domingo, 16 de agosto de 2009

A situação das crianças retratadas nas obras do mouro - O Capital (III)


No seu livro “O Capital”, Karl Marx apresenta uma análise sobre a exploração do trabalho humano, afirmando que certos ramos de produção onde não se opõe ainda ou até recentemente não se opunha nenhum limite à exploração da força de trabalho. Em comentários de uma reportagem do jornal “Daily Telegraph”, Marx destaca os seguintes dados:

O juiz do condado Broughton (...) declarou que naquela parte da população, empregada nas fábricas de renda da cidade, reinavam sofrimentos e privações em grau desconhecido no resto do mundo civilizado (...) Às 2, 3 e 4 horas da manhã, as crianças de 9 e 10 anos são arrancadas de camas imundas e obrigadas a trabalhar até as 10, 11 ou 12 horas da noite, para ganhar o indispensável à mera subsistência. Com isso, seus membros definham, sua estatura se atrofia, suas faces se tornam lívidas, seu ser mergulha num torpor pétreo, horripilante de se contemplar (...) “[1]

Baseado em inquéritos que apuravam o trabalho escravo de crianças e adolescentes em uma fabrica de cerâmica, Marx recolhe alguns depoimentos dessas crianças:

“Wilhelm Wood, um garoto de 9 anos, tinha 7 anos e 10 meses de idade, quando começou a trabalhar”(...) Chega, todo dia da semana, as 6 horas da manhã e acaba sua jornada por volta de 9 horas da noite (...)

J. Murray, um menino de 12 anos, depõe: (...) Chego ao trabalho às 6 horas da manhã, às vezes às 4. Trabalhei toda a noite passada, indo até às 6 horas da manhã. Não durmo desde a noite passada. Havia ainda 8 ou 9 garotos que trabalharam durante toda a noite passada. Todos menos um voltaram esta manhã. Recebo por semana 3 xelins e 6 pence. Nada recebo a mais por trabalhar toda a noite.[2]

Esses depoimentos demonstram as condições trágicas do trabalho infantil em uma Inglaterra que estava a todo vapor ampliando e otimizando ao máximo suas forças produtivas, para poder desenvolver suas relações de produção. Foi nesse quadro de horrores que a degeneração da classe trabalhadora começa ser objeto de denúncia por parte dos médicos. Segundo Marx, o Dr.Boothroyd da clínica em Hanley e Dr. McBean afirmam respectivamente:

“Cada nova geração de trabalhadores de cerâmica é mais raquítica e mais fraca que a anterior”.

“Desde que iniciei minha clínica há 25 anos entre os trabalhadores de cerâmica, tenho observado sua pronunciada degeneração progressiva pela diminuição da estatura e do peso”[3]

Como investigador que soube como ninguém tratar os dados empíricos em sua dimensão histórica, dando a eles o peso exato de sua referência ontológica, Marx demonstra uma sensibilidade na escolha e seleção dos dados que necessita para justificar seus pressupostos. Uma das descrições mais impressionantes da qual se utiliza é a do relatório da Comissão de 1863 do Dr. J.T. Arledge, diretor do hospital de North Staffordshire:

“Como classe, os trabalhadores de cerâmica, homens e mulheres,... representam uma população física e moralmente degenerada. São em regra franzinos, de má construção física e freqüentemente têm o tórax deformado. Envelhecem prematuramente e vivem pouco, fleumáticos e anêmicos, patenteiam a fraqueza de sua constituição através de contínuos ataques de dispepsia, perturbações hepáticas e renais e reumatismo ... A degenerescência da população deste distrito não é maior exclusivamente porque ocorre o recrutamento de pessoas das zonas adjacentes, além do casamento com outros tipos raciais mais sadios”[4].

Marx comenta de uma fabrica de fósforos, onde as condições de trabalho eram extremamente insalubres e metade de seus trabalhadores eram meninos com menos de 13 anos que trabalham entre 12,14 e 15 horas por dia, inclusive com trabalho noturno e refeições irregulares no próprio local de trabalho.

Em um depoimento feito pelos empregados de uma fabrica, Marx seleciona as seguintes falas:

“No inverno passado(1862), entre 19 moças não compareceram 6 em virtude de doenças causadas por excesso de trabalho. Tinha de gritar para elas a fim de mantê-las acordadas”. W. Duffy: “Às vezes, os garotos não podiam abrir os olhos de cansaço e o mesmo sucedia conosco. J. Lightbourne: “Tenho 13 anos de idade ... no último inverno trabalhávamos até as 9 horas da noite e no inverno anterior até as 10. No inverno passado, meus pés feridos doíam tanto, que eu gritava todas as noites. G. Apsden: “Este meu filho quando tinha 7 anos de idade, eu o carregava nas costas através da neve, na ida e na volta, e ele trabalhava 16 horas ... Muitas vezes ajoelhei-me para lhe dar comida, enquanto ele estava junto à máquina, pois não devia abandoná-la nem deixá-la parar [5].

