D. João V tentou em vão estabelecer uma maneira eficaz de cobrar tributos sobre o ouro de Minas Gerais. Só conseguiu reduzir as arrecadações e gerar insatisfação
Maria Beatriz Nizza da Silva
Ninguém gosta de pagar impostos, ainda mais quando os considera totalmente abusivos. As tentativas de D. João V, rei de Portugal entre 1706 e 1750, de estabelecer um tributo para o ouro extraído em Minas Gerais geraram mais dores de cabeça para a Coroa do que rendimentos para os cofres régios. Controvérsias, sonegação e revoltas: os governantes não se entendiam quanto à fórmula de cobrança a ser aplicada e a população se sentia cada vez mais onerada. Mas se por um momento o consenso pareceu quase inatingível, o sistema que acabaria levando todos a concordar com a taxação mostrou-se surpreendentemente simples. No fim das contas, a vaidade humana se revelaria tão cega a ponto de confundir um tributo com uma possibilidade de ascensão social.
O ouro na região de Minas Gerais foi descoberto durante o reinado de D. Pedro II, detentor do trono português entre 1683 e 1706. Mas foi seu sucessor, D. João V, quem procurou trazer para os cofres régios a parte do metal precioso que pertencia por direito à Coroa. O tributo fora estabelecido no início da colonização do Brasil. Entretanto, como o ouro tardou a ser descoberto em quantidades consideráveis, até a década de 1730 a Coroa portuguesa não havia se preocupado com os mecanismos para o recolhimento da quinta parte da produção mineral, como estava estipulado. Para que a cobrança pudesse ser realizada, ainda deveriam ser construídas Casas de Fundição em Minas Gerais, onde o ouro minerado seria transformado em barras, tributando-se nelas o valor determinado na lei.
Ao contrário do rei de Portugal, os colonos, inicialmente, estavam pouco interessados na busca do ouro. Basta lembrar que os paulistas, quando descobriram as primeiras pepitas em fins do século XVII, estavam, na verdade, à procura de escravos indígenas para as suas lavouras de São Paulo.
D. João V subiu ao trono em dezembro de 1706, e em novembro de 1709 implementou uma primeira medida para assegurar o controle da mineração: a Coroa comprou a Capitania de São Vicente, que antes pertencia a um donatário, restringindo assim a liberdade de ação a que os paulistas estavam habituados. Depois, em decorrência da guerra entre paulistas e forasteiros na região aurífera – conhecida como Guerra dos Emboabas –, o monarca decidiu criar a Capitania de São Paulo e Minas do Ouro. Seu primeiro governador foi António de Albuquerque Coelho de Carvalho, que tomou posse do cargo no dia 12 de junho de 1710. Estavam, assim, criadas as condições administrativas para que fosse efetivada a cobrança do quinto para o rei.
Temendo uma rebelião dos mineiros, o primeiro governador da capitania nada conseguiu fazer para arrecadar o imposto destinado à Coroa. Seu sucessor, D. Brás Baltazar da Silveira, arrecadou apenas 30 arrobas (antiga unidade de medida de peso, equivalente a cerca de 14,7 quilos) anuais de ouro, tributo que fora acertado com as Câmaras das vilas existentes na região. A taxa não representava a cobrança da quinta parte do ouro extraído, mas apenas uma finta, ou seja, um imposto provisório.
D. João V percebeu que a crescente produção mineira poderia gerar para seus cofres muito mais do que a taxa de 30 arrobas. Por meio de uma lei de 11 de fevereiro de 1719, determinou que a Coroa não aceitaria mais aquele ajuste. Para a arrecadação dos seus quintos, ordenou que fossem construídas as Casas de Fundição em Minas. Por ordem do governador, que era então D. Pedro de Almeida, conde de Assumar, começaram a ser erguidas as Casas de Fundição em Vila Rica, Sabará, S. João d’el-Rei e Vila do Príncipe. Foi estabelecido o prazo de um ano para a conclusão das obras, e durante esse período continuaria vigorando o sistema de fintas – como as taxas eram chamadas.
