segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Como os piolhos derrotaram o exército de Napoleão

Frank Thadeusz
A invasão da Rússia fracassou de forma miserável, deixando um rastro de corpos de Moscou até Paris. Em um novo livro, um historiador atribui o fracasso do Grande Exército de Napoleão não à marcha no inverno, mas à proliferação da "praga da guerra" - o tifo.

Bonequinhos que eram usados pelo imperador francês Napoleão Bonaparte para montar suas estratégias de guerra, expostos no Museu de Arte Brasileira, em São Paulo, em 2003

O destino do Grande Exército de Napoleão já estava selado muito antes que o primeiro tiro fosse disparado. Na primavera de 1812, mais de 600 mil homens marcharam em direção à Rússia sob o comando do pequeno nativo da Córsega - um exército maior do que a população de Paris na época.

O massivo exército estava à caminho para derrubar o czar russo Alexandre 1º. Mesmo assim, muito antes de a luta começar, alguns soldados deixaram as fileiras e caíram ao lado da estrada. Será que esses homens estavam simplesmente bêbados, ou havia algo mais em ação?

Dado o grande número de soldados à caminho, ninguém percebeu os poucos bêbados abandonados. Não até que, 200 anos mais tarde, veio à tona o fato de que essas primeiras mortes da longa marcha de Napoleão não se tratavam de alcoólatras incuráveis, e sim marcaram o começo do declínio do exército.

Esta é a hipótese de Stephan Talty, autor americano que reconstruiu a história médica da malfadada campanha de Napoleão na Rússia em seu novo livro, "The Illustrious Dead: The Terrifying Story of How Typhus Killed Napoleon's Greatest Army" ["Os Mortos Ilustres: A Terrível História de Como o Tifo Destruiu o Grande Exército de Napoleão", em tradução livre]. Talty cuidadosamente documenta porque 400 mil homens nunca voltaram para casa. Como poucos historiadores antes dele, Talty ilumina o papel crucial de um minúsculo inimigo: o piolho.

Por fim, a espinha dorsal do exército não foi quebrada pelos cossacos nem pelo impiedoso inverno russo, mas sim pelo typhus exanthematicus, disseminado pelos parasitas. Essa é a conclusão de uma pesquisa que começou em 2001 com uma descoberta chocante: uma vala comum com dois mil corpos em Vilnius, capital da Lituânia.

Primeiro, os escavadores acharam que as vítimas tinham sido mortas pela KGB, ou que eram judeus assassinados durante a ocupação alemã.
Mas ao examinar as fivelas dos cintos e botões dos uniformes com números gravados, os arqueologistas desvendaram o mistério. Os mortos, descobriram, eram soldados do Grande Exército de Napoleão.

Os pesquisadores recolheram amostras de DNA dos dentes dos mortos.
Análises laboratoriais revelaram que muitos dos corpos que haviam sido enterrados às pressas continham patógenos que correspondiam com o que era conhecido na época de Napoleão como a "praga da guerra".

Em detalhes minuciosos, Talty explica como a mistura de incompetência, ingerência e ignorância de seu comandante derrubou um exército que poderia povoar uma cidade de tamanho médio na Alemanha atual. Só na primeira semana de campanha, 6 mil homens ficaram doentes. "O número de doentes se tornou alarmante, e eles se arrastavam pelas estradas onde muitos morriam", observou o médico belga J.L.R. de Kerckhove.

"Napoleão não dava a mínima para quantos soldados morriam no caminho", escreveu o comandante de batalhão das forças alemãs Friedrich Wilhelm von Lossberg a sua mulher. O imperador tinha uma visão pouco sentimental em relação aos doentes e moribundos.

Sua equipe de médicos, muitos dos quais acreditavam ferrenhamente na obscura teoria de que os "miasmas" do ar ruim transmitiam doenças, ficaram atônitos com a rápida proliferação da praga. Essas crenças eram produto da época: ninguém ainda havia proposto a ideia dos germes, muito menos a ideia de que a doença poderia ser transmitida por piolhos. Nos hospitais ao longo da rota, os doentes graves eram colocados ao lado de homens que ainda estavam saudáveis, o que fez com que as vítimas mais recentes não fossem capazes de se recuperar.

A higiene ruim abriu caminho para a infestação generalizada de piolhos. Dentro de dez a 14 dias, os primeiros sinais de infecção - febre alta e dores de cabeça terríveis - começavam a aparecer. Logo os tremores e a exaustão se instalavam. As vítimas desenvolviam erupções e inflamações; e por fim ficavam tão fracas que mal podiam erguer um copo d'água.

Hoje, os médicos podem tratar as infecções facilmente com antibióticos. Mas fora a sangria, as ervas e uma mistura de vinho, água e um pouco de suco de limão, os médicos da época de Napoleão não tinham nenhum remédio eficaz para a doença. O médico-chefe de Napoleão, Dominique-Jean Larrey, sofreu para explicar as mortes em massa. A melhor hipótese que ele conseguiu formular tinha a ver com a chuva constante, a exaustão física e o abuso de bebida.

Quando o exército de Napoleão chegou a Moscou, suas tropas enfraquecidas não tinham forças para conquistar a cidade. Em 19 de outubro de 1812, Napoleão deu meia-volta com o exército doente e dirigiu-se para casa.

No caminho de volta, os soldados famintos e febris chegaram em Vilnius como zumbis. Desesperados por comida, alguns tentaram comer espécimes embebidos em formol dos laboratórios da universidade da cidade.

Pouco depois de seu retorno a Paris, Napoleão divulgou um boletim com a intenção de espalhar notícias reconfortantes por todo o império: "A saúde de Sua Majestade nunca esteve melhor".

Tradução: Eloise De Vylder

DER SPIEGEL

domingo, 30 de agosto de 2009

A Ditadura das Imagens

Menino em comemorações do Dia da Independência. (Arquivo em imagens; acervo Última Hora. Série política; nº 4. Divisão de Arquivo do Estado. São Paulo: Arquivo do Estado, 1999, p. 143).

A seleção brasileira de futebol junto de Médici.(Arquivo em imagens; acervo Última Hora. Série política; nº 4. Divisão de Arquivo do Estado. São Paulo: Arquivo do Estado, 1999, p. 140).

Médici ergue a taça Jules Rimet. (Arquivo em imagens; acervo Última Hora. Série política; nº1. Divisão de Arquivo do Estado. São Paulo: Arquivo do Estado, 1999, p. 65).
Adilson José Gonçalves


Este artigo tem como objetivo problematizar a utilização de fontes imagéticas gestadas no processo de comunicação da Ditadura Militar e nas formas variadas de resistência como registros para a investigação histórica, apresentando alguns temas para o seu dimensionamento.

Silêncio e iconografia

Vasto o campo que se abre para o historiador ou o estudioso da Ditadura que se debruça sobre as fontes imagéticas. O período de ação dos militares é extremamente rico em imagens, apesar da ação deletéria da Ditadura Militar na destruição sistemática dos nossos acervos documentais.

Como todo processo da longa trajetória da Ditadura foi marcado pelo discurso do desenvolvimento e modernização com segurança e controle, a iconografia representou, na construção de seu ideário e disseminação, um dos elementos fundadores das estratégias de manipulação e controle, além de ser um dos índices da própria modernização e desenvolvimento que os militares apregoavam para o propagar o mito do Brasil Grande.

A produção de imagens quer na cinematografia, na profusão do fotojornalismo, na disseminação da TV, no volume de cartazes, na construção das cidades e seus ícones, torna-se emblemática da modernização autoritária. Essas mesmas variedades de canais de comunicação e multiplicidade de registros sob a égide da propaganda/censura são fontes primorosas para o historiador atento e para os demais estudiosos sequiosos de compreender, retratar, inventariar e denunciar as atrocidades do período.

Podemos usar uma figura de retórica ou parodiar os paradoxos da Ditadura Militar e dizer que nos deixou um legado significativo de registros que dizem da ditadura das imagens, tal o seu significado numérico e sua representatividade enquanto inventário de uma época e os seus atributos nos próprios desígnios da ação militar e da resistência a estes. Temos um rico mosaico de interpretações que nos permitem enfoques dos intrincados processos de repressão e resistência, além dos mecanismos de tomada de posição face ao instituído, apontando para as inúmeras modalidades de resistência possíveis e historicamente configuradas.

Podemos aquilatar a diversidade de grupos envolvidos na resistência, as estratégias de ação, sedução, envolvimento e os procedimentos utilizados pelos ditadores e seus aliados e agenciadores.

De forma paradoxal, a profusão de registros iconográficos diz de um Brasil que fica longe do cotidiano das experiências sociais mais significativas do momento, mas que, interpretados sob a égide da crítica historiográfica, tornam-se extremamente elucidativos da própria trajetória da Ditadura e de seu grande paradoxo: informar para envolver e camuflar/negar, mas também para evidenciar, anunciar e propagar.

Fator de fundamental importância para se pensar a produção visual e suas expressões e presença na dinâmica social é a questão da censura/repressão. Os aparatos repressivos tiveram sistemáticas muito próximas, tanto os nacionais e estaduais, bem como os municipais. Apesar do controle rígido exercido pelo poder central, a relativa autonomia das facções locais foi uma realidade. Também deve ser levada em conta a especificidade das conjunturas ou correlação de forças entre os grupos sociais, facções de classe e grupos de interesse envolvidos em situações particulares, definindo, assim, a abrangência, amplitude e intensidade da repressão e possibilidades de expressão da resistência na produção intelectual, estética e na comunicação social.

As imagens trazem o registro do vivenciado, flagrado com o intuito de veiculação de informações a partir de uma ótica de visão, aquela vincada pelos interesses de quem as produziu. Analisá-las, portanto, tem o objetivo primeiro de identificar interesses em jogo nas articulações políticas, indicando, perspectivas, possibilidades e intenções de se lidar com a memória e história. Para tal, se faz imprescindível a identificação dos mecanismos técnicos, os instrumentos de produção de mensagens, as formas de organização da linguagem imagética e as possibilidades de exposição e acesso público do material produzido no período em que foram produzidas as imagens. Quando o produtor é oficial, isto é, articulada a estrutura de controle, sua produção tem canais específicos de exposição, buscando atingir contingentes significativos da população, ou se direciona para interlocutores específicos, face às demandas dos acordos internacionais, dos interesses dos grupos políticos e sociais envolvidos, bem como dos pressupostos ideológicos a serem propagados.

Ao ser o produtor de imagens integrante dos grupos de resistência contra os ditames do regime ditatorial, as formas de registro, armazenamento e disseminação dos registros impulsionam outra dinâmica de análise, pois a própria dificuldade enfrentada pela produção no calor da hora, na historicidade da repressão e luta, impõe modalidades de produção totalmente diferenciadas daquelas encontradas pelos donos do poder. Assim, muitas vezes as técnicas utilizadas são menos sofisticadas, principalmente nos momentos de maior controle, quando foi se perdendo a possibilidade de produção em grandes estúdios, laboratórios de jornais bem equipados ou de instituições de defesa dos direitos civis. Apesar das dificuldades, foi produzido farto material extremamente rico e esteticamente valioso. O caráter efêmero dos materiais de contestação denuncia/impõe o ritmo na produção e sistematização dos registros feitos, que os diferencia muito dos oficiais, não só pelos interessem em jogo, mas principalmente pelo caráter emergencial que marcam sua trajetória enquanto documentos históricos.

A questão da comunicação na trajetória da Ditadura

O Golpe Militar foi gestado durante longo período. Há versões distintas na historiografia, mas fica evidente que os interesses americanos e imperialistas foram uma presença significativa na sua concretização. Tal se objetivou no apoio logístico e financeiro na consolidação do Golpe e da própria manutenção da Ditadura Militar.

