou seduzir pelo canto da sereia da crítica exclusivamente formal, nem recaiu no erro oposto, de considerar o texto literário apenas como "reflexo" ou "sintoma" de uma determinada configuração social e histórica.

Dono de uma erudição quase inverossímil e de um aparato crítico invulgar, empenhou-se desde o início de sua atividade profissional, aos 18 anos, em articular a análise da obra literária, em todas as suas especificidades formais, com o estudo de sua inserção em contextos progressivamente mais amplos: a história literária, a história da cultura e a história humana em geral.

A organização do livro em ordem cronológica – o primeiro volume reúne textos de 1920 a 1947; o segundo, de 1948 a 1959 – permite acompanhar a formação e o aperfeiçoamento do método crítico de Sérgio Buarque, bem como a evolução de seu próprio estilo como escritor. Permite também constatar seu engajamento como aliado do movimento modernista em sua tentativa de se impor e se legitimar no cenário cultural brasileiro.

Por diversas razões, o segundo volume, que é o mais extenso (679 páginas), é também o mais rico e interessante. Primeiro, porque nele aparecem, analisadas pioneira e agudamente, obras de autores mais próximos do leitor de hoje, e de influência marcante na literatura atual. Segundo, porque o estilo de Sérgio Buarque encontra-se ali plenamente desenvolvido e depurado, atingindo um ponto ideal de equilíbrio entre clareza, concisão e profundidade.

As primeiras críticas profissionais de Sérgio Buarque, publicadas em 1920 em jornais como "Correio Paulistano" e revistas como "A Cigarra" e "Revista do Brasil", impressionam pela erudição do jovem autor. Aos 18 ou 19 anos, ele já discorria com desenvoltura não só sobre a obra de um Goethe como também sobre traduções desta em várias línguas. Há até um certo pedantismo nessas primeiras intervenções do crítico, então muito preocupado na definição de um caráter nacional para a literatura feita em nosso país. Alguns desses primeiros textos soam algo distantes para o leitor atual, sobretudo por tratarem freqüentemente de obras e autores que não vingaram, e hoje jazem na obscuridade (Marinella Peixoto, Marques da Cruz, o colombiano Vargas Vila etc.).

O livro ganha interesse quando registra o advento do movimento modernista de 22, ao qual Sérgio Buarque aderiu na primeira hora – na verdade até antes, pois em dezembro de 1921 ele já saudava, na revista "Fon-Fon", o "futurismo paulista". Ao encontrar sua "turma", o crítico parece se encaminhar rapidamente para a superação de um certo desconforto diante de nossa incipiência literária, vista até então pelos padrões europeus. A atitude modernista, ao mesmo tempo cosmopolita e extremamente atenta às coisas do Brasil, dá a Sérgio Buarque uma espécie de bússola pela qual se guiará daí em diante.

Embora continue sintonizado com tudo o que de mais importante ocorre no cenário internacional (tanto europeu como norte-americano), o crítico e historiador passa a dedicar o melhor de sua atenção à produção dos modernistas brasileiros e seus agregados (Bandeira, Drummond, Murilo Mendes, Jorge de Lima, o romance nordestino dos anos 30 etc.).

Uma das maneiras mais estimulantes de ler O Espírito e a Letra pode ser, justamente, observar como Sérgio Buarque abordou, ao longo de 40 anos, todos os movimentos e autores importantes que surgiam: o modernismo da "fase heróica", o romance social de 30 (Graciliano Ramos, Jorge Amado, Lins do Rego), a "geração de 45", João Cabral de Melo Neto, a poesia concreta.

O que impressiona, nesse recorte, é a absoluta abertura de espírito do crítico a tudo o que pudesse trazer algo de novo e enriquecedor à sensibilidade humana, ao mesmo tempo em que seu vasto conhecimento da história literária e cultural permitia-lhe relacionar imediatamente as novas tendências ou autores às mais variadas linhagens e tradições.

Nesse sentido, é exemplar um texto como "Ritmo e Compasso" ("Diário Carioca", 1951), em que Sérgio Buarque analisa o primeiro livro de Décio Pignatari, Carrossel, e o relaciona com a poesia de Haroldo de Campos, que seria nos anos seguintes companheiro daquele no movimento concretista. Na época, à falta de termo melhor, o crítico usa o rótulo então em voga, "pós-modernista", para qualificar a obra dos dois autores. Mas não deixa de notar, já nesse texto pioneiro, a diferença profunda entre a poesia de Haroldo, "de depuração das formas tranquilas", e a de Décio, "uma poesia da mobilidade".

Outro roteiro fecundo de leitura – já que este livro-manancial pode ser percorrido de várias maneiras, além da linear – é acompanhar os temas desenvolvidos pelo autor em séries articuladas de ensaios. "O sentido universal da literatura francesa", por exemplo, merece dois penetrantes artigos publicados no "Diário de Notícias" do Rio de Janeiro em 1949. As relações entre linguagem poética e linguagem científica geraram em 1951 uma polêmica de alto nível entre Euríolo Canabrava e Sérgio Buarque, que publicou uma série de quatro artigos sobre o tema, sob o título "Poesia e positivismo", no "Diário Carioca".

Um exemplo cabal, entre tantos outros, da percuciência crítica e do poder de síntese de Sérgio Buarque de Holanda são os dois artigos que dedicou a Carlos Drummond de Andrade – um de seus poetas preferidos, ao lado de Bandeira – no "Diário Carioca" em 1952, sob o título "O Mineiro Drummond". Lendo-os, temos uma exposição sucinta das relações entre a paisagem mineira e o temperamento poético do escritor de Itabira, e um estudo de como esse temperamento se traduziu num determinado estilo de composição.

