Navegar é preciso, contar também
Relatos de naufrágio tornaram-se populares na Europa do século XVI ao narrar as aventuras e infortúnios das viagens dos portugueses além-mares, incluindo Brasil
Angélica Madeira
Portugal lançava suas naus ao mar, com vistas para o mundo: África, América e, sobretudo, o Oriente. Estamos em meados do século XVI. Mesma época em que surge em língua portuguesa um gênero narrativo que ganha imediato prestígio e se espalha por toda a Europa, com grande sucesso. Trata-se dos relatos de naufrágio, notícias dos embarcados e de todo o universo de aventuras – e desventuras - que cercava as viagens dos navios mercantes portugueses ao ultramar.
De fato, desde a descoberta da rota das Índias por Vasco da Gama, em 1498, uma armada em direção ao Oriente deixava o porto de Lisboa, todos os anos, por volta de março ou abril. Composta de quatro ou cinco naus, saía do Tejo até o Atlântico, tomava-o na direção do sul, contornava a África e ganhava a costa do Malabar, Goa, Cochim, ou mesmo o Ceilão, portos em que os portugueses estabeleceram feitorias e entrepostos comerciais. Os navios iam em busca de pimenta, cravo e canela, além de outras novidades e objetos de luxo que exerciam grande atração sobre os mercados europeus. Mesmo com riscos, não se cogitava interromper as aventuras. Muitos barcos e vidas eram perdidos, mas havia consenso sobre a necessidade de continuar o comércio com o Oriente. “Naufrágios não podem parar as navegações”, o rifão era uma voz uníssona.
As causas dos naufrágios eram bem conhecidas: embarcações velhas ou em mau estado, sobrecarga, arranjo desequilibrado das caixas no convés, falta de material de reposição, como cordas, velas e pregos. A explicação mística, porém, prevalecia: a culpa pelos pecados e o merecido castigo que chegava com o infortúnio do mar.
Grande parte da população estava envolvida no projeto expansionista português: negociantes, banqueiros, contrabandistas, traficantes e “oficiais del Rei”, como eram então denominados os funcionários da Coroa que ocupavam os muitos postos administrativos e técnicos na intrincada burocracia que então se formou. Surgiam instituições específicas para a execução do projeto. A começar pela Casa da Índia, em funcionamento desde 1502, que contratava homens para os trabalhos no interior dos navios assim como para tarefas em terra. Da mesma maneira, uma série de profissões diretamente vinculada às viagens marítimas se estabelecia. Nesse cenário, não é difícil entender a grande popularidade alcançada por esses escritos de viagens acidentadas, que pode ser atestada pelas tiragens expressivas de mil exemplares em uma época em que um livro de sucesso não ultrapassava trezentas cópias.
Todos os relatos conhecidos narram acontecimentos da rota do Oriente, à exceção de um deles, o do naufrágio da nau Santo Antônio, ocorrido em 1565, em que viajava Jorge d’Albuquerque Coelho. Esse, além de ser um dos mais bem elaborados, do ponto de vista literário, é raro, pois narra um capítulo da história colonial brasileira. Embora comece com uma referência à política da metrópole – “No tempo em que a rainha dna. Catarina, avó d’el Rei d. Sebastião, governava o Reino de Portugal por seu neto” –, o que se segue é uma descrição sobre a capitania de Pernambuco e a atuação da família dos Albuquerque Coelho na guerra contra os índios Caetés.
A narrativa reúne também informações sobre as histórias fantasiosas que corriam na boca do povo, no porto de Olinda, prognósticos de feiticeiras, milagres e acontecimentos fantásticos, tendo como pano de fundo uma questão marcante do período: a guerra das religiões que aparece ali em sua versão particularizada, encarnada em personagens rudes, marinheiros, soldados e piratas, com intuito de evidenciar o alcance social daquele cisma que dividiu a Europa entre protestantes e católicos. Nesse contexto, a nau Santo Antônio, em meio a uma bruma espantosa, é aprisionada, na altura das ilhas do Cabo Verde, por piratas franceses. Protestantes luteranos, eles praticam todo tipo de heresia, quebrando imagens de santos, arrancando os terços e livros de missa dos portugueses, zombando de suas rezas. Essa nau sofre danos desde sua partida e, após sobreviver ao ataque dos franceses e a ventos e tormentas, chega, meses depois, toda estraçalhada, à Roca de Sintra.
Outros relatos do períodos fazem referência ao Brasil. Caso da nau São Paulo que saíra em direção à Índia, em 1560, mas, retardada por chuvas no golfo da Guiné, é obrigada a arribar ao porto da Bahia, onde atraca por 44 dias para reparos. O narrador, um boticário que ia para Goa, descreve a aventura com travo popular, humor ácido, povoado de ditados, citações e revelando também uma extraordinária capacidade de observação de costumes. Elogia a terra e suas belezas e segue afirmando que muitos homens que adoeceram de febres naquela viagem, ao chegarem ali, ficaram logo curados pelos bons ares: “...por ser esta terra do Brasil mui sadia e de muitos bons ares toda em si, por extremo e ter muito bons mantimentos e mui gostosos e sadios, assim os do mar como os da terra”.