A articulação do Golpe Militar expressou a sistemática oposição ao nacional desenvolvimentismo e as chamadas reformas de base preconizadas pelo governo Jango. Os prestistas difundiam a perspectiva de uma situação de fácil transição para o comunismo, apresentavam o período pré-64 como revolucionário, acirrando as contradições e tomada de posição dos golpistas.

Muitos, na verdade quase toda a esquerda brasileira, interpretaram aquele período malfadado como de ascenso e avanço revolucionário. Mas de fato ele nada mais serviu que para preparar o golpe de abril e o encastelamento no poder das mais retrógradas forças de reação. (PRADO JR., 1981, p. 23)

Os olhares americanos estavam voltados para o Brasil face ao papel que o país poderia desempenhar na configuração da posição da América Latina frente ao próprio imperialismo e dentro do rol das questões apontadas pela Guerra Fria que se acentuaram face à vitoriosa Revolução Cubana de 1959.

Os movimentos sociais, tanto urbanos quanto rurais, estavam em efervescência. A produção intelectual, artística e a ação dos grupos da sociedade civil estavam articulados no sentido de buscarem alternativas ao modelo de desenvolvimento capitalista dentro dos marcos do populismo com nítidas orientações nacionalistas, não descartadas as perspectivas de luta pela instauração de práticas socialistas. No entanto, as condições concretas não apontavam para o amadurecimento de uma luta anticapitalista de fato.

Contudo, apesar daquelas circunstâncias altamente favoráveis à maturação do processo revolucionário brasileiro, o que se tem visto, afora agitação superficial, por vezes aparatosa, mas sem nenhuma profundidade ou penetração nos sentimentos e na vida da população, afora isso, o que há de real é a estagnação daquele processo revolucionário. Ou, pior ainda, a sua degenerescência para as piores formas de oportunismo demagógico, explorando as aspirações populares por reformas. Foi esse espetáculo que proporcionou ao país o convulsionado governo deposto a 1.º de abril. (idem, p.22-3)

Na realidade, confunde-se o processo de instauração de um verdadeiro processo democrático burguês com as perspectivas revolucionárias. A elite mais retrógrada sente-se ameaçada com a perspectiva da democratização com a concretização das reformas de base e o atendimento das necessidades mínimas dos segmentos operários do campo e da cidade.

Assustava-os a possibilidade da democracia social de Brizola – considerado pela direita como a extrema-esquerda do leque político, mais radical do que os prestistas – e da gestação de um “getulismo de massas” a gerar a instabilidade do próprio sistema do capital. (LABAKI, 1986, p. 148)

Os militares passam a justificar a necessidade de uma intervenção para controlar os descalabros da anarquia da chamada república sindicalista, apontando para necessidade da manutenção da ordem, da luta pela moralização e contra a corrupção. A presença da CIA foi marcante, bem como o fomento à produção de materiais de divulgação e aos de grupos de estudos para promover a disseminação da ideologia da segurança nacional, dos princípios da Guerra Fria e das necessárias articulações para a contenção do chamado “perigo vermelho”. Todos os grupos que assumiam as premissas da preocupação com os direitos da cidadania, com os interesses do mundo do trabalho, com as questões relacionadas à posse da terra e do popular em qualquer uma de suas esferas de abrangência, apresentavam-se como elementos perigosos e tornavam vulneráveis os interesses do capitalismo atrófico e do imperialismo, ou de outra maneira, eram inimigos confessos na dinâmica da Guerra Fria.

Os investimentos americanos em comunicação foram ostensivos. A sistemática da comunicação de massas para a elite - a burguesia, os militares, intelectuais que se tornaram orgânicos do militarismo - e para os segmentos formadores da opinião pública envolveu a montagem de institutos de pesquisa, a penetração nas instituições de ensino, a presença na formação ideológica e logística do exército, a produção massiva de cartazes, folders, folhetos, bibliografia, bem como a montagem de seus locais de produção com tecnologia arrojada.

A Igreja foi forte aliada na propagação dos princípios da propalada democracia burguesa e cristã, posição que foi radicalmente transformada nos chamados anos de chumbo. Portanto, um elo fundamental nas estratégias de comunicação dos golpistas. Foram utilizados os púlpitos como lócus para a divulgação das estratégias, princípios e objetivos da Guerra Fria/santa contra a ameaça do comunismo. Além dos púlpitos, os espaços das igrejas, tanto internos quanto externos nas regiões privilegiadas das cidades, mas principalmente nas periferias, foram utilizados para a projeção de filmes produzidos nos tais institutos de pesquisa, apontando sistematicamente para o papel da família na manutenção e defesa da ordem cristã, que poderia ser lida como capitalista ocidental, dentro dos parâmetros da ideologia da segurança.

Os ânimos se acirram. A ideologização dos movimentos sociais e da ação política tornou-se mais contundente. A produção estética estava rompendo com os cânones instituídos, buscando temas, abordagens e engajamento com as questões sociais e políticas mais candentes frente à historicidade das lutas sociais.

Às conjunturas específicas corresponderam formas particulares de se lidar com os canais de comunicação e estratégias de divulgação dos propósitos, atos e paradigmas da ação militar. A comunicação de massa foi amplamente utilizada durante toda sua trajetória como instrumento de propagação da ideologia da segurança nacional, do desenvolvimentismo, do crescimento econômico, da modernização do parque industrial, da desenvoltura agrícola, da produção de bens de consumo duráveis e imediatos, da circulação de mercadorias, dos avanços tecnológicos, das questões associadas à produção de energia elétrica e nuclear, da proeminência dos militares na projeção internacional do Brasil e das necessárias escaramuças e ações de repressão aos movimentos da chamada subversão. Os órgãos de imprensa e a indústria cultural foram totalmente silenciados quando hostis aos interesses da Ditadura, sendo alinhados aos seus ditames, apesar da resistência expressiva de alguns setores.

Papel de destaque na comunicação de massas foi exercido pela mídia televisiva e radiofônica que se enquadrara totalmente na divulgação da ideologia que embasava a Ditadura. A constituição e utilização dos horários ditos nobres de audiência foram uma sistemática nos pronunciamentos e divulgação das propagandas do estabelecido e do que se objetivava instituir. Manteve-se a Hora do Brasil como programa da radiodifusão dos atos e preceitos do Estado e valeu-se amplamente dos recursos inovadores e incisivos da Rede Globo.

Claro está que os ideólogos da Ditadura e seus agentes estavam presentes em territórios privilegiados para controlarem a produção cultural e aquela voltada para a comunicação de massa, apontando diretrizes, cerceando ações e iniciativas e incentivando verdadeiras campanhas de convencimento e formação da opinião pública favoráveis aos seus interesses. As manifestações de rua, as chamadas ações terroristas, a panfletagem, o aprisionamento de lideranças tradicionais, as reuniões de grupos de resistência, a destruição de locais de reuniões para produção cultural associados à esquerda e aos movimentos populares, os seqüestros, os assaltos aos bancos na conjuntura do recrudescimento da Ditadura no pós-AI-5, pontuaram os noticiários, bem como as propagandas oficiais nas diversas mídias.

Com a maior violência da repressão a partir da decretação do AI-5, da instauração oficial da Segurança Nacional com um maior número de atos institucionais e com a presença ostensiva dos aparatos de repressão, a situação dos movimentos de oposição e resistência encontravam-se em circunstâncias mais complexas, sendo a censura e o controle muito mais rígido e ferrenho. A contrapartida da repressão foi o chamado milagre, que buscou sustentação social nos grupos favorecidos pela conjuntura econômica, tentando envolver os segmentos populares, através da mídia, principalmente via TV e rádio. Campanhas associadas ao desenvolvimento, ao futebol como subterfúgio com a Copa de 1970 sugerem a campanha de banimento e expulsão de opositores, além do estímulo às denúncias. Inaugura-se um procedimento peculiar na Ditadura, que se traduziu no processo de envolver segmentos expressivos da população no convencimento de que aqueles que não estejam contentes ou sejam favoráveis aos destinos do país que o deixem.

Amplamente divulgados foram os slogans “Brasil. Ame-o ou Deixe-o” e “Ninguém Mais Segura Esse País”. As cores da bandeira eram associadas às palavras de ordem, bem como o uso da própria bandeira.

A Ditadura se valia de quaisquer meios para atingir seus objetivos que apontavam na propaganda como sendo os da nação como representação máxima das necessidades e potencialidades da brasilidade, de sua segurança e perspectivas de desenvolvimento harmônico. O intruso, o desleal, o contrário, aquele que representava o fator de desagregação deveria ser extirpado e aniquilado. Assim, estar contrário ao regime era ser de antemão antipatriota, entreguista, a favor de ideologias e paradigmas que não diziam respeito à trajetória histórica e aos interesses do país. Portanto, deveriam estar fora do cenário político e social, não eram cidadãos, mas sim criminosos, os tão propalados subversivos, que mereciam todas as formas discricionárias de tratamento. A bandeira do banimento/abandono do solo pátrio foi uma justificativa para o assassinato e perpetuação dos aparatos repressivos e da ostensiva ação militar no controle dos movimentos sociais populares e de resistência.

Outro canal de comunicação muito utilizado pela Ditadura no recrudescimento foi a produção de cartazes com os procurados, com os chamados inimigos da ordem. Inúmeros foram esses cartazes e vários os locais de sua ostentação. Os aeroportos eram lugares privilegiados para a sua exibição, apontando as portas de saída do país como elementos expressivos no controle dos movimentos internos.

Locais da Memória ou Centros de Pesquisa

Inúmeros e diversificados são os locais da memória ou os centros de armazenamento dos registros iconográficos produzidos durante o período da Ditadura Militar, podendo ser classificados pelos tipos de registro e fonte, pela forma de organização e sistematização dos acervos, pelo estatuto jurídico, como a partir das finalidades políticas, ideológicas e em termos de formação de opinião a que se destinam ou os princípios e objetivos para os quais foram constituídos.

Sem dúvida que os acervos mais ricos e abrangentes são aqueles constituídos pelos próprios aparatos de repressão que tudo flagrou, registrou e inventariou, não só como forma de controle, mas também para divulgação das estratégias de ação, dos procedimentos de coação e de propagação das realizações com intuitos ideológicos face ao cenário internacional e o enfrentamento das diferenciadas formas de resistência. Arquivos de peso foram constituídos pela CIA no seu afã de controlar, manipular e ampliar sua esfera de ação na América Latina, lastreando os próprios princípios e práticas da Guerra Fria. Cópias de documentos oficiais que expressam a dinâmica do poder, as suas relações internacionais, bem como as mais diferentes formas de resistência ao regime devem e podem ser inventariados por meio dos acervos constituídos pela agência norte-americana.

Fragmentos da Memória Iconográfica

Um aspecto importante a ser salientado na análise iconográfica sobre a Ditadura Militar é que a sua produção e divulgação não se restringem ao período classicamente definido como o dos militares no poder. Devemos atentar para a produção de imagens que precederam e sucederam o período, pois são registros de divulgação, estratégias de sedução e formas de perpetuação dos interesses dos grupos envolvidos. Nesse sentido temos uma vasta produção iconográfica nas diversas mídias e linguagens durante todo o período de gestação do Golpe que pode ser definido de maneiras distintas conforme o recorte historiográfico ou os elementos salientados na configuração de seu percurso.

Algumas imagens são marcantes da trajetória da Ditadura. Optamos por identificar algumas que ao nosso ver marcam de maneira indelével sua trajetória.

Imagens da cidade e do cotidiano

A repressão e a presença ostensiva do exército nas ruas explicita a construção de uma identidade urbana, onde as botas, o uniforme, os fuzis e os capacetes passam a ser símbolos da ordem e dos territórios controlados. As cidades que foram cenários para expressão de manifestação de massas no período que antecede o Golpe Militar e durante os primeiros anos da Ditadura passam a ser sistematicamente ocupadas pelas milícias. Se fosse local de subversão deveria ser representado e constituído como lócus da ordem, da circulação de mercadorias, da expressão do progresso e da construção da modernidade autoritária.

