sábado, 8 de agosto de 2009

Almofadinhas e malandros

O Bide
Almofadinhas e malandros
No começo do século XX, o samba nascia com o jeito comportado de compositores respeitáveis que dariam lugar a uma geração ligada à boemia, improviso e malandragem
Santuza Cambraia Naves

Foi numa roda de amigos que o sapateiro Alcebíades Barcelos, o Bide, e seus companheiros do Estácio, bairro do centro do Rio de Janeiro, criaram a primeira escola de samba do país, a Deixa Falar. Era um domingo: 12 de agosto de 1928.

O tempo dos sambas maxixados, da década anterior, ficara para trás. Novidades musicais e no comportamento dos sambistas davam nova feição a esse mundo musical carioca. A casa da tia Ciata, localizada no Centro da cidade, embalada por um samba que atendia às convenções da dança de salão e freqüentada por figuras de destaque como Donga e Sinhô, dava lugar a novos cenários: os botequins da subida do morro de São Carlos, por exemplo. O samba tocado nesses lugares tinha uma nova cadência, que se ajustava à coreografia das escolas de samba recém-instituídas nas favelas cariocas do Estácio e da Mangueira. Outra diferença importante: o novo samba era criado na base do improviso das rodas de batucada, com tamborim, surdo, cuíca e pandeiro – enquanto o samba da geração anterior, dos anos 1910, era desenvolvido por músicos com maior formação técnica e se fazia a partir de um processo de composição mais elaborado, com instrumentos de corda e sopro. Já os sambistas do morro, quando recorriam ao violão, o faziam sem aprimoramento técnico, apostando no dom e na intuição.

As diferenças entre os sambistas da primeira e segunda gerações também são claramente percebidas nas letras das composições. Era comum nas criações de Donga, por exemplo, a mistura de situações rurais e urbanas. Pelo telefone – primeira composição registrada como samba, em 1916 – é um bom exemplo. O estribilho, ou refrão, trazia motivos regionais – “Olha a rolinha/Sinhô, Sinhô, se embaraçou/ Sinhô, Sinhô/Caiu no laço do nosso amor” –, enquanto o restante da letra recorria a uma típica linguagem carioca para descrever uma situação de intervenção policial em ambiente de jogatina – “O chefe da polícia/ pelo telefone/ veio me avisar”. Essas letras chegam a parecer ingênuas, se comparadas com a maneira como os sambistas do morro, uma década depois, discorrem sobre a sua condição de favelados e a sua experiência periférica, à margem da sociedade e dos códigos convencionais de boa conduta.


Com relação ao comportamento, enfatiza-se, de maneira geral, o surgimento de uma nova atitude entre os sambistas do final dos anos 1920, notadamente os do Estácio. Assim, de acordo com diversas narrativas, se as duas modalidades de samba – a dos anos 1910 e a do final da década de 1920 – se criam sem dúvida a partir dos elementos da cultura negra, uma e outra geração lidariam com a herança africana de maneiras diferentes. Os músicos das comunidades baianas da Cidade Nova e adjacências tenderiam a adotar um estilo de vida pequeno-burguês, na medida em que eram orientados por um ideal de respeitabilidade. Tia Ciata, casada com um funcionário público ligado à polícia, tem a sua casa descrita não apenas como um abrigo de sambistas e chorões, mas também como um espaço que reunia pessoas importantes da vida política. Sinhô, um dos freqüentadores da casa, é sempre mencionado como alguém que aspirava a uma posição superior na hierarquia social. Assim, na condição de pianista do refinado Clube Flor do Abacate, no Catete, teria se vinculado a figuras de destaque nos mundos das letras e da política.

Os sambistas surgidos nos anos 1920, ao contrário, pouco afeitos a modelos burgueses, se ligavam sobretudo a redutos da boemia e ao cotidiano das populações faveladas. Essa condição de classe provavelmente explicaria a sua maneira mais rudimentar de fazer samba, recorrendo muito ao improviso e a técnicas “primitivas”, se comparadas às desenvolvidas por sambistas e chorões, como Donga, Sinhô e Pixinguinha. A própria temática era diferente daquela dos compositores da geração anterior, e aparecia focada em situações de “orgia”, “malandragem” ou “vadiagem”.