É impressionante notar como Sérgio Buarque de Holanda alcançava, em breves textos de jornal, um grau de elaboração crítica raramente atingido hoje mesmo em estudos universitários especializados – o que pode ser visto como um sinal de como decaiu a imprensa literária e de como se deterioraram os estudos acadêmicos de letras.

Pela extensão de seu aparato crítico e pela abrangência de seus interesses (história, literatura, antropologia, sociologia, arte, filosofia), Sérgio Buarque de Holanda foi um intelectual de estatura só comparável à de um Mário de Andrade, que aliás serviu-lhe como uma espécie de mestre e exemplo inspirador.

Estes dois volumes, organizados com dedicação e competência por Antonio Arnoni Prado (autor de introdução e notas úteis e esclarecedoras), são um testemunho inquestionável do gênio crítico do autor. No campo da crítica literária, vêm-se juntar a outra obra fundamental de Sérgio Buarque, Capítulos de literatura colonial, organizada por Antonio Candido e publicada pela Brasiliense em 1991. Colocados lado a lado com a obra historiográfica do autor (que foi também criador e coordenador da monumental coleção História geral da civilização brasileira), esses volumes de crítica revelam uma rara inteligência em plena ação.

Revista Problemas Brasileiros

Monteiro Lobato - O Andersen da América Latina


O Andersen da América Latina

CECÍLIA PRADA

No momento em que, em 1943, soube do editor que as tiragens de seus livros infantis haviam ultrapassado a casa do milhão de exemplares, Monteiro Lobato escreveu ao amigo Godofredo Rangel: "O meu caminho é esse - e é o caminho da salvação. Estou condenado a ser o Andersen desta terra - talvez da América Latina... E isso não deixa de me assustar".

Assombro e perplexidade deviam ser realmente os sentimentos dominantes naquele homem de 61 anos - que morreria cinco anos mais tarde -, ao lançar um olhar retrospectivo sobre a sua longa trajetória de escritor, jornalista, empresário, homem de ação cívica e política. Sentimentos polarizados de amargura e de triunfo, eivados do enorme descontentamento existencial que o caracterizou sempre - exigência demasiada, em relação a si próprio, em relação aos outros, o característico mau humor, o ânimo agressivo e atrabiliário, expresso sem pejo nos grandes debates jornalísticos sobre as mais diversas questões, do ataque aos gramáticos à defesa dos interesses nacionais. E a par disso tudo, uma enorme bondade, uma imensa pureza de coração, uma honestidade, um idealismo a toda prova - raiando as bordas do patético.

Elementos que fazem dele, até hoje, uma das figuras mais controvertidas e paradoxais da primeira metade do século, no Brasil. Com Euclides da Cunha e Lima Barreto, é considerado um dos precursores do pensamento modernista, pioneiro no levantamento das questões sociais, sensor da estagnação cultural que definiria, com sua linguagem original: "Lentamente cai a tapera nas almas e nas coisas..."

Esteticamente, porém, assumiria posição extremamente conservadora e preconceituosa, rompendo com a geração que fez a Semana de 22. Passaria mesmo à história como o infeliz demolidor da arte - que classificava como "degenerada, teratológica e mistificadora" - da jovem pintora Anita Malfatti - cuja exposição de 1917 se tornaria o estopim do modernismo brasileiro. No campo da literatura adulta, seu estilo de cunho classicista, influenciado pelo autor português Camilo Castelo Branco, desencontrou-se da forte temática colhida no meio rural brasileiro. Embora Lobato tenha atingido na época sucesso extraordinário de vendagem, na opinião quase unânime dos críticos seus contos só conseguem hoje ser lidos por curiosidade ou estudo. Dele diz Alfredo Bosi, que se "desviava continuamente da interioridade" e "descansava na superfície dos seres e das coisas".

Erro fundamental, entretanto, parece estar sendo cometido pelos principais historiadores da literatura brasileira - inclusive o próprio Bosi - ao separarem a literatura em dois campos, para adultos e infantil/juvenil, desconsiderando na historiografia literária geral os autores voltados para esta última. Ou eliminando completamente, como no caso de Lobato, o seu campo principal de atuação.

Uma visão limitada, preconceituosa, bem século 19, que definia a criança apenas como a miniatura, desvalorizada, do homem. E o escritor dedicado ao gênero, como um subliterato. O grande boom do gênero entre nós - que curiosamente faz do Brasil de hoje um país onde as crianças estão lendo mais do que os adultos - está a pedir uma revisão urgente de conceitos.

O livro onde se mora

Já em 1916 confessava Lobato ao amigo Rangel o desejo de dar início a uma literatura infantil como ainda não fora feita entre nós: "É de tal pobreza e tão besta a nossa literatura infantil, que nada acho para a iniciação de meus filhos... Um fabulário nosso, com bichos daqui, se for feito com arte e talento dará coisa preciosa... As fábulas em português que conheço, em geral traduções de La Fontaine, são pequenas moitas de amora do mato - espinhentas e impenetráveis".

Em 1920, já estabelecido como o editor que revolucionaria o mercado do livro no Brasil, Lobato publicaria A menina do narizinho arrebitado, um pequeno volume de 43 páginas, em formato álbum, ilustrado por Voltolino - marco inicial de uma imensa e profunda revolução literária, expressão de uma nova visão da criança, do mundo infanto-juvenil, do relacionamento entre crianças e adultos, e da educação.

No ano seguinte, reformatado e ampliado, Narizinho teria uma edição de 30 mil exemplares e seria adotado como livro de leitura nas escolas primárias do estado de São Paulo. Dessa data até hoje, os personagens únicos do Sítio do Pica-Pau Amarelo - Narizinho, Pedrinho, Dona Benta, Tia Nastácia, a boneca Emília, o Visconde de Sabugosa, o Marquês de Rabicó e tantos outros - multiplicam suas aventuras em 36 livros originais, que por sua vez se perpetuam em reedições constantes, adaptações para teatro e TV, e continuam povoando o imaginário das crianças brasileiras.