Em reação à criação das Casas de Fundição e ao estabelecimento da cobrança do “quinto rigoroso”, os mineiros se amotinaram. Alegavam que o trabalho de extração do ouro era árduo e a aquisição de escravos, muito dispendiosa. Diante da revolta, o conde de Assumar viu-se obrigado, em outubro de 1720, a suspender a execução da ordem régia. Ainda não foi dessa vez que as Casas de Fundição começaram a funcionar.
Em conseqüência destes motins, D. João V decidiu criar uma capitania autônoma de Minas Gerais, desligando-a de São Paulo e enviando para governá-la, em 1721, D. Lourenço de Almeida. Este recebeu plenos poderes para organizar a cobrança dos direitos reais como achasse melhor, podendo mesmo adotar a finta, desde que esta fosse superior às antigas 30 arrobas. D. Lourenço conseguiria negociar com as Câmaras uma finta maior.
Finalmente, em 28 de maio de 1722, chegou uma ordem régia para que se estabelecesse de uma vez a Casa de Fundição, o que só ocorreu em 1724. Nesse intervalo, as rendas reais parecem ter aumentado: um cortesão memorialista, o conde de Povolide, escreveu em seu diário que na frota do Rio de Janeiro esperada em Lisboa viria o quinhão do rei, calculado em 60 arrobas de ouro anuais.
Em janeiro de 1730, D. Lourenço mandou para Lisboa notícias da capitania de Minas Gerais, escrevendo que mais ouro era descoberto a cada dia. Porém, isto não significava que a Casa de Fundição recebesse mais quintos: o ouro em pó era desviado sobretudo para a Bahia, onde era utilizado para o tráfico de escravos da Costa da Mina. Numa outra carta, D. Lourenço comunicava que havia meses não entrava ouro proveniente dos quintos na Casa de Fundição, e que por isso ele decidira baixar o quinto cobrado em 8%, até que o rei lhe ordenasse suspender a medida. A decisão do governador desagradaria a D. João V.
Começaram a chegar à Corte de Lisboa notícias seguras informando sobre o desvio do ouro em pó e sobre a existência de falsas casas de fundição de barras de ouro. Essas barras eram entregues às Casas da Moeda do Rio de Janeiro, da Bahia e de Lisboa sem que seus proprietários tivessem pagado o quinto devido ao rei. Ouro clandestino era também escondido em caixas de açúcar e nos próprios navios da frota, a ponto de D. Lourenço de Almeida escrever, em julho de 1730, que se o rei mandasse abrir as cargas e desmantelar as embarcações, “lucraria a Fazenda Real 500%”. Além disso, quando a frota chegava à barra do Rio Tejo, na altura da vila de Cascais, parte do ouro era transferido para barcos de pesca estrategicamente posicionados.
O secretário particular de D. João V, Alexandre de Gusmão (1695-1753), passou então a defender a urgência de se evitar estes tipos de fraude aos direitos reais “em uma coisa tão fácil de esconder e extraviar como ouro”. Em 1733, Gusmão apresentou seu projeto de capitação e censo da indústria, aplicável a todas as terras de mineração, e, portanto, também a Mato Grosso, Goiás e minas novas de Arassuaí, no sertão da Bahia. Pretendia com isso aumentar os créditos da Fazenda Real, acabar com os contrabandistas e melhorar a situação dos mineiros. Como o contrabando era praticado principalmente por comboieiros e comerciantes, os mineiros eram os que menos lucravam com o ouro extraído.
A novidade, e também a complexidade, do projeto de Alexandre de Gusmão consistia na criação de um tributo denominado maneio, além da capitação dos escravos, que seria cobrado com base em um censo da parte da população que se dedicava a atividades que exigiam um menor número de escravos. Este imposto seria cobrado “à proporção da indústria e maneio de cada um”, ou seja, do lucro de cada um. O aspecto mais polêmico do novo sistema era a tributação de toda a população, e não apenas os mineiros.