Um bom exemplo de composição afinada com os valores boêmios é A malandragem, samba de estréia de Bide, integrante da primeira geração de músicos do Estácio. A letra deste samba (gravado por Francisco Alves em 1927) consiste na fala irônica de um malandro anunciando que está prestes a abandonar a vida de orgia e virar “almofadinha”. É interessante observar que, se o personagem do malandro já era familiar na literatura brasileira desde o século XIX e também no samba desenvolvido pelos compositores cariocas dos anos 1910, é a partir do final da década de 1920 que “malandro” se torna sinônimo de “sambista”. E o lugar por excelência da prática da malandragem, segundo a maioria dos pesquisadores, seria o morro do Estácio, que abrigava sambistas importantes como os irmãos Alcebíades (Bide) e Rubens Barcelos, Ismael Silva, Nílton Bastos, Baiaco e Brancura.


As narrativas sobre a constituição da identidade de sambista, nos anos 1920, descrevem o personagem não apenas como uma espécie de subempregado, mas também como “malandro”, “biscateiro” e “proxeneta”. A proximidade do Estácio com a zona de prostituição do Mangue teria em muito contribuído para a sobrevivência dos seus compositores, que se reuniriam nos bares fronteiriços entre a zona de meretrício e o largo do Estácio, local que lhes permitia não só explorar o jogo e a prostituição como também se dedicar à criação de sambas. Bide, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som, no Rio de Janeiro, refere-se a uma sinuca da praça Tiradentes, bastante freqüentada por ele e outros sambistas, e descreve também a maneira improvisada de se fazer os sambas nos botequins, onde as melodias saíam “de cabeça”. O sambista, nesse universo, era um dublê de compositor e valentão, apto para a prática de capoeira e habituado ao porte de armas. Bide é também recorrentemente citado como criador de novos parâmetros para o samba, além de inventor não só de novos instrumentos – o surdo, fundamental para a marcação do ritmo do desfile – como do ofício de instrumentista. Bide e Marçal (outro músico importante do Estácio) tornaram-se parceiros constantes e, dentre várias de suas composições, destaca-se Agora é cinza, gravado originalmente por Mário Reis em 1933.

Ismael Silva é outro compositor do Estácio que, de acordo com os relatos, só se ocupava com samba e jogo de cartas. E tanto Ismael quanto Bide desenvolveram, desde o início de suas carreiras, a temática da malandragem. Ismael Silva se consagrou, por exemplo, ao utilizar esta temática na letra que escreveu para a composição Se você jurar, de 1931, em parceria com Francisco Alves e Nilton Bastos. A letra tem início com o seguinte recado do sambista para a sua musa: “Se você jurar/que me tem amor/Eu posso me regenerar/Mas se é/para fingir, mulher/A orgia assim não vou deixar”.

Bide, por sua vez, compõe a figura do malandro no próprio corpo, ao se vestir com os indefectíveis terno branco e colarinho engomado. No caso de Cartola (Angenor de Oliveira), da Mangueira, o próprio apelido se refere a seus trajes – mais precisamente ao chapéu que usava e que constituía peça indispensável do figurino malandro. Aliás, entende-se melhor o tipo de indumentária do malandro quando se leva em conta que, ao mesmo tempo que sinaliza uma busca de respeitabilidade, ao copiar o modelo universal do terno burguês, ela traduz a opção pelo inverso da condição burguesa, já que o uso da cor branca marca a diferença. Cartola, em suas narrativas, fala sobre o universo boêmio da Mangueira do final dos anos 1920 e refere-se à existência, na época, de dois tipos de blocos: os de “sujo”, dos quais fazia parte, e os familiares, aos quais o acesso lhe era interditado.


Quanto ao estilo musical desenvolvido por essa segunda geração de sambistas, é curioso observar que, apesar da linguagem debochada da temática malandra, se iniciaram, a partir do final dos anos 1920, os contatos entre as favelas e a cidade. Noel Rosa é sempre citado como um mediador entre os compositores pobres das periferias e os músicos cariocas de classes média e alta. Noel teria sido um dos primeiros músicos desse segmento branco e de classe média a subir os morros, como o da Mangueira e o do Estácio, e conviver com os sambistas desses redutos. Os sambistas do morro, em seus relatos, costumam reclamar da exploração a que foram submetidos no início de suas carreiras por compositores e intérpretes já conhecidos, como Francisco Alves e Mário Reis, que negociavam com eles a parceria de suas músicas. A despeito dessas situações difíceis na trajetória de compositores como Bide e Cartola, é a partir do final dos anos 1920 que o samba produzido nos morros começou a ser valorizado e apreciado por segmentos das classes alta e média da cidade.