Gradativamente as imagens do fotojornalismo, as vicissitudes da correlação de forças e das conjunturas políticas que marcam cada temporalidade, apontam para a cidade da luta, onde o cenário urbano é esvaziado das manifestações e apontado como local da presença ostensiva do exército e das milícias vitoriosas.

O cotidiano flagrado através das imagens é altamente policiado, apontando para os constantes atos de repressão e a convivência com a ostentação do poder nas ruas, nas fábricas, nas residências, escolas, universidades, entidades de classe e todos os territórios possíveis da repressão.

Como territórios privilegiados para a ostentação do poder e expressão dos sinais emblemáticos do status quo, enaltecimento do civismo e importância dos militares, tornou-se lugar de constantes manifestações das comemorações das datas ditas cívicas, com amplos festejos e paradas das datas da Pátria, como Tiradentes, Sete de Setembro, Proclamação da República, Dia do Soldado, a data comemorativa da chamada Revolução de 64 – eufemismo para o dia do Golpe.

A miséria, a mendicância, a ação de transeuntes que suscitavam suspeitas de subversão à ordem ou ligação com grupos que estavam na clandestinidade apontavam para uma ameaça eminente, devendo, sistematicamente, ser reprimidos, investigados e sumariamente impedidos de circulação.

Tais situações quando vindas a lume na imprensa poderiam apontar para formas de resistência ou denúncia, mas, na conjuntura do AI-5, estavam mais direcionadas à demonstração do controle que o Estado e o Exército exerciam. Em outros termos evidenciava-se que não haveria como resistir, pois os tentáculos da ordem estavam presentes em todos os lugares e deles era impossível escapar.

Em contrapartida, muitas são as fotos e testemunhos da resistência e das ações coletivas contra a Ditadura, porém foram veiculadas em momentos de ação menos contundente da censura e em épocas em que as manifestações eram ostensivamente difundias e massivas. As três grandes temporalidades nas quais encontraremos registros e sua divulgação na mídia sobre a oposição aparecem logo após o golpe, em 1968, e a partir do movimento de distensão, mais explicitamente quando da emergência da luta pela anistia e redemocratização.

Resistência no mundo das artes – a charge

Segundo os registros históricos, a resistência do meio artístico e da intelectualidade se fez sentir logo à impetração do Golpe. No entanto, apesar de atuações pontuais, os artistas plásticos não se colocaram de imediato enquanto categoria contrária ao Golpe com manifestações expressivas. Os artistas que se articularam de imediato foram os ligados aos CPCS da UNE ou que nele tiveram sua trajetória, aqueles vinculados aos movimentos de construção de uma nova ordem política, social e estética de longa data envolvidos com a historicidade das lutas sociais associados à produção do teatro, do cinema, da literatura e muitos ligados às atividades plásticas de caráter mais pragmático, como a produção de charges e cartum, que tiveram uma expressão significativa na resistência e na exposição de críticas ao sistema, apesar de todo o peso da censura.

Na continuidade de suas atividades e em alguns casos numa franca repugnância ao militarismo ditatorial imposto, artistas, músicos, escritores e intelectuais foram ardilosos, criativos e ousados para driblarem a censura na exibição de suas obras, e os cartunistas tiveram o desafio de denunciar com humor e ironia os fatos mais cotidianos desse cenário nacionalista ufano e repressor em que seus atores sociais arfavam de medo, alerta e resistência. No cartum e na charge as expressões se espalharam por todo o país, tendo alguns centros se sobressaído, como Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Pernambuco.

Estavam presentes na imprensa diária, quando possível, durante os primeiros tempos da Ditadura até mais ou menos a promulgação do AI-5, e posteriormente ao chamado processo da abertura, notadamente a partir de meados dos anos 70.

Uma charge de uma família frente à TV apareceu na imprensa diária, apresentando uma consciência nítida e clara do próprio papel desempenhado pela mídia no cotidiano de contingentes expressivos da população, principalmente a urbana. A imagem aponta a família em torno da mesa, que está posta para uma refeição, e seus integrantes com as colheres nas mãos, os pratos vazios, os olhos voltados para a tela da TV que estava sintonizada na Globo. A TV ocupava o espaço de um integrante ausente, o pai, o chamado chefe da família, que deveria estar ocupado com outras atividades, mas que tranqüilamente poderia ser substituído no momento da conversa, troca de confidências e orientação do dia-a-dia da família pelas informações veiculadas pela mídia. Esta substituía as confabulações, as trocas de experiências e apontava para a ausência do diálogo como uma prática salutar aos desígnios da manutenção da ordem e do bom tom nas tramas da sociabilidade.

A alegoria do pão e circo é evidente na estandardização do aparelho de TV e na sua sintonia e na ausência da consciência e da nutrição em detrimento da massificação, da penetração da mídia e o grande investimento na aquisição do aparelho de recepção em detrimento do alimento. Essa substituição do alimento pelo entretenimento causa a adulteração da consciência e da cultura, sintomas de uma situação de exceção e da própria construção da indústria cultural e da cultura de massas. Associa-se a TV à manutenção da ordem, aos destinos da família e dos movimentos sociais urbanos, apontando para a articulação entre os interesses nacionais e internacionais pelo próprio processo de gestação da tecnologia utilizada pela rede de TV em tela.

A expressão maior da charge, no entanto, teve sua maior evidência com a emergência da chamada imprensa alternativa, tendo no Pasquim seu canal de expressão privilegiado, além de outros, é claro.

Questões emergentes ou problemas a serem enfrentados

História e iconografia são vasos comunicantes, caminhos que se cruzam, fragmentam e determinam-se mutuamente, apresentado-se como indissociáveis na produção, gênese e interpretação. Assim, o fazer história, no sentido do vivenciado, e o produzir conhecimento histórico, no sentido da ciência, encontram-se indissolúveis quando utilizamos imagens como registros. Trabalhar com iconografia em história tem o sentido de resgatar aspectos de uma totalidade parcial que não se torna factível pela análise de outros registros.

A veiculação das informações mais expressivas no cotidiano de contingente significativo da população se faz por meio das imagens. No entanto, não somos familiarizados com a desconstrução de imagens, sendo que a realidade é apresentada como um todo caótico e confuso, mascarado com a cultura da simulação e do espetáculo. Ou ainda, não possuímos um instrumental que nos permita desconstruir textos imagéticos enquanto realidades documentais do exercício da profissão e das práticas de comunicação na dinâmica dos movimentos sociais, apesar da predominância do imagético na comunicação de massa, na veiculação das ideologias e na construção das mídias oficiais e alternativas.

Assim, faz-se necessário um esforço hercúleo para se definirem parâmetros, paradigmas e procedimentos para alcançar tais objetivos. Ou seja, vivemos em um mundo imagético e temos poucos elementos para vivenciá-lo na sua plenitude com atitudes críticas e criteriosas para selecionarmos, armazenarmos e decodificarmos informações. Na contemporaneidade encontramos nas mídias digitais um forte aliado na produção estética e na estetização do mundo, bem como na politização da arte e na estetização da política.

Cada vez mais nos assombramos e ao mesmo tempo ficamos empolgados com a quantidade de estudiosos que utilizam a iconografia em seus trabalhos, tanto como fontes ou elemento de composição dos textos. Porém, está se configurando um modismo no uso da imagem, que muitas vezes aparece nos trabalhos meramente como ilustração, perdendo todo o seu significado de texto/documento/registro. Assim, a produção imagética na sua diversidade perde todo o seu significado e riqueza, distanciando-se da análise imanente das fontes, da sua historicidade e de seu potencial enquanto documento. Além, é claro, de se perder sua própria gênese e função no momento em que foi produzida.

Há imagens que são emblemáticas da performance da Ditadura Militar, bem como da articulação do Golpe e dos principais períodos que marcam seu percurso histórico da gênese à derrocada. Compete aos estudiosos definir a perspectiva de sua análise conforme a historicidade de sua produção, bem como a particularidade da linguagem e canal de comunicação a que pertence.

Bibliografia

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Revista Histórica - Arquivo Público do Estado de Sao Paulo

O Bestiário nas Escolas do Norte Europeu - Parte 2

Profª Dra. Sandra Daige Antunes Corrêa Hitner



A) Figura sem cabeça, mas seus olhos estão postos nas costas, entre os dois ombros.
B) Figura descrita com um pé descomunal.
C) Figura de um homem com três pares de braços, como descrita no manuscrito de Bruges.
MAETERLINCK, L. Le Genre Satirique dans la Peinture Flamande. Gand: 1903, p. 159, fig. 126; 127; 128.


Do registro profano ao religioso, a crença, que caminha junto com o conhecimento, entrega-se às mesmas especulações e fantasias.

Por volta de 1500, o Ocidente foi acometido de uma espécie de grande pânico. As construções intelectuais da Idade Média se arruinaram. Renascença e Reforma uniram os fundamentos de um grande pensamento perdendo pouco a pouco a segurança que os alicerçava. Os problemas sociais surgiram numa Europa descontente, onde a revolta aumentava de forma constante. A arte passou a exprimir, a sua maneira, um desequilíbrio espiritual e uma imensa inquietude, ressuscitando temas que há muitos anos haviam ilustrado os pórticos das Igrejas. Neste fim de século começou-se a encarnar as superstições mais absurdas e as loucuras mais angustiadas. As demonstrações artísticas desta época são as mais puras expressões da fantasia. Mas fantasia é um privilégio humano e dote daqueles que sabem ver, traduzir e transformar em arte uma boa experiência. Não há comunicação em arte sem uma linguagem comum. O efeito surpresa depende da expectativa que a arte cria. Não foi a consciência coletiva que criou o estilo da arte, mas a maneira de transmiti-la.

Para os flamengos, a observação da vida sempre foi um exercício criterioso; não importa se a olho nu ou com lupa. Eram absolutamente visuais, videntes, visionários, mais que pensadores ou filósofos. E foi este critério que fez esta observação construir sua arte; transformar-se, deformar-se, submeter-se ao espírito do fantástico, do maravilhoso, ou do simbólico. Nada de arbitrário, nada de puramente gratuito na invenção deste “outro mundo”: inferno e paraíso se constituíam à semelhança do mundo sensível, apoiando-se somente no alicerce de suas próprias aparências. A abstração não fazia parte do menu dos mestres desta escola de arte. Pode-se dizer que nenhum flamengo dava preferência à idéia em detrimento do objeto, ou privilegiava o conceito em relação à forma ou à cor. Apoiavam-se fortemente no mundo exterior e era por meio da disposição dos elementos extraídos da natureza que seus sonhos ou pesadelos se materializavam.

O gênero fantástico encantava o povo, satisfazendo-lhes o gosto através do maravilhoso e das manifestações quiméricas. As aparições do maravilhoso davam-se, muitas vezes, sem relação com a realidade cotidiana, muito embora surgissem sempre no meio dela. É talvez isso o que há de mais inquietante neste maravilhoso medieval flamengo: justamente o fato de ninguém se interrogar sobre sua presença completamente sem nexo em pleno cotidiano.

"A Baleia Perfurada, ou os grandes peixes comem os pequenos", estampa de Jheronimus Bosch. O original desta estampa se encontra em Bruxelas, no Cabinet des estampes de la Bibliothèque royale de Bruxelles.
MAETERLINCK, L. Le Genre Satirique dans la Peinture Flamande. Gand: 1903, p. 231, fig. 155.


Foi na Idade Média que este centro europeu se superou no exercício da temática do fantástico, retomando-o sem cessar no curso de sua evolução, reanimando formas primitivas ou as enriquecendo por meio de novos sistemas. O fantástico era um tipo de inspiração que chegava ao espírito por meio do olhar; a imaginação se alimentando da observação, se nutrindo do concreto, do palpável, do visível e depois os ultrapassando. Mecanismos artificiais da imaginação concebiam criações que fugiam ao controle da razão mais sensata, geravam figuras cujas formas escapavam à lógica, criavam faunas e floras monstruosas ou maravilhosas, anjos ou bestas, montanhas ou vegetações bizarras que se entremeavam ou se fundiam com personagens humanas e animais compondo todo paisagismo.