Marx procura mostrar o processo de adulteração que as mercadorias sofrem no processo de produção capitalista, pois para ele a falsificação de produtos alimentares demonstra que a realidade se transforma em mera aparência, de acordo com o que se constata via relatórios dos inspetores do Estado Inglês, segundo os quais a população:

... está condenado a comer o pão com o suor de seu rosto, mas não sabia que tinha de comer diariamente, com o pão, certa quantidade de suor humano misturado com supurações de abscessos, teias de aranha, baratas mortas e fermento podre alemão, além de alúmen, saibro e outros ingredientes minerais agradáveis [6]

Segundo Marx, os que vendem mais barato, assim o conseguem em virtude dos produtos falsificados como forma de ampliar seus lucros. Nesse sentido, o capitalismo para produzir “riqueza,” utiliza de todos os métodos reservados para aqueles que podem consumir, independente da qualidade dos produtos por ela produzidos.

Portanto, a morte pode vir pela exagerada quantidade de comida que alguns acabam ingerindo, pela falta de comida, por aquilo que se come ou por trabalho em excesso, como assim continua Marx:

Moças que trabalham ininterruptamente 161/2 horas, durante a temporada às vezes 30 horas consecutivas, sendo reanimadas, quando fraquejam, por meio de xerez, vinho do porto ou café.

“Mary Anne Walkley morreu por ter trabalhado em excesso ... [7]

Marx utiliza-se da citação de um médico que afirma. “A palavra de ordem é trabalhar até morrer não só nas oficinas das modistas, mas em milhares de outros lugares onde se desenvolvem as atividades ...[8]

O processo de trabalho imposto pelo desenvolvimento capitalista demonstra que essas atividades estão contidas no interior da sociedade burguesa como assim foi exposto por Marx, quando ao tentar sinalizar essas idéias afirma no Manifesto Comunista:

As declamações burguesas sobre a família e a educação sobrem os doces laços que unem a criança aos pais, tornam-se cada vez mais repugnantes à medida que a grande indústria destrói todos os laços familiares do proletário e transforma as crianças em simples objetos de comércio, em simples instrumentos de trabalho[9].

Para finalizar essa breve síntese, sobre como Marx tratava as questões relativas ao trabalho infantil em alguns dos seus escritos, transcrevemos uma parte da entrevista feita ao jornal “Chicago Tribune”, em dezembro de 1878, em que defende:

Jornada de trabalho correspondente às necessidades sociais. Proibição do trabalho aos domingos.

Interdição do trabalho das crianças, bem como do trabalho cuja natureza prejudique à saúde e seja ofensivo à moral da mulher [10].

Conclusão

“Su nombre vivirá a través de los siglos, y con él su obra”

Sabiamente, Friedrich Engels pronunciou essas palavras no funeral de Karl Marx em 17 de março de 1883, no cemitério de Highgate em Londres. Na verdade, as aguçadas observações teóricas de Marx estão mais atuais do que nunca – sua obra permanece sendo objeto de debates, seminários, estudos em geral junto a centros sindicais, universidades, partidos políticos e intelectuais que buscam manter vivo o pensamento marxiano como ocorre com o chamado “Espaço Marx” – nome que se tornou o principal parceiro dos críticos do sistema capitalista, pois foi o filosofo que criou as bases teóricas para sua própria destruição.

Nada nos coloca tão próximos de uma realidade, já sinalizada onde a barbárie capitalista está mais explicita e poucos foram tão felizes teoricamente em suas investigações como Marx, demonstrando que o capitalismo em toda a sua existência para manter sua plenitude “vampiresca”, necessita exercitar o uso da violência e da exploração do trabalho infantil.

Na América Latina, segundo a especificidade e a particularidade de cada nação, o desenvolvimento capitalista apresenta desenvolvimentos desiguais, porém combinados em sua universalidade, onde o capital determina os avanços de cada país dentro de uma configuração histórica. Entender a dinâmica do capital em cada um deles é compreender o processo de como se configura a sociedade contemporânea.

Por isso, os dados apresentados pela Organização Internacional do Trabalho – OIT – retratam uma realidade dificílima para as crianças. Os números chegam à cifra de 300 milhões de trabalhadores infantis no mundo.

Na América Latina, segundo dados da UNICEF, existem 90 milhões de crianças pobres que potencialmente estão em estado de risco, ou seja, direta ou indiretamente atreladas a alguma forma de trabalho para poder sobreviver, como assim comenta Marcelo Novello em seu artigo pela Internet:

... Pero la lógica del capital sigue aún vigente, porque los niños son fuente de enormes beneficios para os capitalistas, no sólo por ser superexplotados en función laboral, sino también por el negocio del ‘comercio sexual’ (prostitución), o a través del tráfico de menores. Todas estas ‘actividades’ son organizadas por grandes corporaciones multinacionales (líneas aéreas y turismo, entre otras), que cuentan con la complicidad de los funcionarios estatales. En países como República Dominicana la prostitución infantil se convirtió en un “Factor macro económico” que permite “equilibrar la balanza de pagos” y así pagarle la deuda externa al capital financeiro internacional [11].