Em 1926, em plena efervescência criadora, assumia definitivamente a sua vocação: "De escrever para marmanjos já me enjoei. Bichos sem graça. Mas para as crianças um livro é todo um mundo. Lembro-me de como vivi dentro de Robinson Crusoé. Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar..." Adotando com humor e irreverência inigualáveis uma linguagem extremamente personalizada, descontraída, baseada no coloquialismo brasileiro, é como se o escritor revestisse uma segunda e mais autêntica personalidade, que faria dele um inovador lingüístico mais "moderno" do que qualquer um dos rebeldes de 22 que tanto atacara. Tematicamente, sua literatura para crianças foi incorporando de maneira original, única no mundo, o maravilhoso e o real, fundindo as tradições do fabulário de outros povos com o nosso folclore.

Ideologia e marretadas

Visceralmente avesso a todos os ismos - estéticos ou políticos -, Lobato seria atacado pelas duas facções em luta no cenário nacional, esquerda e direita. Esta, encarnada no moralismo provinciano e no catolicismo reacionário, empenhou-se nas décadas de 40 e 50 em denunciar como "catecismos comunistas" os seus livros infantis, e como corruptora da família, da tradição e dos costumes, a linguagem arrebatada, malcriada, desrespeitosa, dos seus personagens.

Nas décadas seguintes, seria a vez da esquerda de atacá-lo, acusando-o de reacionário, antiquado e racista e tentando, em vão, substituir a vitalidade dos seus livros pelas mumificadas fórmulas de uma literatura ditada pelos moldes do Partido Comunista. Rica em contradições, como foi a sua própria vida, a obra de Lobato continua válida e a exigir hoje - como diz Nelly Novaes Coelho - "uma leitura crítica que lhe estabeleça as verdadeiras dimensões", porque "esse corpo-a-corpo dos novos com o texto lobatiano lhes será extremamente benéfico, como conscientização de realidades essenciais, e como prazer puramente lúdico".

A tese Os filhos de Lobato - O imaginário infantil na ideologia do adulto, defendida no ano passado por José Roberto Whitaker Penteado na UFRJ, mostra como 75% dos adultos brasileiros que têm hoje entre 40 e 60 anos absorveram em Lobato valores como o nacionalismo, o respeito pela individualidade e pela democracia, a conscientização para problemas sociais como o da mulher, e abriram-se para um cabedal de conhecimentos que se estendia da mitologia grega à geografia, à história universal, à ciência e ao folclore nacional.

Desentendido com os homens do seu tempo, o escritor teria - numa feliz imagem da jornalista Roberta Jansen, em artigo para "O Estado de S. Paulo", no ano passado - executado uma "vingança" semelhante à daquele flautista de Hamelin que, ludibriado pelas autoridades de uma cidade, seduz com o som mágico da sua flauta todas as crianças e as leva embora consigo.

Revista Problemas Brasileiros

Francisco Julião - O defensor dos camponeses



O defensor dos camponeses

A saga de Francisco Julião, escritor, político e paladino da reforma agrária

CARLA ARANHA

O ano é 1940, e quem passa pelo centro do Recife, onde fica a maioria dos escritórios e empresas da cidade, mal acredita no que vê. À porta da salinha recém-alugada pelo jovem advogado Francisco Julião Arruda de Paula, de origem ilustre, filho, neto e bisneto de donos de engenho em Pernambuco, batem camponeses maltrapilhos. Ele, porém, não se importa com os olhares de repúdio, uma vez que havia feito uma escolha de vida: aos 25 anos, decidira usar seus conhecimentos para defender os trabalhadores rurais, cuja realidade conhecia muito bem. De advogado, passaria a líder do primeiro movimento pela reforma agrária no país, as Ligas Camponesas, e ganharia notoriedade também como escritor – deixou seis livros de literatura e manifestos em favor dos camponeses.

"Julião teve enorme importância ao despertar a consciência nacional para a reforma agrária", diz Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira, cientista político e cônsul honorário do Brasil em Heidelberg, na Alemanha. Exilado nos anos 1960 e esquecido durante muito tempo, agora, dez anos após sua morte, Julião tem seu papel histórico relembrado por meio do relançamento de grande parte de sua obra. O livro Até Quarta, Isabela, que escreveu para sua filha enquanto estava na prisão, em 1964, foi reeditado em 2007 pela Editora Bagaço, e Cambão, a Face Oculta do Brasil, sobre a vida dos camponeses no nordeste, acabou de ser lançado pela primeira vez no Brasil neste ano, pela mesma editora, depois de rodar o mundo, traduzido para vários idiomas.

As Ligas Camponesas não podiam ter escolhido líder melhor – afinal, Francisco Julião conhecia como poucos o dia a dia do homem do campo. Nascido na fazenda Boa Esperança, na cidade de Bom Jardim, a 110 quilômetros do Recife, ele cresceu junto com os filhos dos trabalhadores rurais, e desde cedo percebeu as injustiças sofridas por aquela gente. Aos 13 anos, foi estudar num colégio interno no Recife, e aos 18 entrou na faculdade de direito. Formado em 1939, no ano seguinte abriu um escritório voltado para a defesa do camponês. Por quase toda a vida ele se viu obrigado a pagar um preço por essa opção. Mais tarde, nos anos 1960, a pecha de revolucionário e agitador do campo lhe valeria um exílio de 15 anos. Ainda moço, na década de 1940, seu grande problema era honrar o aluguel da casa onde morava no Recife. Os clientes, pessoas de poucos recursos, muitas vezes não tinham como pagar-lhe. Casado em 1943 com Alexina Crespo, uma pernambucana de origem simples que compartilhava seus ideais, teve com ela quatro filhos, e precisava se desdobrar para fazer frente à mensalidade da escola das crianças e às despesas da casa. "Às vezes ficávamos até cinco meses sem conseguir pagar o aluguel, mas tudo acabava bem porque o dono do imóvel gostava de Julião", conta a filha Anatailde Julião.