No censo, além dos comerciantes e de outros que exerciam atividades afins, seriam incluídos ainda os letrados, os médicos, os cirurgiões e os boticários. Até mesmo forros, negros e mulatos de ambos os sexos, ficariam sujeitos ao imposto. Eram poucos os que escapariam da cobrança de 5%: apenas o governador, os intendentes da Fazenda Real, os ouvidores e juízes de fora, os funcionários encarregados da matrícula dos escravos e do censo para aplicação do maneio. As mulheres brancas sob pátrio poder, os eclesiásticos, os oficiais de justiça e os militares, desde que não se entregassem a atividades comerciais, também não pagariam o tributo.
A capitação dos escravos não era uma novidade, pois se pensara nela logo no início da exploração do ouro. O que era novo era sua abrangência: não se tratava agora apenas dos escravos que trabalhavam na mineração, mas de todos os escravos, fosse qual fosse sua atividade principal. Quanto ao maneio, este sim representava uma tributação revolucionária, pois se aplicava praticamente a toda a população da Capitania de Minas Gerais que não se dedicava à mineração. Por isso mesmo, Alexandre de Gusmão teve o cuidado de propor em seu projeto de lei que todos os demais impostos fossem suprimidos (dízimos, direitos de passagem dos rios, direitos nos registros etc).
O projeto do secretário particular de D. João V foi amplamente discutido no Conselho Ultramarino e por antigos governadores de Minas Gerais. Alexandre de Gusmão se dispôs a responder a todas as dúvidas suscitadas por seu plano de tributação. Por ordem do rei, teólogos foram ouvidos. Consultados pelo próprio Alexandre de Gusmão, os jesuítas do Colégio de Santo Antão, de Lisboa, não fizeram objeções ao novo sistema de capitação. Foram ouvidas também as opiniões dos padres da Congregação do Oratório e de outros teólogos e juristas.
O maneio causou uma controvérsia maior pelo fato de tratar-se de um imposto novo. Ao mesmo tempo, fizeram-se cálculos sobre o acréscimo das rendas reais que o novo sistema de capitação geraria. Embora os totais variassem, todos concordaram que dele resultaria benefício para a Fazenda Real e também que era impossível manter-se por mais tempo a tributação do quinto nas Casas de Fundição.
Enquanto se discutia o projeto de Gusmão, D. João V resolveu enviar um emissário a Minas Gerais, e em outubro de 1733 entregou a Martinho de Mendonça de Pina e de Proença (1693-1743) um regimento para sua missão no Brasil. A primeira providência a ser tomada consistiria em averiguar o número de escravos existentes em Minas Gerais. Em seguida, procuraria conhecer as atividades desses escravos: se eram mineiros ou roceiros, e, no primeiro caso, por que período de tempo costumavam minerar.
Martinho de Mendonça deveria transmitir ao governador de Minas Gerais – na época, o conde das Galveias – os diferentes pareceres sobre o assunto em pauta. O enviado do rei de Portugal e o governador debateram sobre o meio mais adequado de facilitar a cobrança dos direitos reais com o menor ônus possível para a população. Por seu lado, o governador convocou os procuradores de vilas cabeças de comarca – e de outras que era praxe consultar – a fim de ouvir suas opiniões sobre a capitação e o maneio.
Os procuradores se mostraram contrários ao novo sistema, que consideraram muito pesado. Ofereceram, como contrapartida, a proposta de pagar anualmente à Coroa a quantia de 100 arrobas de ouro pelos quintos, livres de despesas e pagos pela Casa de Fundição de Vila Rica, já existente, e pelas outras que seriam criadas. A oferta foi aceita. No dia 7 de abril de 1734, o conde das Galveias regulamentou a cobrança dos quintos.
Porém, quando o conde deixou Minas Gerais para assumir o vice-reinado na Bahia, Martinho de Mendonça elaborou com Gomes Freire de Andrade, seu sucessor no governo da capitania, um modo de implantar a capitação.