A descrição prossegue com comentários sobre costumes indígenas, como a antropofagia, o resguardo dos homens, os códigos de honra; identifica graus de parentescos e os tabus que os regulam, tudo isso com uma invulgar capacidade de suspensão de valores, sem depreciar hábitos tão estranhos a um europeu. Retomando seu caminho para a Índia, apanha mares grossos e ventania, na altura das ilhas Tristão da Cunha, e naufraga nas proximidades do Cabo da Boa Esperança.
Também na Bahia aportou a nau São Francisco. Dessa experiência nasceu um relato, bastante incomum, escrito por um padre jesuíta sob forma de carta, em que conta as aventuras do navio que, saído para o Oriente, é empurrado pelos ventos para as costas brasileiras, sofrendo três naufrágios no Atlântico, todos sem drásticas conseqüências. O narrador não perde nunca seu senso de humor ao fazer o balanço de sua peregrinação que durou três anos. Confirma o viço da terra, rememora o bom passadio no Colégio da Bahia, encantado com as frutas desconhecidas (a banana, o abacaxi, a papaia, o jenipapo), sua beleza, perfume e sabor. Destaca as plantas curativas, o bálsamo, o óleo de copaíba e uma iguaria nova, uma erva santa, servida no fim dos banquetes: o tabaco. Erva tão cheia de virtudes, que os padres e leigos mal podiam esperar o fim da missa ou a comunhão para pitar e amezinhar o corpo.
Essa escrita que realça os aspectos informativos, curiosos e pitorescos das viagens ao mar, poderia, por si só, explicar o sucesso daqueles pequenos livros. Porém, razões menos evidentes justificam a trajetória bem-sucedida do sucesso dos folhetos: o fato de revelarem um sentimento de crise e de um estado de ânimo pessimista que tomava conta da Europa e, sobretudo, de Portugal que perdera a primazia das navegações oceânicas e sentia os efeitos de uma forte crise política, além de catástrofes naturais, tremores de terra e enchentes, surtos de pestes e revoltas populares.
Outros motivos, no entanto, concorrem para a popularidade dos relatos de naufrágio, dentre eles, um, de natureza técnica e material: a moda do texto impresso. Mesmo em um tempo em que a imprensa era recente, os livros, caros e a população letrada, muito reduzida, o sucesso desses livrinhos confirmava que o mundo havia entrado de forma irreversível na era da escrita. Portugal, em particular, já contava com a imprensa apenas três décadas após a invenção dos tipos móveis, em 1448, por Gutenberg. Em meados do século XVI, já havia um movimento editorial intenso, em que algumas casas se dedicavam a imprimir obras luxuosas, enquanto outras, pequenas tipografias, publicavam, em verso e em prosa, folhas soltas, em edições baratas e populares. Ali se encontravam as histórias mais estimadas do povo, vidas e milagres de santos, aventuras de bandidos célebres, romances de cavalaria — como os do ciclo do Rei Artur ou de Carlos Magno — ou histórias cômicas e sentenciosas, em meio às quais passaram a ser encontradas também as histórias de viagens e batalhas marítimas, assim como as relações de naufrágios dos galeões e naus da Índia.
É provável que muitas dessas histórias tenham se perdido. A principal documentação existente — uma coletânea com 12 relatos de naufrágio — resultou de um trabalho de edição e publicação, em dois volumes, em 1735 e em 1736, intitulado História trágico-marítima, de onde constam as narrativas dos naufrágios das naus Santo Antônio, São Paulo e São Francisco. A compilação foi feita pelo historiador oitocentista Bernardo Gomes de Brito, membro da Academia Real de História. Revela seu biógrafo, Barbosa Machado, que ele teria como projeto a publicação de mais três volumes contendo relatos semelhantes. Não se conhece a razão de tanto interesse de Bernardo Gomes de Brito, num período em que a historiografia oficial, de cujo círculo fazia parte, privilegiava o estudo das genealogias das famílias reais, das batalhas e das biografias de personalidades, a prosopopéia; e temas religiosos, a vida dos santos, a hagiografia e a teologia.
Não se sabe também por que interrompeu seu projeto e publicou apenas os dois primeiros volumes, dos cinco pretendidos. As causas podem estar nas dificuldades que encontrava à época qualquer livro para ser publicado, entre elas a de ser submetido às muitas instâncias do Santo Ofício e do Paço. A História Trágico-marítima demorou seis anos em tramitações burocráticas. Desde que foram iniciados, em 1729, os pedidos de licenças de praxe para sua publicação, até 1735, quando receberam finalmente a autorização, ou seja, o imprimatur.
Não fosse a coletânea de Gomes de Brito ficaria perdido para sempre um material precioso de pesquisas, para a história e para a literatura, pois, sem dúvida, os relatos de naufrágio prenunciam, de muitas maneiras, as convenções do relato histórico, do ficcional e do etnográfico, que ali aparecem de forma imbricada e embrionária.