A partir de um desenho de Pieter Bruegel, o Velho: "Tentações de Santo Antão". Gravura, in CASTELLI, E. Il Demononiaco nell'Arte, Milano: 1952, p. 138.

Quanto ao espírito simbólico, em todo pensamento medieval a sedução do horrível era a base do estímulo do demoníaco, que era este “não ser” que se manifestava como pura agressão, justamente por ser desfigurado. O demônio era representado como a inconsistência de uma natureza humana, pois a besta não era senão um aspecto do ser humano, uma totalidade corporal destituída de inteligência, mas absolutamente passional para a destruição. Era um tipo de agressão que predominava entre as figuras dos santos nas pinturas alemãs e flamengas. Os demônios das gravuras alemãs do século XV tinham, todos eles, ou quase todos, uma dupla face. No lugar onde, na natureza humana, estavam situados os órgãos sexuais, aparecia uma face, um rosto. Um outro aparecia, por exemplo, nas costas; um terceiro, na altura do estômago. Esta bifrontalidade ou trifrontalidade era uma maneira de representar o que não existia, uma possibilidade de exprimir o que não tivesse consistência.

Mestre da Lenda de Santa Bárbara. Detalhe da História de Jô, Colônia, Museu Walraff Richartz, in CASTELLI, E. Il Demononiaco nell’Arte, Milano: 1952, p. 90.

Na básica lição de moral dos flamengos, por trás do símbolo da luxúria ou da preguiça, compreendia-se veladamente que todas as permissões para os excessos humanos eram concedidas pelo demônio àquele que estivesse disposto a lhe oferecer a alma, e procurava-se representar a tentação deste demoníaco reproduzindo o sentido do horrível indefinido, ou seja, reproduzindo algo sem natureza determinada, que podia ser chamada simplesmente de desnatureza. Os representantes do Bestiário assumem as mais diversas formas. Sempre deformados, remetem à idéia de flageladores. Alados ou híbridos, o fantástico como desfiguração vem expressar a investida impetuosa do demoníaco sobre o homem, como por exemplo, por meio do impulso (cupiditas), este poderoso ingrediente humano que existia na medida em que havia a ausência de algo de que se necessitasse, ou da volúpia, do excesso (voluptas), extensão do sensível; um desequilíbrio.

Escola de Colônia (por volta de 1500): "Crucificação" (part.). Museu de Bruxelas, in CASTELLI, E. Il Demononiaco nell'Arte, Milano: 1952, p. 91.

Para tal, o remédio adequado era a mortificação da carne. Como, na época, a imagem religiosa era a literatura do povo, os sacrifícios monásticos viraram tema dominante na arte e nas predicações medievais, naturalmente acompanhados de jejuns contínuos como contraponto, o que por vezes acelerava o sentido visionário.

Nas pinturas dos vícios, os flamengos empenharam-se em rebuscar os excessos. Esta fantasia, que tomou conta da arte da época, não deixou de ser uma pintura didática, ou seja, uma lição de persuasão, uma demonstração da cura do vício pela virtude. Para vícios leves, como a gula, luxúria, etc., não tão prejudiciais no exercício de seus antônimos, a culpa implantada pelas predicações já era uma punição suficiente, mas para vícios significativos, uma imagem escarnecedora era o melhor protesto.

Uma sátira da cavalaria, Água forte de Jheronimus Bosch.
MAETERLINCK, L. Le Genre Satirique dans la Peinture Flamande. Gand: 1903, p. 227, fig. 153.

Sempre fazendo uso do Bestiário, reformulando-o, aperfeiçoando-o, ou incrementando-o, a arte das escolas do norte europeu marcou um longo período, e de lá para frente, as imagens que eventualmente vieram a fazer sugestão ao antigo Bestiário medieval raramente se compararam a ela.

Revista Histórica - Arquivo Público do Estado de São Paulo

sábado, 29 de agosto de 2009

O estopim da escalada nazista


O incêndio no edifício do Reichstag, o parlamento alemão, foi um ardil usado por Adolf Hitler para fechar o regime e tomar o poder
por Hersch Fischler


Um plano criado pelo ministro Hermann Goering atribuiu o atentado aos comunistas



Cinco dias antes das eleições legislativas de 1933, na noite de 27 de fevereiro, a sala de sessões do Reichstag, o parlamento alemão, inflamava-se como uma tocha.

Ardiam as chamas contra o céu de Berlim. No dia seguinte, a polícia, colocada sob a autoridade de Hermann Goering, ministro do Interior da Prússia, apresentava seu suspeito: um anarco-comunista holandês de 24 anos, o pedreiro Marinus van der Lubbe. Ele tinha sido "pego em flagrante", e "seus cúmplices comunistas, fugido".

No dia seguinte, sob o pretexto de uma ameaça de complô de esquerda, Hitler impunha ao presidente Hindenburg um decreto de emergência abolindo todas as liberdades fundamentais da República. Nos dias que se seguiram, milhares de adversários dos nazistas foram presos. A imprensa socialista e comunista foi proibida. A Gestapo e a tropa diferenciada SS tinham plenos poderes. O incêndio do Reichstag, de alguma forma, foi o ato fundador do III Reich, e escancarou as portas do poder para Hitler. De fato, em 5 de março, os nacionais-socialistas e seus aliados obtiveram 51,8% dos sufrágios.

O processo de Van der Lubbe durou de setembro a dezembro de 1933, na Corte Suprema de Leipzig. A seu lado, no banco dos réus, encontravam-se o líder do grupo comunista do Reichstag, Ernst Torgler, e três correligionários búlgaros, um deles o responsável pelo Komintern, Georgi Dimitroff. No entanto, muitos duvidavam da culpa de Van der Lubbe. E não apenas os socialistas e comunistas. Até entre os que apoiavam Hitler, havia quem pensasse que o Partido Nazista, o NSDAP, estava envolvido na trama. Os autos dos interrogatórios - conduzidos pelo comissário Walter Zirpins sem a presença de intérprete, embora Lubbe falasse mal o alemão - foram assinados pelo acusado, que admitia o crime. O documento ainda aventava a hipótese de que ele agira por instigação dos comunistas - o que ele negara.

Em menos de três meses, o caso de Marinus van der Lubbe foi encerrado. Ele não fez quase nada para se defender. Justamente. A foto tirada quatro dias depois de sua prisão mostrava um jovem forte e de boa saúde. Em contrapartida, durante todo o processo, ele se comportou como um autômato, arrasado, apático, de cabeça baixa, incapaz de enunciar uma única frase, senão para reiterar a culpa. Observadores estrangeiros afirmaram, então, que ele estava drogado. Durante sua prisão no Reichstag, na noite do incêndio, ele já parecia estar em estado alterado. Condenado à morte em 23 de dezembro, Lubbe foi decapitado em 10 de janeiro de 1934. Por falta de provas, Dimitroff e seus colegas búlgaros foram soltos.

Nos anos 50, a tese da culpa dos nazistas e da inocência do jovem holandês voltou a tomar consistência. Mas prova alguma permitia sustentá-la. O historiador Richard Wolff, oficialmente encarregado de esclarecer o caso, não pôde se pronunciar de forma definitiva: segundo ele, os documentos referentes ao processo tinham sido perdidos. Mas, no outono de 1959, houve um fato novo. A revista Der Spiegel, de Hamburgo, publicou uma série de artigos assinados pelo historiador Fritz Tobias, reforçando a tese de que Van der Lubbe era o único incendiário do Reichstag.

Inocentava os nazistas e, extensivamente, os comunistas. No segundo artigo, o dr. Zirpins, que havia interrogado o réu em 1933 e fora promovido à diretoria da polícia judiciária de Hanover em 1951, confirmava essas informações. Rudolf Augstein, diretor da Spiegel, por sua vez, concluía que pouco importava saber quem fora o autor do incêndio. O "cínico golpe de mestre" dos nazistas foi, segundo ele, ter sabido explorar o caso o tempo todo.

Essa tese prevaleceu por muito tempo, embora fosse negada por um grupo de historiadores liderados pelo suíço Walther Hofer e pelo servo-croata Edouard Calic, que publicaram, nos anos 70, documentos vindos de Berlim Oriental questionando a culpa exclusiva de Van der Lubbe. Fritz Tobias, que em 1962 escrevera um livro a partir de seus artigos, acusou-os de utilizar fontes falsificadas, e eles não ousaram inquiri-lo judicialmente. Além disso, Tobias recebeu o aval do historiador Hans Mommsen, em 1964.

Na verdade, ninguém podia restabelecer os fatos, porque os processos da polícia do Reich e da Corte Suprema de Leipzig haviam sido seqüestrados pelos soviéticos em 1945 e levados para Moscou. Imaginava-se que tivessem sido devolvidos à Alemanha Oriental somente nos anos 50. Na verdade, soube-se depois que os soviéticos restituíram esses processos - classificados como "fundos no 551" -, somente em 1982, aos arquivos do Partido Comunista da Alemanha Oriental, onde permaneceram fechados. Depois da reunificação, eles foram repassados à sucursal dos arquivos federais de Potsdam, que os declarou autênticos e os colocou à disposição dos historiadores no início de 1993. Deles se conclui que Marinus van der Lubbe não podia ter sido o incendiário do Reichstag e que o roteiro desse drama foi escrito da primeira à última linha pelos nazistas.

Hofer e Calic já haviam provado que Van der Lubbe não podia ter incendiado sozinho aquele imenso edifício com quatro pequenos acendedores utilizados para fogareiros a carvão. Segundo eles, Van der Lubbe teria sido drogado e conduzido, contra sua vontade, ao Reichstag. Vagando pelos corredores, sufocado pela fumaça e com as roupas pegando fogo, ele admitiu tudo que os policiais queriam fazê-lo confessar. Provavelmente, foi introduzido no prédio pelo portão 2 e impedido de sair. Outro ponto é que as reconstituições provaram que o pretenso culpado não conhecia o prédio nem o local onde se iniciou o incêndio. Há, portanto, indícios de manipulação.

Não se pode, aliás, excluir a hipótese de que Van der Lubbe tenha sido observado bem antes pelos nazistas, que, uma vez preparado o golpe, buscavam um culpado ideal. Na verdade, ele tinha sido designado, pelos anarco-comunistas holandeses, para atuar em um grupo de esquerda berlinense independente de Moscou, a AAU. O que ele não podia imaginar é que essas organizações estavam infiltradas pelos hitleristas, notadamente aquela em que ele se engajou, já que ela abrigava o estudante Wilfried van Oven, que mais tarde viria a ser assessor de imprensa de Goebbels.

Os arquivos soviético-alemães-orientais trouxeram outras revelações: por exemplo, o diário pessoal de Goebbels. O ministro da propaganda de Hitler declarou, diante do tribunal, que havia sido informado do incêndio por um telefonema do chefe da imprensa estrangeira do Partido Nazista, Ernst Hanfstaengl, que morava no palácio do presidente do Reichstag. Goebbels escreveu em seu diário que, a princípio, pensou tratar-se de uma brincadeira de mau gosto e só informou o Führer depois de um segundo telefonema, indicação repetida pelo mesmo Hanfstaengl em sua autobiografia publicada nos anos 50. Na realidade, o porteiro do Reichstag, Paul Adermann, que os juízes não julgaram oportuno citar no tribunal, atestara que Hanfstaengl não morava no palácio do presidente do Reichstag e não estava lá na noite do incêndio. Assim, os nazistas, com Goebbels à frente, não devem ter se surpreendido tanto como aparentavam.

