A invasão da Rússia fracassou de forma miserável, deixando um rastro de corpos de Moscou até Paris. Em um novo livro, um historiador atribui o fracasso do Grande Exército de Napoleão não à marcha no inverno, mas à proliferação da "praga da guerra" - o tifo.
Bonequinhos que eram usados pelo imperador francês Napoleão Bonaparte para montar suas estratégias de guerra, expostos no Museu de Arte Brasileira, em São Paulo, em 2003
O destino do Grande Exército de Napoleão já estava selado muito antes que o primeiro tiro fosse disparado. Na primavera de 1812, mais de 600 mil homens marcharam em direção à Rússia sob o comando do pequeno nativo da Córsega - um exército maior do que a população de Paris na época.
O massivo exército estava à caminho para derrubar o czar russo Alexandre 1º. Mesmo assim, muito antes de a luta começar, alguns soldados deixaram as fileiras e caíram ao lado da estrada. Será que esses homens estavam simplesmente bêbados, ou havia algo mais em ação?
Dado o grande número de soldados à caminho, ninguém percebeu os poucos bêbados abandonados. Não até que, 200 anos mais tarde, veio à tona o fato de que essas primeiras mortes da longa marcha de Napoleão não se tratavam de alcoólatras incuráveis, e sim marcaram o começo do declínio do exército.
Esta é a hipótese de Stephan Talty, autor americano que reconstruiu a história médica da malfadada campanha de Napoleão na Rússia em seu novo livro, "The Illustrious Dead: The Terrifying Story of How Typhus Killed Napoleon's Greatest Army" ["Os Mortos Ilustres: A Terrível História de Como o Tifo Destruiu o Grande Exército de Napoleão", em tradução livre]. Talty cuidadosamente documenta porque 400 mil homens nunca voltaram para casa. Como poucos historiadores antes dele, Talty ilumina o papel crucial de um minúsculo inimigo: o piolho.
Por fim, a espinha dorsal do exército não foi quebrada pelos cossacos nem pelo impiedoso inverno russo, mas sim pelo typhus exanthematicus, disseminado pelos parasitas. Essa é a conclusão de uma pesquisa que começou em 2001 com uma descoberta chocante: uma vala comum com dois mil corpos em Vilnius, capital da Lituânia.
Primeiro, os escavadores acharam que as vítimas tinham sido mortas pela KGB, ou que eram judeus assassinados durante a ocupação alemã.
Mas ao examinar as fivelas dos cintos e botões dos uniformes com números gravados, os arqueologistas desvendaram o mistério. Os mortos, descobriram, eram soldados do Grande Exército de Napoleão.
Os pesquisadores recolheram amostras de DNA dos dentes dos mortos.
Análises laboratoriais revelaram que muitos dos corpos que haviam sido enterrados às pressas continham patógenos que correspondiam com o que era conhecido na época de Napoleão como a "praga da guerra".
Em detalhes minuciosos, Talty explica como a mistura de incompetência, ingerência e ignorância de seu comandante derrubou um exército que poderia povoar uma cidade de tamanho médio na Alemanha atual. Só na primeira semana de campanha, 6 mil homens ficaram doentes. "O número de doentes se tornou alarmante, e eles se arrastavam pelas estradas onde muitos morriam", observou o médico belga J.L.R. de Kerckhove.
"Napoleão não dava a mínima para quantos soldados morriam no caminho", escreveu o comandante de batalhão das forças alemãs Friedrich Wilhelm von Lossberg a sua mulher. O imperador tinha uma visão pouco sentimental em relação aos doentes e moribundos.
Sua equipe de médicos, muitos dos quais acreditavam ferrenhamente na obscura teoria de que os "miasmas" do ar ruim transmitiam doenças, ficaram atônitos com a rápida proliferação da praga. Essas crenças eram produto da época: ninguém ainda havia proposto a ideia dos germes, muito menos a ideia de que a doença poderia ser transmitida por piolhos. Nos hospitais ao longo da rota, os doentes graves eram colocados ao lado de homens que ainda estavam saudáveis, o que fez com que as vítimas mais recentes não fossem capazes de se recuperar.
A higiene ruim abriu caminho para a infestação generalizada de piolhos. Dentro de dez a 14 dias, os primeiros sinais de infecção - febre alta e dores de cabeça terríveis - começavam a aparecer. Logo os tremores e a exaustão se instalavam. As vítimas desenvolviam erupções e inflamações; e por fim ficavam tão fracas que mal podiam erguer um copo d'água.
Hoje, os médicos podem tratar as infecções facilmente com antibióticos. Mas fora a sangria, as ervas e uma mistura de vinho, água e um pouco de suco de limão, os médicos da época de Napoleão não tinham nenhum remédio eficaz para a doença. O médico-chefe de Napoleão, Dominique-Jean Larrey, sofreu para explicar as mortes em massa. A melhor hipótese que ele conseguiu formular tinha a ver com a chuva constante, a exaustão física e o abuso de bebida.
Quando o exército de Napoleão chegou a Moscou, suas tropas enfraquecidas não tinham forças para conquistar a cidade. Em 19 de outubro de 1812, Napoleão deu meia-volta com o exército doente e dirigiu-se para casa.
No caminho de volta, os soldados famintos e febris chegaram em Vilnius como zumbis. Desesperados por comida, alguns tentaram comer espécimes embebidos em formol dos laboratórios da universidade da cidade.
Pouco depois de seu retorno a Paris, Napoleão divulgou um boletim com a intenção de espalhar notícias reconfortantes por todo o império: "A saúde de Sua Majestade nunca esteve melhor".
Tradução: Eloise De Vylder
DER SPIEGEL
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