A vida no país se modificava, e os novos ares em breve iriam bater à porta de Julião. O Brasil havia passado os últimos anos mergulhado em uma ditadura, o Estado Novo (1937-1945), sob o comando de Getúlio Vargas, um período difícil. Além de suspender os direitos civis e fechar o Congresso, o governo também colocou na ilegalidade a Aliança Nacional Libertadora (ANL), organização que, entre outras coisas, defendia a reforma agrária. O país recupera a liberdade no final de 1945, quando Vargas é derrubado e em seu lugar assume a presidência, em 1946, por meio de eleições diretas, Eurico Gaspar Dutra. A volta da democracia repercute concretamente inclusive no meio rural. No final da década de 1940, os camponeses já começam a se organizar em pequenas associações para ter maior força política.

Francisco Julião ganha popularidade em Pernambuco por seu papel junto aos trabalhadores rurais. Cresce também sua fama como escritor – um de seus livros, Cachaça, de contos, publicado em 1951, ganha um prefácio de Gilberto Freyre, o célebre autor de Casa-Grande & Senzala. Com aspirações políticas, Julião ingressa no Partido Socialista Brasileiro (PSB), candidata-se a deputado estadual em Pernambuco em 1954 e é eleito. No ano seguinte nasce a primeira associação camponesa de Pernambuco, a Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco (Sappp) – que logo começa a causar barulho.

A entidade era formada por parte das cerca de 140 famílias que trabalhavam nos 500 hectares de terra do Engenho Galileia, em Vitória de Santo Antão, a 51 quilômetros do Recife, que acabaria se transformando num marco da reforma agrária no Brasil. Criada por meio de um acordo com o dono do engenho, Oscar de Arruda Beltrão, a Sappp tinha o objetivo de promover melhorias em saúde e educação na fazenda. O filho de Beltrão, no entanto, temendo que os camponeses unidos pudessem lhe causar problemas, quis desfazer a associação. Os trabalhadores rurais foram então procurar Julião para defendê-los na Justiça. Ele não só aceitou como conseguiu, para surpresa geral, que os 500 hectares do engenho fossem legalmente desapropriados e passassem às mãos dos camponeses. Nascia naquele momento um dos mais importantes líderes populares do Brasil, capaz de reunir desde homens de Estado (como Fidel Castro, Mao Tsé-tung e Salvador Allende) a estudantes e escritores ao redor de sua figura – que, por sinal, não tinha nada de especial: franzino, com 1,66 metro de altura, ele se achava parecido com Charles Chaplin, a quem gostava de imitar nos momentos de intimidade.

Com a conclusão do processo de desapropriação do engenho, em 1959, os camponeses do Galileia ganham as páginas dos jornais. O movimento passa a ser conhecido como Ligas Camponesas e começa a se estender para outros estados, com o surgimento de núcleos na Paraíba, no Paraná e no Rio de Janeiro.

Julião continua a defender a distribuição de terras e recebe o apoio do voto popular: em 1958 é reeleito deputado estadual pelo PSB. O movimento que lidera havia crescido, conquistando projeção internacional. Em uma época de discursos inflamados e revoluções (ver texto abaixo), as Ligas Camponesas chamam a atenção de líderes como Fidel Castro e Mao Tsé-tung, que têm encontros pessoais com Julião e membros de sua família. A repercussão chega também aos Estados Unidos, graças a uma série de reportagens feitas pelo correspondente do "New York Times" no Brasil, e desperta preocupação no governo americano. O presidente John Kennedy envia seu irmão Edward a Pernambuco para ver de perto o que andam fazendo os camponeses. Em 1961, o Engenho Galileia recebe a visita de Edward Kennedy, que conversa com os moradores locais e chega a lhes enviar de presente um gerador, já que o local não tinha energia elétrica.

Nos bastidores, no entanto, os Estados Unidos mostram inquietação com as atividades de Julião e dos camponeses nordestinos. O serviço de inteligência americano, a CIA, e a embaixada do Reino Unido elaboram comunicados secretos para alertar sobre o "perigo" representado pelas Ligas Camponesas. "O PCB, o PCdoB e as Ligas Camponesas são as principais forças subversivas do nordeste", diz um despacho do embaixador britânico Leslie Fry enviado ao governo inglês em 24 de fevereiro de 1964. Ele também comenta que "o senhor Julião defende a luta armada". Nessa mesma linha, já em 2 de julho de 1963, um relatório da CIA dizia que "as Ligas Camponesas, lideradas por Francisco Julião, receberam a bênção de Fidel Castro". Para o cientista americano Anthony Pereira, especialista em questões agrárias do nordeste, os Estados Unidos temiam que houvesse uma revolução nessa região do país. "A liderança de Julião no nordeste e a influência das Ligas Camponesas determinaram grande parte da política externa americana naquela época", diz ele.

Os temores dos Estados Unidos até poderiam ser um pouco exagerados, mas tinham algum fundamento. Julião e sua mulher, Alexina, mantinham de fato contato com Fidel. Mais radical que o marido, Alexina dizia inclusive que a reforma agrária só se faria "na marra". Além disso, a ala mais à esquerda das Ligas Camponesas havia mesmo aderido à luta armada. O movimento foi o primeiro a adotar a guerrilha no Brasil, entre 1961 e 1962. Alexina chegou a ir à China para pedir armas a Mao Tsé-tung e fez treinamento militar em Cuba, acompanhada por outros esquerdistas brasileiros. Os cubanos também teriam ajudado financeiramente a organização. "A ideia era trazer o comunismo para o Brasil", conta sua filha Anatailde.