Outro fato confuso: na tarde de 27 de fevereiro, portanto antes do incêndio, o conselheiro Rudolf Diels, a quem Goering confiara a diretoria da polícia, havia implantado um dispositivo que permitia a prisão de líderes políticos socialistas e comunistas alemães. Essas detenções foram apresentadas por Tobias e Zirpins na Spiegel como uma reação ao "atentado". Na realidade, tudo prova que eles estavam preparados havia tempo. Em seu livro Strafrecht leicht gemacht (O direito penal ao alcance de todos), publicado durante o III Reich, Zirpins já se pronunciara favorável às prisões preventivas e aos campos de concentração.

Os arquivos de Berlim Oriental lembram também que dois outros personagens tinham sido presos com Van der Lubbe quando escapavam do Reichstag: Wilhem Heise, operário notoriamente de extrema-direita, e Albrecht, deputado nacional-socialista. Este foi posto imediatamente em liberdade e Heise foi solto às 4h45 da manhã, depois de uma tentativa de suicídio. Outro comparsa dos nazistas também se saiu bem, liberado após um breve interrogatório. Tratava-se de um certo F. C. A. Schoch, também holandês. Seu carro foi reconhecido por testemunhas quando ele estacionava na noite do incêndio perto de um dos portões do Reichstag.

Os historiadores Hofer e Calic formularam a tese de que os incendiários nazistas haviam entrado no edifício por um túnel que chegava até o palácio do presidente do Reichstag - nada mais, nada menos que o próprio Hermann Goering. Nada nos arquivos endossa essa hipótese. Mas faltam páginas nesses documentos. Há quem avente a hipótese de que fossem as páginas remetidas de Berlim Oriental sas. No entanto, não se pode afastar a idéia de que Goering também tenha utilizado o túnel, nem que fosse para confundir as pistas em caso de fracasso da operação. Os verdadeiros incendiários entraram - com grande tranqüilidade pelos portões 2 e 3, como sugerem os documentos - com a cumplicidade do pessoal do Reichstag.

Há também no "fundos no 551" outra informação, dada por um diretor de prisão chamado Brucks em texto escrito, em 22 de abril de 1938, ao procurador do Reich. O remetente admitia ter obtido, na época do processo de 1933, de um homem das SA (as sessões de assalto) encarcerado, um certo Rall, a confissão de que o incêndio fora perpetrado pela seção 17 das SA usando o subterrâneo. Brucks indicava que esse arquivo havia desaparecido. Rall foi assassinado pelas SA e Brucks morreu, em condições não elucidadas, pouco depois de ter escrito essa carta.

Os laudos da polícia confirmavam que o bando de incendiários era composto por nazistas e seus aliados. Von Papen, o líder dessa ação, teria desempenhado um papel muito mais ativo do que se pensava na própria ascensão de Hitler. Seu protegido, e também de Goering, Rudolf Diels, foi promovido em 1933 a primeiro chefe da Gestapo. O famoso Wilfried van Oven, chefe de imprensa de Goebbels até o fim do III Reich, reapareceu depois da guerra com o nome de Wilfred van Oven como correspondente da Spiegel na Argentina. Primeiro, pretendeu-se que ele havia se refugiado ali em 1945. Mas depois se verificou que Rudolf Augstein, diretor da Spiegel, permitira que ele emigrasse legalmente para lá em 1951. Fiel a suas convicções, Oven criara uma revista germano-argentina de extrema-direita: La Plata Ruf (O chamado de La Plata). Também seria encontrado, entre os que cercavam Augstein nos anos 50, Georg Wolff, redator-chefe adjunto da Spiegel.

Tudo isso leva a indagações como: um homem a serviço da segurança do Reich, dirigido por Reinhard Heydrich, seria Wolff aquele que, na entourage de Augstein favorecia os antigos nazistas? E quem abrira as páginas da Spiegel para Fritz Tobias e suas testemunhas nazistas como foi o caso do comissário Zirpins?

Estranho Zirpins. Tornou-se um dos auxiliares de Heydrich e era chefe da polícia criminal de Lodz, onde dezenas de milhares de judeus, encerrados em um gueto, foram liquidados. Em 1942, passou a ensinar na escola dos quadros da polícia de Reinhard Heydrich em Berlim-Charlottenburgo, por onde passaram numerosos homens que, nos anos 50, criaram a BKA, a polícia criminal da Alemanha Ocidental. A maior parte deles carregava milhares de mortos na consciência. Em 1945, ele foi o último chefe nazista da polícia de Hamburgo. E, em 1951, ou seja, seis anos depois da derrota do regime nazista, estava à frente da polícia judicial de Hanover. Em 19 de dezembro de 1951, a Spiegel publicou um longo artigo de Zirpins, dado como excelente policial. Naquele momento, a revista mantinha sua redação em Hanover.

Ele somente se mudou para Hamburgo um ano mais tarde. Pode-se indagar legitimamente sobre as conexões entre todos esses antigos nazistas, a Spiegel e o seu diretor. A revista nunca aceitou retificar sua afirmação sobre a culpa de Marinus van der Lubbe. A Stern, em 1992, desistiu de publicar os documentos sobre esse caso. Vale imaginar se não teria havido pressão, de que tipo e da parte de quem.

Da mesma forma, pode-se perguntar por que os soviéticos, que estavam em posse dos documentos do processo Van der Lubbe, não esclareceram o caso antes. Há quem acredite que, dessa forma, a União Soviética e a RDA conservavam um bom meio de chantagem contra altos funcionários da Alemanha Ocidental comprometidos com o antigo regime nazista.

-Tradução de Luciano Loprete

Reencontro com a História
Numa Alemanha reunificada, a restauração do Reichstag teve valor simbólico. Berlim voltou a ser a capital da República Alemã. Em 19 de abril de 1999, o parlamento alemão - o Bundestag - realizou sua sessão inaugural e, em 23 de maio, o sucessor de Roman Herzog na presidência da República federal foi eleito no edifício do Reichstag, restaurado sob os cuidados do arquiteto britânico Norman Foster.

O novo Reichstag passou a significar a Alemanha reunificada, apelidada de "República de Berlim". O imponente edifício neoclássico convidava os alemães a um encontro com sua história. Muitos ainda indagavam principalmente sobre os autores do incêndio do Reichstag na noite de 27 de fevereiro de 1933. Afinal, quem pôs fogo no prédio, os nazistas, os comunistas (como pretendiam os nazistas) ou aquele jovem holandês de Leyde, Marinus van der Lubbe, executado em janeiro de 1934 aos 24 anos? Despacho da Agência France Presse, de 15 de abril de 1999, informa que aquele incêndio criminoso foi "perpetrado em circunstâncias jamais esclarecidas".

No entanto, o enigma já estava resolvido. A revelação histórica, que coube ao historiador de Düsseldorf Hersch Fischler, não recebeu até aquele momento a relevância que merece. O processo do jovem anarquista holandês diante da Corte de Leipzig foi orquestrado nos bastidores por Hermann Goering, responsável pela polícia política. Goering organizou o incêndio, executado por um bando de nazistas, a fim de criar um pretexto para abolir as liberdades públicas e instaurar a ditadura.

Em 13 de janeiro de 1999, diante de uma representante do governo holandês e de uma vereadora de Leipzig, Elisabeth van der Lubbe e Adriane Derix-Sjardijn, inaugurou-se no cemitério da cidade um monumento em memória do primo das duas senhoras, Marinus. Dois artistas holandeses cinzelaram numa pedra semelhante às do Reichstag um poema escrito na prisão pelo condenado. Porém, nenhum funcionário alemão assistiu à reabilitação daquele que a Holanda considera como um resistente antinazista.

Por Jean-Paul Picaper - jornalista

Revista Historia Viva

Eva Perón - A idolatrada mãe dos pobres

Filha ilegítima e desprezada, Evita tornou-se poderosa graças à sua determinação feroz. Sua mais cara e realizada promessa: ajudar os desvalidos.


Em 24 de agosto de 1951, Eva fala a uma multidão de mulheres.

Só me casarei com um príncipe ou um presidente", dizia Maria Eva Duarte quando vivia em Los Toldos, sua cidade natal no meio do pampa. Desprezada por todos como filha ilegítima, a criança almejava um futuro radiante como ouvia nas novelas de rádio, lia nas revistas de cinema e via nos filmes de Hollywood. O pai, don Juan Duarte, proprietário de terras, havia literalmente comprado sua mãe, a bela Juana Ibarguren, em troca de um jumento e uma carroça. Da união nasceram quatro meninas e um menino. Evita, a caçula, em 7 de maio de 1919. Ela mal conheceu o pai, que em seguida regressou ao católico lar onde o esperavam a esposa e filhos legítimos.

Dona Juana enfrentou sozinha as vicissitudes e, quando a caçula Evita estava com 11 anos, mudou-se com os filhos para Junín, uma vila na mesma província de Buenos Aires. O preconceito, porém, era igual. Os colegas de escola, por exemplo, não tinham permissão de cortejar Evita, em razão da origem. Não obstante, suas três irmãs mais velhas progrediram socialmente. Encontraram trabalho e fizeram bons casamentos.

Restaram os rebeldes: Juancito e Eva, a sonhadora decidida a tentar a vida no mundo do espetáculo. Humilhações demais lhe renderam um caráter duplamente genioso e uma vontade indomável. Aos 15 anos, em um dia 2 de janeiro de 1935, ela partiu para a capital, Buenos Aires. Apelidada de "Paris da América do Sul", a cidade fora arruinada pela crise mundial de 1929-30 e dependia das exportações de carne e de trigo, Eva, pálida e morena, batia incansavelmente às portas dos teatros. Seu único trunfo, a obstinação. Fora a teimosia que se tornou lendária, ela não tinha grande coisa a oferecer. Sem real talento artístico nem extraordinária beleza, ela era ignorante, arredia. Às humilhações vividas, somaram-se outras. Histórias bastante banais: diretores que exerciam a sedução, amantes de algumas horas. À mãe e às irmãs, que lhe suplicavam a volta para Junín, respondia sempre: "Primeiro, a celebridade".

De fato, em 1939, ela conseguiu se impor como atriz radiofônica. Encarnava as heroínas chorosas de novelas semelhantes às que haviam forjado sua ambição.

Esses folhetins de retórica nacionalista pareciam prefigurar as idéias do movimento político do qual Evita seria a grande estrela. Naquele momento, já pairavam no ar. Em 4 de junho de 1943, um golpe de Estado instaurou no país um governo militar, de que participava um grupo de oficiais, o GOU (Grupo de Oficiais Unidos), defensor de teses próximas ao nazismo. Entre eles, estava um líder de influência crescente, egresso de uma estada na Itália de Mussolini: o coronel Juan Domingo Perón.

Olhos só para ela
Evita conheceu, então, com um membro do GOU, o coronel Aníbal Imbert. Nomeado para a direção dos Correios e Telecomunicações, o militar linha-dura controlava o conteúdo das emissões radiofônicas: era a hora dos valores "sadios" e "nacionais". Evita, sempre alerta e rápida, tornou-se amante de Imbert. Uma série de folhetins de caráter histórico foi sua recompensa: ela interpretava Catarina da Rússia ou Elisabete da Inglaterra, como se, inconscientemente, se preparasse para tornar-se rainha.

Em 15 de janeiro de 1944, um tremor de terra arrasou a cidade de San Juan, na região de Cuyo, não longe do Chile. Na qualidade de secretário do Ministério do Trabalho, o coronel Perón centralizou a ajuda às vítimas. E as pessoas ligadas ao mundo das artes organizaram um grande espetáculo beneficente em prol dos desabrigados, em 22 de janeiro, no estádio Luna Park. Nessa manhã, Perón percorreu a rua Florida, cercado por atrizes que agitavam cofrinhos: "Um trocado para os órfãos de San Juan, por favor!". Evita, no frescor de seus 24 anos, estava entre elas, ainda de cabelos escuros e sempre pálida, mas tão ardente no pregão que o nobre coronel de 48 anos talvez a tenha notado. O encontro decisivo, porém, aconteceu à noite, na festa. Enquanto grandes vedetes da música se sucediam no palco, Evita conseguiu se instalar ao lado de Perón. Alguns instantes mais tarde o coronel só tinha olhos para ela.

