O projeto do Estado brasileiro
Apesar das constantes mutações, a relação entre sociedade civil e sociedade política no país caracteriza-se pela exclusão
SÔNIA REGINA DE MENDONÇA
Muito se tem escrito sobre a temática do Estado Brasileiro, especialmente no que tange à sua história mais contemporânea. No entanto, um rápido balanço sobre a historiografia especializada deixa entrever que boa parte desses estudos ainda considera o Estado a partir da matriz liberal de pensamento, resultando em considerá-lo como um sujeito, espécie de entidade que "paira" acima da sociedade, dotado de atributos humanos que o fazem querer, fazer, pensar.
De outro lado, estão as análises que focalizam o Estado em perspectiva inversa, tomando-o como um objeto, mero fantoche das distintas frações da classe dominante, nos vários momentos de nossa história, visão comum entre os autores que partilham da matriz marxista, ou melhor, da vulgata marxista. Na realidade, a questão que raríssimas vezes é discutida no estudo do Estado no Brasil é a de que ele consiste numa relação social - relação entre sociedade civil e sociedade política - em permanente dinâmica, implicando interações, conflitos e redefinições. Tal perspectiva além de recolocar a dimensão do Estado em registros teóricos e históricos menos banais, propicia um balanço mais coerente de sua trajetória e transformações ao longo, pelo menos, dos últimos dois séculos da história do Brasil.
Tomar o Estado como uma relação significa, antes de mais nada, deixar de considerá-lo enquanto pura coerção, para também entendê-lo como produtor/reprodutor da direção - intelectual, cultural e moral - exercida por um grupo ou fração de classe sobre as demais. Dessa ótica, fica mais fácil entender, por exemplo, a vitória de um dado projeto de Estado Nacional em meio a tantos outros, quando da crise do sistema colonial, onde se dava o que alguns autores denominam de recunhagem da "moeda colonial", com um determinado segmento da classe proprietária nativa impondo seu projeto de nação, real e simbolicamente, a todo o Império brasileiro. Também torna-se mais compreensível o êxito do projeto federativo republicano, formulado pelo grupo cafeicultor paulista e apresentado cada vez mais como "o nacional", no alvorecer deste século.
Novos horizontes se descortinam mediante tal perspectiva de análise do Estado, ao percorrermos a história brasileira ao longo do século 20, quando a complexificação da produção e da divisão social do trabalho geraram novos grupos e frações de classe - dominantes, em particular - sempre em disputa pela imposição de um projeto político-cultural hegemônico de cunho nacional, o que também significa disputar espaços dentro do próprio Estado, eixo organizador das classes e canal difusor de suas identidades.
O mais importante, no entanto, é destacar o quanto a história do Estado brasileiro, mesmo tomado como relação e espaço do exercício de hegemonia/consenso, tem-se caracterizado pela existência de um conjunto de obstáculos à sua plena realização, posto que marcado pela exclusão, permanentemente reposta, de vastos segmentos sociais: desde os colonizados, de inícios do século 19, aos agregados e posseiros rurais da Primeira República, passando pela totalidade dos trabalhadores do campo e parte dos trabalhadores urbanos (os "sem-carteira") não integrados ao mundo regido pelos direitos trabalhistas da era Vargas, até os atualmente inseridos no fenômeno "pobreza". Para todos eles foi, e ainda é, a coerção a face mais visível deste Estado. Para tanto, os mais variados segmentos dominantes que, ao longo da história brasileira - sobretudo nos séculos 19 e 20 - imprimiram sua direção ao Estado, redefiniram projetos de dominação política e simbólica que oscilaram do extermínio à ação policial - como no caso dos indígenas ou dos levantes da "plebe urbana" de meados do 2° Reinado; do apagamento da memória histórica das rebeliões de posseiros expulsos de suas terras já em meados do século passado, até a ina(ni)ção propriamente dita, tal como a vemos nos dias atuais, fruto da aceitação irrestrita dos pressupostos neoliberais por parte de todos os segmentos das classes dominantes brasileiras e, por extensão, pelo Estado.
Aceita a premissa teórica de que o Estado não é objeto nem sujeito, mas sim uma relação, cabe ressaltar que ele tem-se caracterizado, ao longo dos dois últimos séculos de nossa história, muito mais pela hegemonia/direção de um grupo com referência a seus iguais - ainda que em situações historicamente diferenciadas de disputa e conflito, ao longo do tempo - do que com referência a seus "outros" (não-iguais), exceção feita, até a década de 80, à classe média, junto à qual o apelo do(s) projeto(s) hegemônico(s) da vez ainda contou com razoável consenso.
Refletindo sobre as raízes históricas dos obstáculos ao pleno desenvolvimento do pólo hegemonia, comparado ao pólo coerção, vale lembrar que elas se ancoram em nosso passado escravista, onde não somente preponderou a força no lugar da "paz", mas de onde emergiram, mesmo superada a escravidão, relações de trabalho outras, porém igualmente herdeiras da "marca de Caim" do aviltante trabalho manual, materializadas num sem-número de atividades informais. Para alguns autores, é no decurso desta metamorfose das relações de trabalho que se situaria o "elo perdido" responsável por uma divisão social do trabalho abortada, cujo resultado - agravado pela próprias políticas coercitivas perpetradas pelo Estado em distintos momentos históricos - foi a inviabilização da existência efetiva de uma sociedade de classes no país, ao menos no que diz respeito aos dominados, que sequer tiveram/têm condições de completar seu projeto identitário, pré-condição necessária ao entre-reconhecimento de segmentos sociais, com vistas ao estabelecimento de um consenso ou direção efetivamente nacional. O papel do Estado em todo este processo foi fundamental já que não somente a representação é o momento mediador da reprodução social, como é o próprio Estado um dos principais centros difusores dessas representações.
Somada nossa herança escravista ao momento decisivo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil - a década de 1950 - tem-se que, da ótica dominante/estatal, boa parcela dos dominados cada vez mais foi representada como "não-explorada", posto viver - tal como se o afirmava desde fins do Império - de biscates, indolência, favores e expedientes congêneres. Os sucessivos projetos hegemônicos perpetuados pelo Estado diante desse quadro, só poderiam estar marcados pela "harmonia" em lugar do conflito.
Desse contorno, tido como indefinido dos "de baixo", abriram-se as brechas para projetos hegemônicos veiculados pelo Estado e nele encravados face à presença dos porta-vozes da(s) classe(s) dirigente(s) junto a seus aparelhos que sistematicamente, no decorrer de nossa história, ratificaram o discurso da negação da classe e do pertencimento a uma entidade global, um espaço da não-identidade (como no caso do conceito de "massa", por exemplo), encobridor da espoliação e da opressão.
Hoje, a principal questão para o entendimento da "crise" do Estado brasileiro é compreender a relação das novas burguesias dirigentes com as demais classes e grupos sociais, a qual passa pela "correia de transmissão" sdo próprio Estado, desprivatizante e repassador de fundos públicos a mãos privadas, contribuindo para aguçar as já opacas relações interclasses. Nesses termos, será que a relação social contida no Estado, deverá reduzir-se, no caso brasileiro, a um acerto entre um pequeno grupo de iguais, sendo os demais contidos pela coerção e a distração, à imagem e semelhança de Roma, acrescida de Antonil: pão, pau e circo?
Sônia Regina de Mendonça é professora do Departamento de História da UFF
JB 500 anos
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