Ruptura

Julião, no entanto, continuava apostando, ao menos aparentemente, na democracia para mudar a estrutura fundiária do país. Em 1962, ele é eleito deputado federal (sempre pelo PSB). Na mesma época, sua mulher começa a treinar grupos guerrilheiros no Brasil. As ações, secretas, aconteciam em Goiás e no Rio de Janeiro. Os fazendeiros, a direita e o governo, no entanto, logo se deram conta do que se passava. Teve início, então, um processo de investigação sobre membros da ala guerrilheira das Ligas Camponesas, e um deles, Clodomir Morais, chegou a ser preso em 1962. Temeroso do que pudesse acontecer a seus quatro filhos, Julião decide mandar todos para fora do Brasil nesse período. Anatailde e Anatilde passam uma temporada estudando na então União Soviética e os dois meninos, Anatólio – hoje sociólogo – e Anacleto, que mais Negritotarde se tornaria antropólogo, vão para Cuba.

O Brasil vivia tempos conturbados. O presidente João Goulart lançava as chamadas reformas de base, que propunham uma série de mudanças na economia – com medidas como a restrição da remessa de lucros das multinacionais aos países de origem, por exemplo –, na educação, na saúde e também na questão da terra. Havia, inclusive, uma proposta de reforma agrária. Francisco Julião, porém, não compactuou com as ideias do presidente. "A postura de Julião em relação ao governo Goulart foi equivocada, como, de resto, a de quase toda a esquerda, que se radicalizou, sem perceber que isso acarretaria um golpe de Estado, que não tinha como ser enfrentado", diz o cientista político Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira no livro Francisco Julião, as Ligas e o Golpe Militar de 1964, de Vandeck Santiago.

No final de março de 1964 vem o golpe militar, e vários políticos são cassados, inclusive Julião. Ele é um dos poucos líderes esquerdistas que decidem permanecer no Brasil em vez de sair imediatamente do país. Alexina só escapou de ser presa porque estava em Cuba, visitando os filhos. Consciente de que seu pescoço estava a prêmio, Julião se esconde em um casebre no interior de Goiás. Mesmo assim, é descoberto e acaba preso. A liberdade só chegaria um ano e meio depois, quando o advogado Sobral Pinto, seu defensor, finalmente consegue um habeas corpus. Em seu período de cárcere, Julião escreve um de seus mais conhecidos livros, Até Quarta, Isabela (ver texto abaixo), uma longa carta de amor para a filha recém-nascida.

De volta às ruas, mas sem saber para onde ir e o que fazer, o líder dos camponeses sente na pele as consequências da radicalização dos anos de chumbo e percebe que, naquele momento, não há mais lugar para ele no Brasil. Julião ainda procura o Partido Comunista e a Ação Popular, grupo de guerrilha, em busca de proteção, mas a resposta é sempre a mesma: nada podem fazer, ele terá de se virar sozinho. Ficar no país, sem contar com qualquer tipo de ajuda, poderia significar a volta ao cárcere. Julião decide bater à porta de várias embaixadas, procurando asilo político, até ser aceito pela do México. Ele, então, se despede do Brasil. Já separado de Alexina, leva consigo a nova companheira, mãe de Izabela (cuja grafia Julião errara ao escrever seu famoso livro), a carioca Regina de Castro, que havia trabalhado em Pernambuco com as Ligas Camponesas.

Pouco depois Regina volta ao Brasil trazendo a filha. Julião conhece então a mexicana Marta Rosas, com quem passa a viver. No México, ele se mantém dando palestras e escrevendo artigos para revistas. Suas condições, porém, são precárias: ele mal tem dinheiro para comprar comida. O amigo Salvador Allende vai visitá-lo e chega a colocar US$ 1.000 no bolso de seu casaco. "Ele percebeu o que meu pai estava passando e quis ajudar", conta Anatailde. Em 1979, com a anistia, Francisco Julião volta ao Brasil, mas nunca mais conseguiria recuperar sua aura de líder popular.

Em 1986, ensaia uma polêmica volta à vida pública, tentando eleger-se deputado federal pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), numa união com o usineiro José Múcio Monteiro, na época no Partido da Frente Liberal (PFL), que disputava o governo de Pernambuco. Por trás da aliança inusitada estava a vontade de finalmente promover alguma distribuição de terras no nordeste, mas ninguém entendeu a opção de Julião, que teve apenas 4 mil votos, insuficientes para se eleger, e sofreu sérias críticas da esquerda – nem seus filhos votaram nele.

Desiludido, resolve deixar a política e nunca mais disputa uma eleição. Em seu último artigo para a imprensa, "As Utopias de um Homem Desarmado", publicado em 14 de dezembro de 1986 no Diário de Pernambuco, diz: "Saio dessa peleja como entrei: pobre. [...]. Não sou um político clássico. Muito menos um faiscador de votos. [...]. Não pedi votos. Deram-me. Votos de consciência, de amizade, de qualidade. Pus à prova a minha insignificância. Dei um golpe de misericórdia no meu mito".


De volta ao México, ele morre, aos 84 anos, de ataque cardíaco, em 10 de julho de 1999, ao lado da mulher, Marta Rosas, que guarda a sete chaves até hoje os originais de um livro de memórias que Francisco Julião acabara de escrever. "Ele terminou a vida pobre e é o único exilado político que permanece fora do Brasil, já que seu corpo ficou no México", diz Anatólio Julião.