Juan Domingo Perón era, também, filho ilegítimo. Tornou-se um adulto esperto, maquiavélico, envolvente. Como todo sedutor, refletia o desejo dos outros fazendo com que se sentissem únicos. Sua primeira mulher havia morrido. Incapaz de amar, ele, entretanto, encantou-se pela pequena atriz que o escutava atentamente e que encontrava naquele discurso a explicação para sua própria vida: o inimigo era a oligarquia! Evita bebia as palavras de Perón e assumiu as idéias do coronel com um fanatismo que parecia o do amor.

Que há de mais fascinante, para um líder em plena ascensão, que encontrar uma mulher pronta a encarnar sua causa com uma convicção e um fervor ainda maiores? A Perón, Evita aparecia como uma moça pura, apaixonada, maleável, fácil de manipular e - última virtude, mas não das menores - estrela do rádio: ele aprendera com o fascismo italiano que o poder vinha dos sindicatos e do rádio. Quanto a Evita, enxergava em Perón o pai que jamais tivera, o homem de poder que sempre procurara - e que a ajudaria em sua carreira artística -, o amante cuja indolência se combinava com a frieza, e o gênio político que sabia pôr em palavras seu sentimento de revolta. Do fascismo ela pouco sabia, mas sim que Perón era contra os proprietários de terra que, a exemplo de Juan Duarte, compravam mulheres e as abandonavam com seus filhos ilegítimos. Era o bastante. Rapidamente, sua relação tornou-se pública. Perón adorava chocar, desafiar os "bem pensantes". Divertia-se ao apresentar, da maneira mais oficial, sua amante.

Intuição de causar espanto
Quando os colegas de armas diziam o quanto era malvisto por ter uma relação com uma atriz, ele respondia: "O que vocês queriam? Que eu tivesse uma relação com um ator?". Sua popularidade era crescente; não por acaso escolhera o cargo no Ministério do Trabalho - para estar próximo dos trabalhadores. Demagogo, ele os cobria de favores. Ministro da Guerra, depois vice-presidente da Argentina, ele conservava esse posto aparentemente obscuro. Quando o exército, enciumado, se valeu de um pretexto fútil para encerrar Perón na ilha de Martín Garcia, no meio do rio da Prata, foi o povo agradecido que, em 17 de outubro de 1945, saiu maciçamente às ruas para exigir a libertação de seu bem-amado líder. Quatro dias mais tarde, Perón se casou com Evita. E em 4 de junho de 1946, promovido a general, ele assumiu a presidência da República, eleito por uma esmagadora maioria de votos.

Desde seu encontro com Perón, Evita se interessou cada vez mais pela política e revelou uma intuição que espantou o general. Sem ter, ainda, abandonado de vez a carreira de atriz, decidiu assumir o papel de uma benfeitora adorada pelo povo, em um filme intitulado La Pródiga, nunca exibido publicamente. Era um papel profético.

Sua personagem era chamada "a Senhora" ou "a Mãe dos Necessitados". Em pouco tempo, assim seria, na realidade. Coincidência e premonição, vontade e destino sempre se cruzaram na história de Evita.

Com os acontecimentos que conduziram à revolta popular de 17 de outubro, completou-se a virada. Era imperativo que a mulher do presidente deixasse o mundo do espetáculo. Mas, sendo o peronismo uma representação, tudo a levava a fazer sua estréia no mundo do espetáculo da política: a ambição de poder - nascida de sua necessidade de vingança -, a tendência para a representação (partilhada por Perón) e a paixão sincera. A primeira das simulações havia sido a descoloração dos cabelos. Em 1944, para encarnar determinado papel, Evita tinha se tornado loira. Um loiro de mulher que ascendeu, que a fazia escapar da maldição de Los Toldos, da avó Petrona em seu rancho de miséria: na Argentina da época, o loiro se confundia com status. Morena, ela havia sido insignificante. Loira, tornava-se uma criatura luminosa, irreal, na qual a propaganda peronista iria se apoiar e a quem faria representar o papel de santa ou de fada. Outra simulação era sua identidade civil.

Investida de elegância
Ela falsificou seus documentos, pois, mesmo ao casar com o homem mais poderoso da nação, era obrigada a mentir. Substituiu a certidão de nascimento, em que aparecia como Eva Maria Ibarguren, nascida em Los Toldos em 1919, por outra, com o nome de Maria Eva Duarte, nascida em Junín, em 1923. Se mantivesse a primeira data, não obteria a "legitimidade", pois naquela ocasião a esposa de Juan Duarte ainda era viva. Os acertos foram feitos porque de outra forma Evita jamais poderia esposar um coronel com pretensões presidenciais.

Em 17 de outubro, o povo havia saído à rua para libertar seu homem. Até então, ela não havia ainda compreendido o papel que Perón e ela mesma iriam representar na história do país. Foi o povo que levou Perón a tornar-se o líder Perón. Em determinados momentos, ele mesmo, depois de tanto fazer para ser adorado pelo povo, esteve a ponto de abandonar tudo. Mas os argentinos gritavam seu nome na praça de Maio e Perón teve de responder ao chamado.

Nesse momento, Evita, compreendendo de súbito a importância da situação - sensibilidade à flor da pele - sentiu um imenso reconhecimento. Contraiu "uma dívida" pessoal, dizia, com o homem que a havia "purificado", ao escolhê-la, e com o povo que, ao salvar esse homem, conseguiu também a redenção dela própria. Daí por diante, essa mulher obstinada e voluntariosa só teria uma idéia na cabeça: pagar. Com uma contribuição particular, intransferível.

Em 1947, ela foi convidada oficialmente pelos governos espanhol, italiano, francês e suíço. Essa viagem pela Europa, como um percurso iniciático, durou três meses. Na volta, transformada, Evita apareceu investida de uma elegância irretocável. As senhoras oligarcas que tanto haviam rido dela por sua falta de gosto e por suas toaletes berrantes só podiam agora admirar a Evita em trajes de Dior. Os erros de gramática, porém, permaneceram.

Há suspeitas de que nessa mesma viagem ela teria tido a ocasião de depositar nos bancos suíços o fabuloso tesouro de Martin Bormann, supostamente nas mãos de Perón, que acolheu em Buenos Aires milhares de criminosos de guerra nazistas. Há muitas pistas, mas nenhuma concludente, até agora. Assim como não se saberá nunca, sem dúvida, se naquela ocasião Evita soube o nome da doença de que morreria em 1952: um câncer de útero, como acontecera com a primeira mulher de Perón. De qualquer forma, desde sua volta ela foi não somente a mais bem vestida das mulheres como também a mais decidida no rechaço aos médicos. Decidiu não se tratar.

A terrível agonia
A partir de 1948, ela trabalhou 18 horas por dia, quase sem se alimentar. Iniciou uma corrida contra a morte. Em uma garagem adaptada da residência presidencial, juntou montanhas de doações em espécie (alimentos, roupas, acessórios) que lhe haviam feito os sindicatos para que distribuísse aos mais necessitados. Criou a Fundação Eva Perón, gigantesca organização antiburocrática que respondia às necessidades de todos aqueles para quem é sempre tarde demais. Ela recebia 12 mil cartas por dia, com os mais diversos pedidos, de cobertores a bolas de futebol. Os remetentes eram chamados a seu escritório na Secretaria do Ministério do Trabalho, onde Perón havia começado seduzindo os trabalhadores. Centenas de miseráveis se comprimiam cada dia nesse lugar lendário. Evita os escutava e resolvia sua situação com agudo senso prático.

Sua jornada de trabalho se estendia das 7 da manhã às 2 ou 3 da madrugada, freqüentemente mais. Doar tornou-se sua razão de viver. Dedicava-se aos humildes a ponto de apagar toda a distância entre ela e eles. Fusão perfeita, perda da identidade bem-aventurada que a conduzia a se cobrir de diamantes "para agradar aos pobres", já que eles se sentiam ricos somente em vê-la. Se ninguém podia penetrar esse mistério de uma comunhão quase mística, Perón acreditava poder tirar proveito dela, afinal sua mulher agia em nome dele, que a exaltava em seus discursos, até fazer dela um ser quase divino embora frisasse que "era apenas uma mulher".

Ao mesmo tempo, a mulher capaz de sacrificar sua vida era, também, um ser sedento de poder. Desde 1946, Evita tinha criado sua própria equipe, constituída por ministros fiéis. Fundou o Partido Peronista Feminino, que dominava com a mesma mão-de-ferro com que controlava e amordaçava a imprensa e o mundo do espetáculo. Na máquina de propaganda e repressão do peronismo, ela era um instrumento, quando não a instigadora. E as mulheres a quem Evita dera o direito de voto em 1947 eram justamente o setor do peronismo mais ativo em suas mãos e que ela fanatizara e vigiava com um ardor de madre suxperiora.

A mulher autoritária, senão grosseira, diante dos funcionários do Partido, mas submissa diante de Perón (ao menos em público), vivia um feminismo visceral expresso em seus atos mais que em suas palavras - sempre emprestadas dos burocratas que redigiam seus discursos. Um feminismo que Perón não havia previsto. Daí o fato de ele enciumar-se de sua esposa, que ele considerava seu "ombro", mas que brilhava cada vez mais com luz própria.

Esse homem labiríntico não mostrou claramente seu ciúme a não ser em raras ocasiões. Bom caçador da Patagônia, ele construía suas armadilhas, fingindo querer afastar Evita do trabalho desgastante, insistindo para que ela se cuidasse. Sabia que bastava ele querer detê-la para que Evita, redobrando sua vitalidade suicida, trabalhasse ainda mais. O último ato desse drama de trapaças e simulações foi representado em público, diante de uma multidão de 1 milhão de pessoas reunidas para proclamar a nova chamada: "Perón presidente, Evita vice-presidente!". Foi em 2 de agosto. As eleições se aproximavam. Perón de início recusou-se a aceitar a reeleição, algo que no entanto almejava. Em seguida, não disse uma palavra quando a CGT (Confederação Geral do Trabalho) propôs a candidatura de Evita à vice-presidência. Quanto a esta, embora negasse ter ambições pessoais, desejava esse posto com ardor. Até então, ela jamais havia possuído um nome que fosse seu, nem uma nomeação formal. Seu poder era imenso, mas dependia inteiramente do de Perón.

Então, nesse 2 de agosto, Evita não sabia se Perón queria que ela se tornasse vice-presidente. Ela esperava, o povo insistia para que ela aceitasse, ela balbuciava uma negativa que não fazia mais que exaltar o fervor da multidão. Enfim chegou a hora da verdade. Diante desse diálogo amoroso entre sua mulher e o povo, do qual ele se sentia excluído, Perón agarrou o braço de Evita e lhe disse: "Basta". Ela já estava gravemente doente. Alguns dias mais tarde ela foi ao rádio para dizer que seu "coração de humilde mulher argentina" a impedia de aceitar a honrosa oferta.

Recolheu-se ao leito, para começar a morrer. Durante sua longa agonia, esteve cercada apenas de uns poucos amigos e da mãe, das irmãs e do irmão Juancito Duarte, que elevara a secretário de Perón, e que este faria com que "se suicidasse" após a morte de Evita, por conta, diz-se, de um tesouro fantástico depositado em conta bancária na Suíça.