Com a criação dos desfiles carnavalescos, os sambistas desceram do morro e começaram a fazer as evoluções na avenida. O samba passou então a contar com um público cada vez mais heterogêneo, que o consumia não só nos espetáculos dos desfiles, mas através dos novos meios de comunicação de massa, como o rádio, a indústria fonográfica tecnicamente aperfeiçoada e o cinema. A partir dessas transformações, o Carnaval permitiu a aproximação do que era considerado “alta” e “baixa” cultura. Em 1929, por exemplo, sob a promoção da revista O Cruzeiro, vários músicos eruditos – como Luciano Gallet e Lorenzo Fernandes – e escritores da Academia Brasileira de Letras – Adelmar Tavares, Humberto de Campos e Olegário Mariano – se reuniram para premiar as melhores composições para o Carnaval do ano seguinte. Jaime Ovalle, poeta e compositor bissexto ligado aos intelectuais modernistas, atuou como secretário do evento.

Com Getúlio Vargas no poder, a partir de 1930, o Estado passou a intervir nas festividades carnavalescas e nas manifestações musicais populares em geral. Em 1932, Pedro Ernesto, então prefeito do Rio de Janeiro, concedeu subvenções aos blocos, sociedades e escolas de samba. A escola Deixa Falar apresentou-se em desfile promovido pelo Jornal do Brasil com o enredo “A primavera e a Revolução de Outubro”, numa alusão nítida aos acontecimentos políticos de 1930. Tudo indica que um “namoro” entre Vargas e o Carnaval carioca teria começado a partir desses acontecimentos, até porque cantores populares, como Mário Reis e os integrantes do Bando da Lua, costumavam freqüentar as recepções promovidas por Vargas no Palácio Guanabara. E pessoas ligadas à vida intelectual mantiveram o seu interesse pelos desfiles carnavalescos na década de 1930, como Nássara e Orestes Barbosa, que divulgavam o evento através do jornal Mundo Sportivo.


É justamente na década de 1930, marcada pela ascensão de Vargas ao poder e pela afirmação do modernismo, que o samba se transformou em símbolo nacional. Houve nesse momento uma inversão do ideário de construção da identidade nacional concebido na década anterior, como o desenvolvido por Mário de Andrade no Ensaio sobre a música brasileira, de 1928. Nesse texto-manifesto, Mário propunha a contribuição das musicalidades de todas as regiões e etnias do país para o estabelecimento da identidade nacional. Fundamentando-se nessa perspectiva, defendia radicalmente a representação do Brasil através da síntese promovida pelas três raças – portuguesa, negra e indígena –, recusando o procedimento de pensar o país a partir de um único elemento, tanto cultural quanto geográfico. Ao contrário, portanto, da proposta de Mário de Andrade, que operava com a idéia de fusão, a inteligência dos anos 1930 optou por concentrar no Rio de Janeiro a escolha dos ingredientes básicos para a construção da identidade nacional, entre os quais o samba se destaca pelo seu valor emblemático. Em reflexão bastante original sobre o tema, desenvolvida em O mistério do samba, Hermano Vianna argumenta que, nos anos 1930, se recorre ao mito da “descoberta” do samba, como se de certa forma o morro contivesse o samba em essência. Assim, não só o samba como também o Brasil passam a ostentar uma natureza carnavalesca.

E, curiosamente, tomou-se como símbolo nacional uma musicalidade que, para os padrões modernistas da década anterior – que apostava numa estética mais elaborada, como a de Villa-Lobos –, se caracterizava por uma extrema simplicidade. Só no final da década o samba deixou de ser valorizado em sua “naturalidade”, pois o gênero começou a sofrer uma série de desenvolvimentos, responsáveis, em grande medida, pelo surgimento do samba cívico, ou samba-exaltação. Essa nova modalidade de samba se projetou com muita força, num viés mais sinfônico e monumental, a partir de Aquarela do Brasil, que Ari Barroso compôs em 1939. Seria uma das diversas mudanças experimentadas pelo gênero em sua trajetória ao longo do tempo

Santuza Cambraia Naves é professora do departamento de sociologia e política da PUC- Rio e pesquisadora do Centro de Estudos Sociais Aplicados da Universidade Candido Mendes.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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