Em sua primeira versão, datada de 2 de julho de 1735, o regimento da capitação continha apenas 28 parágrafos, aumentados depois para 41. Apresentava algumas diferenças em relação ao projeto de Alexandre de Gusmão, sobretudo no que se referia ao maneio, do qual o secretário de D. João V isentava poucas pessoas. Por outro lado, os dízimos não foram abolidos, nem os registros e pedágios pelo direito de passagem nos rios, o que certamente contribuiu para a resistência da população ao novo sistema.
Para pôr em prática a nova forma de cobrança dos direitos reais, D. João V criou, em 28 de janeiro de 1736, cinco Intendências da Fazenda Real em Minas Gerais (Vila Rica, Ribeirão, Rio das Mortes, Sabará e Serro do Frio), além de outras quatro na Capitania de São Paulo e uma na Bahia.
A adoção da capitação dos escravos e do tributo do maneio, na forma como estes foram postos em funcionamento, encontrou fortes resistências locais, pois agora quase todos os habitantes de Minas Gerais tinham pagamentos a fazer ao rei – e não apenas aqueles que mineravam. A aplicação do novo sistema de cobrança foi mal recebida, sobretudo pelos moradores dos sertões, onde só existiam fazendas de gado. Recusando-se terminantemente a pagar a taxa, eles se amotinariam em 1736.
Anos depois, com D. João V doente e praticamente impossibilitado de governar, começaram a ser discutidas outras soluções para o problema da cobrança do imposto régio sobre o ouro. Em 1747 foi proposta a idéia de se fazer a arrecadação por meio de contrato – como havia muito se fazia com os dízimos e outros tributos –, mas a proposta não vingou pela baixa rentabilidade prevista para a Coroa. Mais tarde, em 1749, o desembargador Tomé Gomes Moreira defenderia a cobrança dos quintos nas Casas de Fundição. Argumentava que o sistema de capitação e maneio nem sequer era mais rentável: no primeiro ano de sua aplicação, a Coroa recebera 125 arrobas de ouro, enquanto entre março de 1734 e março de 1735, já com o quinto cobrado nas Casas de Fundição, o rendimento fora de 137 arrobas, livres de quaisquer despesas. Além disso, o ouro obtido com os quintos já vinha fundido, o que representava uma economia, pois a transformação do pó em barras sempre gerava perdas. Portanto, de acordo com o raciocínio do desembargador Tomé Gomes Moreira, D. João V estava perdendo, e não ganhando, com a mudança no sistema de arrecadação de suas rendas provenientes do ouro.
Logo no início do reinado de D. José, em 1750, os “povos das Minas” encaminharam uma representação ao novo rei, denunciando o “deplorável estado” em que a capitação tinha posto aquela capitania. Este documento é posterior à nova lei das Casas de Fundição, de 3 de dezembro de 1750, que substituiria o complexo e revolucionário sistema de capitação e maneio elaborado por Alexandre de Gusmão. Tal sistema fora deturpado em sua aplicação: os demais impostos não haviam sido suprimidos, talvez porque, como estes outros tributos eram arrematados por contrato, a Coroa, se os extinguisse, teria que indenizar os contratadores.
Resta mostrar de que modo D. José procurou evitar as fraudes e os desvios no caminho do ouro que seu pai em vão combatera. Ele o fez de uma maneira aparentemente simples e eficaz: concedendo hábitos de Cristo, e também de outras Ordens Militares, a todos aqueles que recolhessem anualmente às Casas de Fundição oito arrobas de ouro ou mais – fosse o ouro seu ou de outras pessoas. Como a possibilidade de tornar-se nobre deixava grande parte dos habitantes da Colônia com água na boca, o método de D. José parece ter finalmente oferecido um bom incentivo para que as pessoas pagassem o quinto do ouro à Coroa.
Maria Beatriz Nizza da Silva é professora titular da Universidade de São Paulo, tendo ministrado diversos cursos de História do Brasil em universidades européias. É autora, entre outros livros, de Ser nobre na Colônia (Unesp, 2005).
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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