Houve uma tentativa de esconder do povo a doença de sua fada. Após uma operação de útero realizada tarde demais, Evita foi instalada em um pequeno quarto da residência presidencial, longe do de Perón. Ela agonizava, extremamente debilitada, com um peso não superior aos 30 quilos e vítima de dores atrozes. E ainda assim, após uma revolta militar rapidamente sufocada, mas que anunciava a inevitável queda do peronismo, Evita encontrou forças para negociar, do seu leito, a compra de metralhadoras destinadas a armar o povo.

Armas que Perón não quis distribuir entre os trabalhadores quando eclodiu a Revolución Libertadora que o derrubou, em 1955. Naquele momento, Evita já estava morta.

Há quem opine que essa revolução não aconteceria se ela estivesse viva. Afinal, dizia: "O inimigo da oligarquia não é ele, sou eu". Ela morreu em 26 de julho de 1952, com a simbólica idade de 33 anos. Durante 15 dias, o povo em lágrimas desfilou diante de seu caixão coberto de cristal. Para alguns, uma santa, para outros, uma populista demagoga que asfixiou o país. Extremos à parte, Evita seguiu indestrutível, na memória coletiva. Em parte por causa do mito que ela cuidadosamente criou, em parte por causa de seu próprio corpo que, depois de inúmeros percalços, finalmente repousou em Buenos Aires, no cemitério da Ricoleta, sem epitáfio. Poderíamos propor este: "Sua vida contraditória nos impede sempre de crer nos bons e nos maus".

-Tradução de Carolina Massuia de Paula

Cronologia
1919
Em 7 de maio nasce, em Los Toldos, Maria Eva , a caçula de don Juan Duarte e Juana Ibarguren

1935
Em 2 de janeiro, com 15 anos de idade, Evita parte sozinha para Buenos Aires

1944
Em 22 de janeiro ela conhece Juan Domingo Perón, com quem se casa no ano seguinte

1946
Funda o Partido Peronista Feminino

1948
Cria a Fundação Eva Perón, gigantesca organização de ajuda aos necessitados e passa a trabalhar quase 20 horas por dia

1952
Morre, vítima de câncer de útero

Fotos incômodas
A fotógrafa alemã Gisèle Freund viajou até a Argentina, em 1950, com o único objetivo de fotografar Evita. Quando a primeira-dama enfim a recebeu, pediu-lhe que registrasse o conteúdo de seus armários, "para que o mundo inteiro veja o que eu tenho". Havia vitrines abarrotadas de jóias, centenas de chapéus, sapatos, vestidos e peles. No dia seguinte, o chefe da propaganda requisitou os negativos, mas Gisèle viajou imediatamente, salvando as fotos que, reproduzidas na Life, se tornaram célebres.

A devolução do corpo
O corpo de Evita foi embalsamado pelo doutor espanhol Pedro Ara. Com a queda de Perón, a Revolución Libertadora seqüestrou seus restos mortais para impedir que os peronistas transformassem seu túmulo em local de culto. Nada mais se soube a respeito, até 1971, quando o governo militar decidiu devolvê-los a Perón, enterrados que estavam sob um falso nome em um cemitério de Milão. Ele estava exilado em Madri, onde recebia correligionários.

Revista Historia Viva

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

O Bestiário nas Escolas do Norte Europeu - Parte 1

Profª Dra. Sandra Daige Antunes Corrêa Hitner

O avanço atual da cibernética produz estranhas figuras alienígenas, feras pensantes, robôs humanizados, heróis humanóides, que estão presentes em todo universo contemporâneo, desde as difundidas pelo cinema até a mais remota imaginação popular. Junto com os chamados "efeitos especiais", faz muito sucesso uma porção de figuras deformadas resultantes de aplicações científicas ou fenômenos da natureza. Tudo isso parece tão nosso, tão contemporâneo, e, no entanto, toda essa modernidade só faz dar continuidade a imagens que remontam aos primórdios de nossa história, catalogadas pelo Bestiário Europeu.

O Bestiário era uma espécie de registro no qual estavam descritos, junto com os animais da Criação, os inventados pela fantasia e aceitos pela credibilidade dos contadores de prosa e dos poetas que haviam perpetrado o espírito popular da Idade Média. Apareciam em várias obras escritas, influenciadas, sobretudo, pelo consagrado Livro das Maravilhas de Jean de Mandeville,[*1] pioneiro na revisão da fauna fabulosa, híbrida e exótica.


Bestiários
A) Figura do bestiário inesperado no Livro das Maravilhas de Mandeville. Aqui um exemplo de raças humanas muito estranhas. Segundo a descrição do autor: "besta monstruosa produzida pelo casamento do touro com asno. Tem a cabeça de um asno e corpo de homem. Parece falar, mas não é capaz de imitar a voz humana."
MAETERLINCK, L. Le Genre Satirique dans la Peinture Flamande. Gand: 1903, p. 158, fig. 124.

B) Animal com cabeça de demônio que morde o próprio rabo, que chega à boca perpassando a orelha. Seu corpo tem as vértebras aparentes.

C) Animal com cabeça humana, cabelos compridos, de quatro patas rachadas e rabo preso numa trança.

D) Animal cujas patas são membros humanos: atrás, pernas e pés; na frente, braços e mãos.

E) Animal conhecido como "Monge Marinho", com cabeça humana, cercada por um capuz de monge e corpo de um grande peixe. Figura no livro de Albert de Bollstadt, De natura animalium, com o nome de pisce monachi habitu (ver nota 1).
MAETERLINCK, L. Le Genre Satirique dans la Peinture Flamande. Gand: 1903, p. 161, fig. 133; 134; 135; 136.

Desde a época merovíngia (V - VIII d.C.), o Bestiário tomou conta do imaginário ocidental trazendo fábulas, mitologias e as teogonias mais diversas. O vocabulário bárbaro, franco, visigodo e outros tantos, também foram fontes abundantes de invenções análogas, trazendo fauna extravagante e legendária. Os primitivos desenhos de cavernas, representações de rituais totêmicos, pinturas rupestres e o imaginário religioso do Oriente, contribuíam com a maior parte dos monstros medievais mais conhecidos, tais como os dragões e as quimeras. Mas é realmente o Apocalipse de São João a fonte mais espetacular usada pelo cristianismo desde o século XI, véspera da chegada do ano mil, com todo o terror que se apostava no suposto fim do mundo. A partir daí iniciam-se as inúmeras versões a respeito das revelações de São João, e a imaginação popular se rivalizou na fertilidade de compô-las, e a arte, na força de traduzi-las, de ilustrá-las.


"O Som da Segunda Trombeta. Montanha em Chamas é lançada no mar." Apocalipse Normando, século XIV, ca 1320, Tempera e folha de ouro em pergaminho (12 ½ x 9 polegadas), The Cloisters Collection, 1968, (68.174, folio 13 recto).

Ao Apocalipse juntam-se outras passagens da Escritura, na qual bons e maus entram em ação. Satã e outros demônios que se multiplicam são mostrados em seu aspecto terrível e imundo, principalmente nas Iluminuras, miniaturas e ilustrações marginais. Assim, as visões apocalípticas não abdicam do poder que exercem sobre o espírito humano, seguindo até a Alta Idade Média, e a tradição do surreal, do fantástico, agregada à alma religiosa, só se interrompe no momento em que a devoção se faz mais íntima, mais individual e mais terna.

A mitologia das águas, vinda dos países germânicos, foi muito próspera até meados do século XVI. A mistura dos componentes desta mitologia e de outras espécies contidas no Bestiário fez com que os poetas artistas e escultores medievais inspirassem suas concepções e variassem seus protótipos.

Sereia. Escultura eclesiástica na Catedral de Bâle. CAHIER, P.CH. Nouveaux Mélanges d'Archéologie d´Histoire et de Littérature. Curiosités Mystérieuses. Paris, Librairie de Firmin in Didot Freres, fils et C: 1874, p.142, fig C.

Quanto às narrativas dos viajantes, estas se superaram em audácia na descrição dos bestiários, e pode-se dizer que até hoje é vista como uma das mais espantosas criações que o espírito humano produziu em termos de imagem durante toda a Idade Média.

A) Chest le livre de toutes les keures de la Vile d'Ypre. Sec. XIV.
A Trindade está representada por uma personagem com pernas longas e peludas, tendo na mão uma adaga e na outra um objeto redondo que parece um pequeno escudo. Sobre um pescoço desmesurado, vê-se reunidas três cabeças sob uma mesma coroa. As faces se dispõem de forma que os dois olhos da figura são vistos de perfil e um frontal. MAETERLINCK, L. Le Genre Satirique dans la Peinture Flamande. Gand: 1903, p. 65, fig. 53.

B) Bible du Musée Britannique Bibliographica. Londres, 1900, part VII, p.394.
Monge com cara de papagaio exercendo sua eloqüência diante de um bispo com o rosto de macaco que o abençoa, enquanto que ao redor deles estão seres bizarros representando, talvez, suas ovelhas. MAETERLINCK, L. Le Genre Satirique dans la Peinture Flamande. Gand: 1903, p. 141, fig. 117.

C) A figura está contida no manuscrito de Ypres intitulado "Aqui está o livro de todas as coisas da vila de Ypre". Faz forte referência à religiosidade da região. MAETERLINCK, L. Le Genre Satirique dans la Peinture Flamande. Gand: 1903, p. 146, fig. 121.

D) Na figura vemos uma ave portando sua família dentro de um cesto pendurado nas costas e seguido por uma forma monstruosa constituída de elementos bizarros e fantásticos. Manuscrit n.103 de la Bibliotèque de Cambrai. MAETERLINCK, L. Le Genre Satirique dans la Peinture Flamande. Gand: 1903, p. 75, fig. 69.


Baseado em um outro Livro das Maravilhas,[*2] foram elaboradas as Iluminuras de Jean de Berry, nos primeiros anos do século XV, onde se vêem combates de seres monstruosos e diversos dragões voadores asiáticos, provavelmente inspirados nas descrições fantasiosas de Marco Polo (1254-1323). Este mesmo Livro da Maravilhas sugere a existência de raças humanas monstruosas, como homens de orelhas vastas, ou, imagens ilustradas sob um paisagismo mostrando o Etna, com a aparição de dragões-serpentes que devoravam as crianças “nascidas do mal”, entre outras coisas.


Revista HISTÓRICA - Arquivo Público do Estado de São Paulo

Sesmarias e posse de terras:


Sesmarias e posse de terras:
política fundiária para assegurar a colonização brasileira

Mônica Diniz
Até onde temos podido representar aquelas formas de comércio, instituições e idéias de que somos herdeiros? (Sérgio Buarque de Holanda)

Os documentos de sesmarias

Os registros de terras surgiram no Brasil logo após o estabelecimento das capitanias hereditárias, com as doações de sesmarias. Os documentos mais antigos das capitanias datam de 1534.

Esses registros de terras servem para apresentar algumas informações como o local onde as pessoas viviam; revelar informações pessoais e familiares; se a propriedade foi herdada, doada ou ocupada e quais eram seus limites; se havia trabalhadores e como era constituída a mão-de-obra; em que região ficava tal propriedade; etc.

Todas as posses e sesmarias formadas foram legitimadas em registros públicos realizados junto às paróquias locais. A Igreja, nesse período da Colônia, encontrava-se unida oficialmente ao Estado. Dessa forma, os vigários (ou párocos) das igrejas eram quem faziam os registros das terras ou certidões, como a de nascimento, de casamento, etc. Somente com a proclamação da República, em 1889, Estado e Igreja se separaram.

Desenvolveram-se, assim, os chamados registros ou escrituras de propriedade. As sesmarias foram registradas dessa forma e são exemplos de documentos cartoriais. A maioria destas cartas de sesmarias encontra-se em Arquivos Públicos. Os Arquivos Governamentais possuem coleções de cartas de doações de sesmarias e registros de terras.

É importante saber, entretanto, as datas de criação das capitanias ou Estados, para saber onde procurar. Por exemplo, os registros mais antigos de Santa Catarina e Paraná encontram-se em São Paulo, pois eram Estados unidos, que só mais tarde foram desmembrados.

