domingo, 30 de agosto de 2009

O Bestiário nas Escolas do Norte Europeu - Parte 2

Profª Dra. Sandra Daige Antunes Corrêa Hitner



A) Figura sem cabeça, mas seus olhos estão postos nas costas, entre os dois ombros.
B) Figura descrita com um pé descomunal.
C) Figura de um homem com três pares de braços, como descrita no manuscrito de Bruges.
MAETERLINCK, L. Le Genre Satirique dans la Peinture Flamande. Gand: 1903, p. 159, fig. 126; 127; 128.


Do registro profano ao religioso, a crença, que caminha junto com o conhecimento, entrega-se às mesmas especulações e fantasias.

Por volta de 1500, o Ocidente foi acometido de uma espécie de grande pânico. As construções intelectuais da Idade Média se arruinaram. Renascença e Reforma uniram os fundamentos de um grande pensamento perdendo pouco a pouco a segurança que os alicerçava. Os problemas sociais surgiram numa Europa descontente, onde a revolta aumentava de forma constante. A arte passou a exprimir, a sua maneira, um desequilíbrio espiritual e uma imensa inquietude, ressuscitando temas que há muitos anos haviam ilustrado os pórticos das Igrejas. Neste fim de século começou-se a encarnar as superstições mais absurdas e as loucuras mais angustiadas. As demonstrações artísticas desta época são as mais puras expressões da fantasia. Mas fantasia é um privilégio humano e dote daqueles que sabem ver, traduzir e transformar em arte uma boa experiência. Não há comunicação em arte sem uma linguagem comum. O efeito surpresa depende da expectativa que a arte cria. Não foi a consciência coletiva que criou o estilo da arte, mas a maneira de transmiti-la.

Para os flamengos, a observação da vida sempre foi um exercício criterioso; não importa se a olho nu ou com lupa. Eram absolutamente visuais, videntes, visionários, mais que pensadores ou filósofos. E foi este critério que fez esta observação construir sua arte; transformar-se, deformar-se, submeter-se ao espírito do fantástico, do maravilhoso, ou do simbólico. Nada de arbitrário, nada de puramente gratuito na invenção deste “outro mundo”: inferno e paraíso se constituíam à semelhança do mundo sensível, apoiando-se somente no alicerce de suas próprias aparências. A abstração não fazia parte do menu dos mestres desta escola de arte. Pode-se dizer que nenhum flamengo dava preferência à idéia em detrimento do objeto, ou privilegiava o conceito em relação à forma ou à cor. Apoiavam-se fortemente no mundo exterior e era por meio da disposição dos elementos extraídos da natureza que seus sonhos ou pesadelos se materializavam.

O gênero fantástico encantava o povo, satisfazendo-lhes o gosto através do maravilhoso e das manifestações quiméricas. As aparições do maravilhoso davam-se, muitas vezes, sem relação com a realidade cotidiana, muito embora surgissem sempre no meio dela. É talvez isso o que há de mais inquietante neste maravilhoso medieval flamengo: justamente o fato de ninguém se interrogar sobre sua presença completamente sem nexo em pleno cotidiano.

"A Baleia Perfurada, ou os grandes peixes comem os pequenos", estampa de Jheronimus Bosch. O original desta estampa se encontra em Bruxelas, no Cabinet des estampes de la Bibliothèque royale de Bruxelles.
MAETERLINCK, L. Le Genre Satirique dans la Peinture Flamande. Gand: 1903, p. 231, fig. 155.


Foi na Idade Média que este centro europeu se superou no exercício da temática do fantástico, retomando-o sem cessar no curso de sua evolução, reanimando formas primitivas ou as enriquecendo por meio de novos sistemas. O fantástico era um tipo de inspiração que chegava ao espírito por meio do olhar; a imaginação se alimentando da observação, se nutrindo do concreto, do palpável, do visível e depois os ultrapassando. Mecanismos artificiais da imaginação concebiam criações que fugiam ao controle da razão mais sensata, geravam figuras cujas formas escapavam à lógica, criavam faunas e floras monstruosas ou maravilhosas, anjos ou bestas, montanhas ou vegetações bizarras que se entremeavam ou se fundiam com personagens humanas e animais compondo todo paisagismo.