Uma carta de amor


Pouco tempo depois do golpe militar que instaurou a ditadura no Brasil, Francisco Julião vai para a prisão. Izabela, a filha que havia tido com sua segunda mulher, Regina, tem apenas dois meses, e Julião teme não voltar a vê-la nunca mais. Ele não sabe quanto tempo ficará preso nem se sairá vivo. Com papel "comprado" de um guarda da cadeia, Julião escreve uma longa carta à filha, que depois é publicada em livro. Veja, a seguir, um trecho de Até Quarta, Isabela:

"Esta é uma carta de amor, somente de amor, que te escrevo do cárcere, na esperança de que um dia, daqui a dez anos, já possas lê-la [...]. Nela não encontrarás uma só gota de ódio ou de amargura. É uma carta de amor, somente de amor [...], desse amor todo feito de oferta e renúncia, de dádiva e de humildade.
Falarei, assim, do amor que me une a ti e me une à humanidade. [...]. Por isso falarei de mim também, das minhas reminiscências, dos meus sonhos, dos meus voos, das minhas quedas, dos meus encontros, das minhas fugas [...].
Irás colher ao longo da vida muitas definições e conhecer muitos caminhos. Cabe a ti, como coube a mim, a iniciativa de buscar a definição e encontrar o caminho. Só não deves te perder dentro de ti mesma como a árvore que permanece solitária no deserto. Ou te fechares em ti como a concha no fundo do mar. [...].
Embora haja quem se conduza como essa árvore e essa concha, somos mais do que isso".


O mundo pega fogo

Uma série de revoluções eclodiram pelo mundo a partir do final dos anos 1940, influenciando o pensamento político da época. Veja, a seguir, uma cronologia dos principais movimentos revolucionários das décadas mais efervescentes do século passado:
1949: proclamada a República Popular da China, após duas décadas de luta armada no país. O novo regime, comunista, adota o modelo soviético de desenvolvimento e faz uma ampla reforma agrária.
1954-1962: acontece a guerra pela independência da Argélia, então colônia da França, que entra para a história como um dos maiores movimentos de libertação nacional do século 20.
1958-1959: Revolução Cubana. Com a derrubada, em 1º de janeiro de 1959, do ditador Fulgêncio Batista, Fidel Castro sobe ao poder. Che Guevara integra o governo cubano por seis anos, até 1965, quando deixa Cuba para participar de revoluções na África e na América Latina.
1960: é a vez do Congo, na África, lutar pela independência da Bélgica, país do qual era colônia desde 1885.
1964: começa a guerra civil em Moçambique, que dura dez anos.
1965: início da participação americana na Guerra do Vietnã. O conflito teve origem em 1957, quando o sul capitalista e o norte comunista entraram em choque, dividindo o país. A fim de barrar o avanço do comunismo, os Estados Unidos enviam tropas para lutar contra os exércitos do norte, retirando-se da região somente em 1975.

Revista Problemas Brasileiros

Made in China



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Na economia mundial do século 9, duas grandes potências sobres-saíam. Uma delas era a China da dinastia Tang, um império que se estendia desde o mar do sul da China até a fronteira da Pérsia, com portos abertos para mercadores vindos de todos os pontos do globo. Os governantes Tang acolhiam as mais diversas pessoas em Changan, sua capital, erguida no local da atual Xian. Comunidades de vários grupos étnicos viviam lado a lado em uma cidade de 1 milhão de habitantes - população incomparável com a de qualquer cidade ocidental até a Londres do início do século 19. Assim como hoje, a China era uma potência econômica - e grande parte de seu poderio se devia ao comércio.

Geografia Hoje

A Idade Média pós-moderna


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Por Parag Khanna
No futuro, a globalização enfraquecerá ainda mais o Estado-nação. Um longo processo de transição em direção ao governo global será, como a Idade Média, uma época de grande insegurança. Mas a estrutura de governo da Europa irá prevalecer, mesmo nos Estados Unidos. Ela comprará seu caminho para a paz e seu modelo será copiado em todo o planeta.
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Durante a luta pela independência da Argélia, intelectuais de esquerda assinaram um manifesto contestando a política da França, e alertaram a opinião pública sobre a violência cometida pelas tropas francesas na colônia africana
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A “medicina popular” durante a epidemia de gripe espanhola[*1] de 1918 no município de São Paulo

A Capital - 06.11.1918 - Acervo APESP.

A “medicina popular” durante a epidemia de gripe espanhola[*1] de 1918 no município de São Paulo.

Leandro Carvalho Damacena Neto


“Da impotência do saber médico em dialogar com a moléstia abriu-se a oportunidade para a utilização de práticas alternativas. Ao contrário do que em outras ocasiões, nada fez a medicina acadêmica para combater o discurso não oficial sobre a enfermidade, mesmo estando esta mesma medicina em um momento critico de sua própria legalização enquanto único saber sobre os corpos e as enfermidades”.
(Cláudio Bertolli Filho: 1986, p.148)
No período epidêmico de 1918 a medicina científica comemorava as grandes descobertas da bacteriologia, a sociedade tinha no seu imaginário, que a humanidade estava livre das doenças que as acometiam desde tempos remotos, além disto consideravam a medicina como uma religião, “salvadora da humanidade”.

A moléstia de influenza espanhola veio juntamente com a população paulista questionar a crença na medicina científica, pois o saber médico oficial se tornou impotente para solucionar a crise sanitária que o desafiava. Os mecanismos de transmissão da gripe constituíam-se em uma incógnita para a medicina oficial das primeiras décadas do século XX.

As idéias e os remédios referentes às enfermidades confrontavam as premissas fundamentais da medicina oficial, essas eram veiculadas tanto por leigos quanto por pequena parte de doutores da comunidade médica. È bom ressaltar que as práticas tradicionais não deixaram de ser utilizadas devido ao avanço da bacteriologia, existia na verdade uma mescla de saberes no seio da sociedade e da própria comunidade médica, sendo utilizadas as descobertas bacteriológicas e as práticas tradicionais, que estavam arraigados no saber popular.