Muitas cartas de doações também podem ser encontradas nos arquivos portugueses. Esses documentos auxiliam para o efeito de comprovação legal de posses e permite o estudo do sistema fundiário. Os chamados avisos régios consistem em uma espécie de recenseamento das propriedades rurais, abrangendo também as vilas.

Tais documentos demonstram como foi feito o processo de aproveitamento e doação das terras que, muitas vezes, ocorria de forma desorganizada e irregular.

Heranças portuguesas

A história territorial do Brasil tem início em Portugal, onde encontramos as origens do nosso regime de terras. A ocupação das terras brasileiras pelos capitães descobridores, em nome da Coroa, trouxe o modelo português de propriedade para o Brasil.

Em suas origens, o regime jurídico das sesmarias liga-se aos das terras comunais da época medieval, chamado de communalia.

Antigo costume da região da Península Ibérica, as terras eram lavradas nas comunidades, divididas de acordo com o número de munícipes e sorteadas entre eles, a fim de serem cultivadas.

Cada uma das partes da área dividida levava o nome de sesmo. O vocábulo sesmaria derivou-se do termo sesma, e significava 1/6 do valor estipulado para o terreno. Sesmo ou sesma também procedia do verbo sesmar (avaliar, estimar, calcular) ou, ainda, poderia significar um território que era repartido em seis lotes, nos quais, durante seis dias da semana, exceto no domingo , trabalhariam seis sesmeiros.

As sesmarias eram terrenos incultos e abandonados, entregues pela Monarquia portuguesa, desde o século XII, às pessoas que se comprometiam a colonizá-los dentro de um prazo previamente estabelecido.

A doação dessas terras encontrava motivo na necessidade que o governo lusitano tinha de povoar os muitos territórios retomados dos muçulmanos no período conhecido como Reconquista. Essa expulsão dos árabes pelos cristãos iniciou-se no século XI e terminou por volta do século XV.

Esse sistema de aquisição de terras só funcionou em regiões e épocas em que prevalecia o estado de guerra e uma baixa densidade populacional que originassem terras ociosas e com possibilidade de serem ocupadas. A partir do momento em que foi fixado o limite territorial e o Estado se fortaleceu e se reorganizou, esse processo de obtenção de terras desaparece. Porém, na Península Ibérica, as doações de sesmarias existiram até final do século XIII.

Uma sesmaria media aproximadamente 6.500m2. Esta medida vigorou em Portugal e foi transplantada para as terras portuguesas ultramar, chegando ao Brasil. Muitas dessas terras estavam sob a jurisdição eclesiástica da Ordem de Cristo e lhes eram tributárias, sujeitas ao pagamento do dízimo para a propagação da fé.

A Ordem de Cristo foi herdeira da Ordem dos Templários, uma organização formada por pessoas que eram monges e guerreiros ao mesmo tempo. De caráter religioso e militar, criada na Idade Média, esse grupo tinha o objetivo de defender os cristãos dos ataques muçulmanos. Como monges, os templários faziam voto de pobreza, obediência e castidade; como guerreiros, defendiam a fé cristã. Essa ordem surgiu no ano de 1113 e foi extinta em 1312, mas como ela vivia de vultuosas doações de terras e dinheiro concedidos pelos reis, acabou prosperando muito; de tal forma que, em Portugal, o rei D. Dinis não permitiu sua extinção. Assim, a Ordem assumiu outro nome – a Ordem de Cristo– e ajudou na consolidação da formação do território português com a expulsão dos mouros e também nas navegações.

Surgimento das sesmarias no Brasil

No contexto das descobertas marítimas, Portugal almejou ampliar suas fontes de riqueza. A obra política e comercial da colonização tinha como ponto de apoio a distribuição de terras, que se configurava como o centro da empresa, calcada sobre a agricultura, capaz de promover a cobiça das riquezas de exportação.

El-Rei concedia, às pessoas a quem doou capitanias, alguns direitos reais, levado pelo desejo de dar vigor ao regime agora organizado. Muitas dessas concessões foram feitas em nome da própria Ordem de Cristo.

A monarquia portuguesa, nessa tarefa de povoar o imenso território, encontrou nas bases de sua tradição um modelo: as sesmarias. Foram as normas jurídicas do Reino que orientaram a distribuição da terra aos colonos. A lei D. Fernando I, de 1375, pregava o retorno das terras não cultivadas para as mãos da Coroa. Essa lei foi incorporada nas Ordenações Filipinas, Manuelinas e Afonsinas.

As capitanias eram imensos tratos de terras que foram distribuídos entre fidalgos da pequena nobreza, homens de negócios, funcionários burocratas e militares. Entre os capitães que receberam donatarias, contam-se feitores, tesoureiros do reino, escudeiros reais e banqueiros.

A capitania seria um estabelecimento militar e econômico voltado para a defesa externa e para o incremento de atividades capazes de estimular o comércio português.

O capitão-mor e o governador representavam os poderes do rei como administradores e delegados, com jurisdição sobre o colono português ou estrangeiro, mas sempre católico. Aliás, esta era uma das exigências para a doação de terras.

O capitão e o general podiam fundar vilas e desenvolver o comércio. O comércio com os “gentios” era permitido apenas aos moradores da capitania, com severas penas aos infratores.

As capitanias, constituídas nas bases político-administrativas do reino, assentavam-se sobre as cartas de doações e foral.

Foi a partir de 1530 que a Coroa portuguesa empenhou-se em garantir a posse do território brasileiro, estruturando um sistema administrativo à situação do Reino na época e implementando uma modalidade econômica rentável dentro dos interesses mercantis.

Era necessário combater dois problemas que se acentuavam, naquele momento, nas terras brasileiras: a presença de franceses no litoral, o que ameaçava a soberania lusa; e a necessidade de uma compensação econômica para suprir as demandas cada vez mais insustentáveis do comércio oriental.

D. João III, o Colonizador, adotou no Brasil o sistema de capitanias. Tratava-se de uma forma de promover a ocupação da terra sem onerar a Coroa, uma vez que todos os gastos ficavam a cargo do donatário.

A primeira pessoa que teve a liberdade de distribuir terras no Brasil, inclusive sesmarias, foi Martim Afonso de Souza. A sesmaria era uma subdivisão da capitania com o objetivo de que essa terra fosse aproveitada. A ocupação da terra era baseada em um suporte mercantil lucrativo para atrair os recursos disponíveis, já que a Coroa não possuía meios de investir na colonização, consumando-se como forma de solucionar as dificuldades e promover a inserção do Brasil no antigo Sistema Colonial.

A proposta buscava incentivar a ocupação das terras e estimular a vinda de colonos. Tê-la, no início da colonização, significava mais um dever do que um direito, já que sua cessão estava condicionada ao aproveitamento e transferência da terra após um certo tempo. As sesmarias estavam regulamentadas segundo algumas ordens do Reino.

É importante lembrar que as sesmarias não eram de domínio total dos donatários ricos, mas apenas lhes tocavam as partes de terras especificadas nas cartas de doações. Os donatários se constituíram em administradores, achando-se investidos de mandatos da Coroa para doar as terras e tendo recebido a capitania com a finalidade colonizadora. Eles não tinham poderes ilimitados, não foram legitimadores nem do público nem do privado e cabia-lhes apenas cumprir as ordens de Portugal.

Na época da colonização, pode-se distinguir o direito de caráter jurídico e o poder real de usufruir. A terra continuava a ser patrimônio do Estado português. Os donatários possuíam o direito de usufruir a propriedade, mas não tinham direitos como donos. Estavam, então, submetidos à monarquia absoluta e fortemente centralizada. Os capitães-donatários detinham apenas 20% da sua capitania e eram obrigados a distribuir os 80% restantes a título de sesmarias, não conservando nenhum direito sobre as mesmas. As sesmarias não comportavam assim nenhum laço de dependência pessoal.

Mesmo tendo sido estabelecida, em princípio, a necessidade de ser cristão para se receber a terra, aqueles que se dispusessem a lavrá-la poderiam recebê-la.

As leis das sesmarias em Portugal eram muito rígidas, chegando a ter 19 artigos. Dentre eles, para termos uma idéia, encontrava-se o direito de coagir o proprietário ou quem a tivesse por qualquer outro título, a cultivar a terra mediante sanção de expropriação ou, ainda, aumentar o contingente de trabalhadores rurais, obrigando ao trabalho agrícola os ociosos, os vadios e os mendigos que pudessem oferecer mão-de-obra, entre outros. Porém, no Brasil, tais leis não chegaram a ser estabelecidas, a única exigência era mesmo o cultivo.

As cartas de Sesmarias eram documentos passados pelas autoridades para doar terras; nelas, os donatários ou governadores de províncias autorizavam ou não as doações.

A presença dos posseiros

Muitas tentativas de regularizar o sistema de sesmarias foram em vão. Exemplo disso é a obrigatoriedade do cultivo, assim como a fixação dos limites, feitas à revelia da lei e o processo de expansão territorial praticado pelos fazendeiros e pela camada de posseiros.

A Coroa enfrentava alguns problemas, por exemplo, o de implantar um sistema jurídico para promover o cultivo e assegurar a colonização. A obrigatoriedade do cultivo acabou levando à formação de novos personagens entre os sesmeiros, entre eles, a figura do posseiro.

Muitos sesmeiros preferiram arrendar suas terras a pequenos lavradores. Isto dificultava o controle de verificação do cumprimento da exigência do cultivo e da demarcação, e ainda, dificultava o controle da Coroa sobre esse sistema de distribuição de terras, o que estimulou o crescimento da figura do posseiro.

Devido a tais fatores, muitos problemas se alastraram ao longo do tempo, pois formou-se uma camada de colonos que lavravam a terra, preenchendo assim um requisito básico da colonização, o cultivo. Mas esses colonos não possuíam determinações régias referentes às sesmarias, ou seja, adquiriram a terra de forma “ilegal”, muitas vezes pagando por ela, o que não era permitido durante o sistema de doações de sesmarias, seja de aluguel ou venda.

A aceitação do posseiro na legislação sobre sesmarias nas terras brasileiras se relacionou ao esforço da Coroa em limitar o poder do sesmeiro.

O reconhecimento da posse demonstrou a ambigüidade da legislação de sesmarias. Muitos sesmeiros ocuparam grandes extensões de terras, apossando-se de terras limítrofes. Devido às irregularidades e à desordem na doação das sesmarias, havia a necessidade de elaborar-se um regimento próprio, obrigando a regularização e demarcação das terras.

O Alvará de 1795 reconhecia o posseiro e tentava reestruturar o sistema de sesmarias, na tentativa de manter para a Coroa a responsabilidade na concessão das terras devolutas.

Suspenso no ano seguinte, o Alvará nos mostra como a realidade da posse e a obrigatoriedade da demarcação e do cultivo faziam parte de uma relação conflituosa entre Coroa, fazendeiros e colonos, enfatizando o poder dos grandes donos de terras.

Em 1822, suspendeu-se a concessão de sesmarias e isso acabou por beneficiar posseiros que cultivavam a terra. O fim das sesmarias consagrou a importância social dos posseiros. Embora terminada juridicamente a concessão, não se acabou com a figura do sesmeiro. Grande fazendeiro, ele não seria derrotado pela política do Império.

A Carta de 1824 garantiu assim o direito de propriedade, sem fazer alarde aos problemas herdados das sesmarias nem às terras devolutas.

Bibliografia

AZEVEDO, Antônio C. do Amaral. Dicionário de normas, termos e conceitos históricos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Porto Alegre: Globo, 1976, v. 1.
HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992.
LIMA, Ruy Cirne. Pequena História territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas. São Paulo: Arquivo do Estado de São Paulo, 1991.
SILVA, Pedro. História e mistério dos Templários. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

Revista HISTÓRICA - Arquivo Público do Estado de São Paulo