Apesar das diferenças entre os relatos de naufrágio, eles são organizados segundo um modelo que traz na primeira parte a descrição da preparação para a viagem. Nela estão contidos os dados mais importantes sobre a organização da armada, datas, nomes, o porto de saída e o de destino. Após a partida, é narrada a vida a bordo, o trabalho, as rezas, os jogos, as calmarias letárgicas.
A ameaça de um naufrágio abre a segunda parte. Uma cena se impõe, abruptamente: uma avalanche de ondas que dos píncaros cavam abismos, ventos cruzados, chuvas, nuvens escuras, relâmpagos e trovoadas. É a preparação para o naufrágio. Começa então a luta dos homens contra a natureza em fúria. Eles fazem de tudo para não perder o timão, para esgotar a água, limpar os escoadouros entupidos de pimentas. A situação agrava-se mais e mais e, então, para os navios ficarem mais leves e governáveis, torna-se necessário jogar as mercadorias ao mar.
Os narradores descrevem um quadro fantástico: o mar coberto de barris e caixas, mercadorias caras, tapetes, tecidos, brocados; mirra e benjoim, riquezas que eram antes tão amadas por seus donos e que, no momento do perigo, são um estorvo, dificultando o equilíbrio dos navios. As cenas do naufrágio da nau São Tomé ilustram o tom desses relatos: “tudo quanto viam se lhes representava a morte; porque por baixo viram a nau cheia de água, por cima o céu conjurado contra todos, porque até ele se encobriu com a maior cerração e escuridade que se viu. O ar assobiava de todas as partes, que parecia que lhe estavam bradando morte, morte”.
São também descritas cenas que aconteciam no interior dos navios: os homens trabalhando, crianças e mulheres chorando, outros se confessando em voz alta, padres organizando rezas e ladainhas, tudo isso em uma linguagem exaltada e crivada de imagens altissonantes. Em torno da imagem poderosa do naufrágio, desenvolve-se uma profusão de motivos que preparam a ação: nuvens, chuvaradas e relâmpagos, elementos que estão ali não para reportar fenômenos atmosféricos, mas para configurar uma concepção trágica da existência, em que o mundo encontra-se arruinado pela cobiça e os personagens, pela culpa. Assim, desfila no texto um vasto repertório de alegorias que,
em muitos aspectos, prenunciam o barroco, em sua obsessão por temas extraordinários.
Na sucessão dos acontecimentos, passado o clímax do naufrágio, é dada a hora de buscar e contar os sobreviventes, em geral os que escaparam em barcos salva-vidas ou os que foram jogados, pelas ondas, nas praias da costa oriental da África.
Nesse ponto, inicia-se a terceira parte do relato: a perdição em terras desconhecidas, aventuras e encontros surpreendentes com reis mouros e africanos, sofrimentos, trabalhos e necessidades. Após o naufrágio, a narrativa retoma um tom mais informativo e traz descrições de hábitos e ritos das tribos, observações curiosas e depoimentos sobre a dificuldade de se comunicar, de resgatar água potável e alimentos, trocados, em geral, por pregos e pedaços de ferro que os portugueses conseguiam recuperar da nau destroçada.
Tanto no auge do naufrágio quanto no momento que o sucede — quando os sobreviventes estão perdidos e necessitados —, os narradores lançam mão de imagens alegóricas muito impressionantes para figurar a desproporção entre as forças da natureza e a fragilidade humana, a inutilidade das riquezas acumuladas, a inversão da roda da fortuna. Eles se valem também de recursos retóricos para ampliar o efeito da cena trágica sobre o leitor. Quando os portugueses iniciam sua caminhada pelas praias e sertões da África, fazem-na ordenadamente, em forma de uma procissão, com uma cruz à frente, como penitentes arrependidos, enrolados em cordas, purgando suas culpas. Tudo isso, como diz um narrador, para “manter a morte diante dos olhos” e levar as pessoas à piedade e à contrição.
Ao ter o naufrágio como foco dramático principal, uma cena-fantasma na memória do narrador, o relato assume muitos outros papéis. Serve como um ex-voto, para agradecer a Deus o fato de ter sobrevivido; serve também para provocar um efeito catártico, “folgar com o fim daqueles males”, e poder descansar do passado. Prenunciando as peças fúnebres da oratória do barroco, os epitáfios e as elegias, tão difundidos na cultura barroca européia, os relatos de naufrágio apresentam uma coleção de temas para meditação. Alegorias sérias e silenciosas, personagens em luto, desenganados, modos trágicos de morrer no mar.
MARIA ANGÉLICA MADEIRA É PROFESSORA E PESQUISADORA DO DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA E DO INSTITUTO RIO BRANCO. DOUTORA EM SEMIÓTICA PELA UNIVERSIDADE PARIS VII, É AUTORA DE LEITURAS BRASILEIRAS: ITINERÁRIOS NO PENSAMENTO SOCIAL E NA LITERATURA (PAZ E TERRA, 1999) E DE LIVRO DOS NAUFRÁGIOS – ENSAIO SOBRE A HISTÓRIA TRÁGICO–MARÍTIMA (UNB, 2005).
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
Nenhum comentário:
Postar um comentário