Para explicitarmos quais foram as medidas profiláticas apoiadas na sabedoria popular utilizadas pela população, abordaremos as memórias dos contemporâneos da moléstia. O incremento da medicina popular durante o ano de 1918 ocorre pela inocuidade e inacessibilidade às propostas terapêuticas por parte da população. Sugestões preventivas e mais ainda as curativas foram solicitadas pela sociedade flagelada pela gripe, o desconhecimento da doença pela medicina científica fez com que, na falta de uma profilaxia determinada, vários médicos começassem a receitar medicamentos na maioria das vezes ineficazes para a população, no sentido de amenizar, aliviar o sofrimento desta, tendo em vista, segundo Goulart, a pressão social a que estavam submetidos:

Historicamente, o médico tem um papel social que inclui, entre outros aspectos, a elaboração de respostas às doenças que acometem a sociedade. A explicação médica tem grande importância social e emocional, uma vez que permite ao doente compreender seu infortúnio. Um dos aspectos essenciais do papel e do poder social do médico está em sua capacidade de nomear o sofrimento do paciente. Dentro desse quadro, pode-se entender o valor do diagnóstico e do prognóstico de uma doença. Mesmo se tratando de uma doença perigosa, esses mecanismos possibilitam torná-la compreensível e emocionalmente mais aceitável que uma doença incompreensível.( GOULART: 2005, p. 114 )

A gripe espanhola tornou-se, dentro desse quadro uma doença incompreensível, tanto para os médicos, como para a sociedade. A população enferma reivindicava soluções para o mal que os acometia, e os aterrorizava:

Feche seus olhos por um momento e tente se imaginar entrando num quarto onde, num leito, se estende um corpo como o rosto azulado, cianótico, uma pessoa morrendo asfixiado como os pés pretos – o sinal de que a hora era chegada. Agora imagine que essa pessoa é um irmão, um pai, uma mãe, ou qualquer ente querido seu. Se isso acontecesse com você e sua família, é lógico que você iria querer entender o que aconteceu.[*2]

Ocorre que vários médicos utilizam-se dessas práticas populares de medicina. Tais práticas seguiam as medidas expedidas pelas autoridades oficiais, o saber leigo repetia muitas vezes o saber clínico sobre a influenza e as possibilidades terapêuticas como foram produzidas originalmente pela ciência (BERTOLLI FILHO: 1986, p. 155). Entendendo que não houve a predominância em 1918, de uma prática oficial ou de uma prática popular, no ápice da epidemia as duas falas tornaram-se aliadas para o tratamento da população.

Ressaltamos que no período da hegemonia da medicina científica, um pouco antes da epidemia de gripe, grande parte da comunidade médica clínica, rejeitava as práticas da medicina popular, considerando os curandeiros e benzedeiras como charlatães que se aproveitavam do leigo para obter vantagens pecuniárias, vendendo remédios ineficazes e placebos. Durante a fase epidêmica na capital paulista, desenvolveu-se um comércio com a intenção de angariar lucros. Divulgam em jornais da capital paulista remédios que eram utilizados, antes da epidemia para outras finalidades, indicando-os para o tratamento da gripe, conforme assinala Bertolli Filho que aponta para os descaminhos da propaganda durante a fase epidêmica:

A lógica que dirigia o discurso propagandístico era ditada antes pela busca do lucro do que pela prevenção e cura dos gripados, daí a incorporação nos anúncios tanto do ideário médico oficial quanto o da medicina popular, na expectativa de maximalizar a venda dos produtos apresentados. ( BERTOLLI FILHO: 1986, p. 162-3)

Remédios que antes da epidemia de influenza eram utilizados para outras finalidades foram adaptados especificamente para o tratamento da população:

(...) O que geralmente ocorria era a adaptação de antigos anúncios às necessidades surgidas com a gripe espanhola, procedendo-se à atualização do discurso propagandístico e a conseqüente redefinição ou extensão das propriedades terapêuticas dos produtos anunciados. Somente a partir dessa operação, que tinha como objetivo seduzir o receptor da mensagem, é que se tornou viável o anúncio como específico para o combate da Influenza de drogas como o Maleitosan que tanto a marca de venda quanto décadas de propagandização haviam popularizado como um remédio próprio para o combate à malária. (Idem, p. 163)

A desconfiança frente à medicina acadêmica levou a população a procurar uma resposta para o desconhecimento da doença de gripe. A medicina caseira ou popular viveu seu apogeu durante a epidemia, diante da ineficiência das drogas indicadas nos receituários médicos.

A sociedade cada dia mais vitimada pela gripe, não iria ficar esperando de “braços cruzados” a epidemia ceifa-lá totalmente, A população tinha a sua disposição os saberes populares, então por que não utilizá-los? Foi exatamente isto que ocorreu no ano de 1918, sendo que muitos dos que não tinham acesso aos tratamentos e medicamentos da comunidade médica acabaram se beneficiando de suas vantagens, menos como terapias alternativas e mais como única forma de tratamento gratuito disponível. Na memória dos contemporâneos da epidemia de influenza espanhola, obtemos informações mais precisas sobre os remédios populares. A partir daí percebemos a grande ascensão que teve a medicina popular naquele ano para o tratamento da doença de gripe:

Foi uma gripe tão agressiva que já não davam conta de fazer remédios. Só limão. Numa certa hora acabaram também os limões em São Paulo. Eu comia pouco, só tomava água com limão. (BOSI apud BERTOLLI FILHO: 1986, p. 159 )

A utilização de produtos naturais pelos enfermos se tornou uma crença na cura da doença, grande parte da população tinha em produtos como o limão, o alho, o quinino, e o sal, a única esperança para curar e prevenir a gripe espanhola. Ressaltamos que muitas pessoas com condições de obter tratamento médico oficial recorreriam à medicina popular. Muitos desses utilizavam medicamentos populares que eram receitados por diverso esculápios com a finalidade de “aliviar” a população com uma terapêutica específica.