A partir de um desenho de Pieter Bruegel, o Velho: "Tentações de Santo Antão". Gravura, in CASTELLI, E. Il Demononiaco nell'Arte, Milano: 1952, p. 138.

Quanto ao espírito simbólico, em todo pensamento medieval a sedução do horrível era a base do estímulo do demoníaco, que era este “não ser” que se manifestava como pura agressão, justamente por ser desfigurado. O demônio era representado como a inconsistência de uma natureza humana, pois a besta não era senão um aspecto do ser humano, uma totalidade corporal destituída de inteligência, mas absolutamente passional para a destruição. Era um tipo de agressão que predominava entre as figuras dos santos nas pinturas alemãs e flamengas. Os demônios das gravuras alemãs do século XV tinham, todos eles, ou quase todos, uma dupla face. No lugar onde, na natureza humana, estavam situados os órgãos sexuais, aparecia uma face, um rosto. Um outro aparecia, por exemplo, nas costas; um terceiro, na altura do estômago. Esta bifrontalidade ou trifrontalidade era uma maneira de representar o que não existia, uma possibilidade de exprimir o que não tivesse consistência.

Mestre da Lenda de Santa Bárbara. Detalhe da História de Jô, Colônia, Museu Walraff Richartz, in CASTELLI, E. Il Demononiaco nell’Arte, Milano: 1952, p. 90.

Na básica lição de moral dos flamengos, por trás do símbolo da luxúria ou da preguiça, compreendia-se veladamente que todas as permissões para os excessos humanos eram concedidas pelo demônio àquele que estivesse disposto a lhe oferecer a alma, e procurava-se representar a tentação deste demoníaco reproduzindo o sentido do horrível indefinido, ou seja, reproduzindo algo sem natureza determinada, que podia ser chamada simplesmente de desnatureza. Os representantes do Bestiário assumem as mais diversas formas. Sempre deformados, remetem à idéia de flageladores. Alados ou híbridos, o fantástico como desfiguração vem expressar a investida impetuosa do demoníaco sobre o homem, como por exemplo, por meio do impulso (cupiditas), este poderoso ingrediente humano que existia na medida em que havia a ausência de algo de que se necessitasse, ou da volúpia, do excesso (voluptas), extensão do sensível; um desequilíbrio.

Escola de Colônia (por volta de 1500): "Crucificação" (part.). Museu de Bruxelas, in CASTELLI, E. Il Demononiaco nell'Arte, Milano: 1952, p. 91.

Para tal, o remédio adequado era a mortificação da carne. Como, na época, a imagem religiosa era a literatura do povo, os sacrifícios monásticos viraram tema dominante na arte e nas predicações medievais, naturalmente acompanhados de jejuns contínuos como contraponto, o que por vezes acelerava o sentido visionário.

Nas pinturas dos vícios, os flamengos empenharam-se em rebuscar os excessos. Esta fantasia, que tomou conta da arte da época, não deixou de ser uma pintura didática, ou seja, uma lição de persuasão, uma demonstração da cura do vício pela virtude. Para vícios leves, como a gula, luxúria, etc., não tão prejudiciais no exercício de seus antônimos, a culpa implantada pelas predicações já era uma punição suficiente, mas para vícios significativos, uma imagem escarnecedora era o melhor protesto.

Uma sátira da cavalaria, Água forte de Jheronimus Bosch.
MAETERLINCK, L. Le Genre Satirique dans la Peinture Flamande. Gand: 1903, p. 227, fig. 153.

Sempre fazendo uso do Bestiário, reformulando-o, aperfeiçoando-o, ou incrementando-o, a arte das escolas do norte europeu marcou um longo período, e de lá para frente, as imagens que eventualmente vieram a fazer sugestão ao antigo Bestiário medieval raramente se compararam a ela.

Revista Histórica - Arquivo Público do Estado de São Paulo

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