Entre as práticas médicas e populares durante a epidemia de gripe espanhola temos o “ressurgimento” de teorias consideradas ultrapassadas como a teoria do miasma, para a qual as doenças se originavam a partir de certas condições atmosféricas e climáticas específicas, existentes em determinados locais. Algumas medidas adotadas pelas autoridades sanitárias ou recomendadas pelo próprio costume tinham base na concepção miasmática das doenças, como, por exemplo, a prática da fumigação, entranhada na memória popular:

A sugestão para a queima de alcatrão, para limpeza do interior de edifícios pouco higiênicos, bueiros, ratos e fezes de animais (...) inalações de vaselina mentolada, os gargarejos com água e sal, com água iodada, com ácido cítrico, tanino e infusões de plantas contendo tanino, como folhas de goiabeira e outras (...) como preventivo, internamente, pode-se usar qualquer sal de quinino nas doses de 0,25 a 0,50 centígramos por dia, devendo usá-los de preferência no momento das refeições para impedir os zumbidos nos ouvidos, os tremores etc. ( BERTUCCI: 2003, p. 109 )

As doses do quinino foram controladas com maior rigidez em medidas estipuladas, sendo aconselhado o uso após as refeições, pois o quinino poderia deixar a pessoa inconsciente. O uso abusivo dessa substância pela população enferma na cidade de São Paulo foi uma constante, muitos utilizavam altas doses, ocorrendo assim desmaios em plena rua, sendo muitas pessoas confundidas com mortos, e levadas para serem sepultadas ainda vivas, conforme relatos estarrecedores difundidos como verdadeiras lendas urbanas durante e após a epidemia gripal.

A teoria miasmática exerceu grande influência na interpretação da doença de gripe e nas medidas adotadas pelo Serviço Sanitário Estadual, uma dessas interpretações é que a origem da epidemia de gripe espanhola de 1918 se deu a partir da Guerra no continente Europeu:

A Guerra Européia em toda a sua extensão e violência havia interferido inclusive nas leis naturais que regiam o universo; Imunação imperfeita de milhares de corpos, a decomposição do sangue derramado nos campos de batalhas, a ausência de higiene nas trincheiras, deflagração de milhares de projéteis e explosivos alteraram a atmosfera e a natureza de todo o globo (...) as mudanças ocorridas na atmosfera causou alterações nos micróbios que ganharam uma virulência ímpar. ( BERTOLLI FILHO, op cit. , p. 156-7)

A medicina popular surgiu então como alternativa diante de uma doença desconhecida. A proliferação de receitas milagrosas, chás, emplastos, beberagens diversas espelham as insatisfações da população com a falta de atendimento adequado, com a impossibilidade de estabelecimento de um diagnóstico preciso, pela ausência de estratégias do governo e das autoridades sanitárias. “Desconhecido o agente causador da doença de gripe, a solução foi à utilização de uma profilaxia individual e sintomática, constituindo assim uma terapêutica heterogênea” (GOULART: 2005, p. 112 ), até mesmo a aguardente tornou-se medicamento bastante utilizado como preventivo da moléstia:

O botequim da rua do Thesouro e a Casa Pomona, no Largo da Sé, passam os dias repletos. Extranhando esse facto, procuramos saber a sua causa. Entramos no Pomona, dispostos a dar dois dedos de prosa com qualquer dos garçons. Não foi necessário. Um apreciador da branquinha, que entoava desafinadamente a “Pinga com Limão, Cura a urucubaca”, forneceu-nos indirectamente a explicação que buscávamos. Pinga com limão, si cura a urucubaca, também pode curar a influenza.[*3]

A população estava à procura da cura e prevenção da doença de gripe, a medicina popular e sua farmacologia constituiram-se numa crença ou esperança para a sobrevivência à epidemia, pois o saber médico, acabou deixando a população, parafraseando Max Weber, em uma “Gaiola de Ferro” ( WEBER: 2004, p. 135):

Cada médico tinha uma “tentativa” de explicação diferente; nós não sabíamos no quê e em quem acreditar. Esperávamos por uma explicação que ninguém tinha para dar, como até hoje esperamos para saber o que foi aquela sassânida infernal.[*4]

Assim a população mostrou-se cética diante de um discurso que proclamava o “fim das enfermidades” que acometiam a humanidade buscando forças, crença e esperança na memória popular, ou seja, na tradição, tão desacreditada pela modernização em curso naquele período. Não é possível falar em impotência do saber popular, uma vez que esse saber permitiu que a população acreditasse de novo na possibilidade de sobrevivência, foi ele que constituiu o imaginário de grande parte da população, que se tornou sobrevivente do flagelo de gripe espanhola no ano de 1918.

Bibliografia

BERTOLLI FILHO, Cláudio. Epidemia e Sociedade: a gripe espanhola no município de São Paulo. SP, 1986, 482p. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
BERTUCCI, Liane Maria. “Conselhos ao Povo”: Educação contra a Influenza de 1918. Cad. Cedes, Campinas, v. 23, n. 59, p. 103-117, abril 2003 (Disponível em http://www.cedes.unicamp.br)
_____________________. Entre Doutores e para leigos. Fragmentos do discurso médico na Influenza de 1918. Hist., ciênc., saúde. Manguinhos, abr. 2005, vol. 12, n. 1, p. 143-157.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Lembranças de velhos. São Paulo: TAQ/ Edusp, 1987.
GOULART, Adriana da C. Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro. Hist., ciênc., saúde. Manguinhos, vol. 12, n. 1, p. 101-42, jan.-abr. 2005.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Trad., Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2004.
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Revista de Histórica - Arquivo Público do Estado de São Paulo