No Brasil, são 7 milhões de crianças que estão empregadas em atividades de alto risco, entre as quais podemos destacar os cortadores de cana, carvoeiros, prostituição, indústria de sapatos e distribuidores de drogas. Essas crianças como filhos do capital, se tornam os seres mais vulneráveis da sociedade, sofrendo de imediato com a ampliação da mais – valia, que apela para a barbárie em dimensões equivalentes às ocorridas no século XVIII.

A corrida pela restauração do capital em sua dimensão clássica, tanto no terceiro mundo como nos chamados países “socialistas”, provocaram um crescimento profundo quantitativo e qualitativo da miséria e pobreza. O aumento de crianças abandonadas e meninos de rua se generalizou pelo mundo, aliado ao crescimento do desemprego, ou seja, a crise da sociedade contemporânea.

As crianças foram transformadas em simples mercadorias a serem comercializadas, transformando-se em um dos principais rendimentos deste século. Os Estados nacionais organizam, congressos, simpósios e encontros alegando a defesa dos direitos das crianças, propondo simplificar suas leis( códigos, estatutos e portarias ) no campo da adoção de crianças, com o objetivo de que a livre circulação da mercadoria( criança ) ocorra.

A maioria dos países da América Latina possuem uma elevada taxa de crescimento demográfico acompanhado de uma multiplicação da miséria e pobreza. Campo propício para que ocorra a comercialização de uma futura mão-de-obra por países em que o crescimento demográfico está aquém de suas necessidades, por isso a existência de uma rede de agencias de adoções estrangeiras nesses países. O tráfico de crianças possui uma abrangência junto aos órgãos do estado e entidades públicas e privadas de atendimento social. Segundo, novamente, Marcelo Novello:

Outra manifestación de la catástrofe que implica la restauración capitalista, es el creciente aumento del tráfico de menores ( tanto legal como ilegal ). A partir de 1990 se registra un verdadero ‘boom’ capitalizado por auténticas mafias, que trafican menores desde los ‘países del Este’( principalmente Rumania y Rusia ) hacia el ‘Primer Mundo’. Existe inclusive todo un ‘mercado’ capitalista que tiene sus ‘preferencias’ reguladas por la ‘oferta y demanda’ de menores recién nacidos, de sexo femenino y tez blanca, que se cotiza en miles de dólares. El ‘negocio’ es tan generalizado y jugoso que muchos Estados, por ejemplo Brasil, hicieron cambios en la ‘regulación’ del sistema legal de adopciones [12].

O Capital transforma o ser humano em mercadoria podendo utilizá-lo conforme oscilam seus interesses, reprimindo e criando os estados de exceção via seqüestro, tortura e eliminação física ou criando leis e estruturas de confinamento tidas como de proteção à criança e adolescente. Aparecem as chamadas “casas de engorda”* que hoje se multiplicam na América latina.

A situação das crianças de hoje se equipara com a das crianças da Inglaterra do séc. XVII e XVIII. Karl Marx foi um pensador que caminhava com e na frente da história, desenvolvendo uma capacidade de análise só permitida a muitos poucos gênios da época e preocupado com o ser humano em sua dimensão ontológica, defendia o homem desde seu nascimento até a morte.

Marx mostrou à humanidade que inexiste nas relações capitalistas, qualquer vinculo humanitário e social a não ser o interesse em tornar o cidadão em instrumento capaz de aumentar a mais – valia do capital.

A vida de Marx, pai e família revelam uma infinita sensibilidade humana deste para com os seus e a humanidade. Sempre lutou por uma sociedade materialmente igual para todos, acompanhada de um crescimento da racionalidade humana. Podemos afirmar, sem medo de errar que Marx desmistificou as relações capitalistas e sinalizou que a pobreza por ela criada, acabou sendo ignorada pelo próprio capitalismo ou dada para as entidades sociais para desenvolverem a caridade. Nesse sentido, Marx demonstrou que a miséria e pobreza só teriam solução fora das relações capitalistas.

Bibliografia

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FONER, S. PHILIP. Cuando Carlos Marx murió (comentarios de 1883). Havana: Editorial de ciencias sociales, 1984.

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GEMKOW, HEINRICH. Sus vidas. Havana: Editorial de Ciencias Sociales, 1990.

KONDER, LEANDRO. Marx – vida e obra. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1981.

LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça e outros textos. Lisboa: Editorial Estampa, 1977.

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.MARX, K. O Capital-crítica da economia política, livro1 - O processo de produção do capital. Volume II. São Paulo: Editora Bertrand Brasil-Difel, 1987.

.MARX, K e ENGELS, F. Obras Escolhidas. Volume 1. São Paulo: Editora Alfa- Omega, s/d.

.__________________.A Ideologia Alemã I. Portugal: Editorial Presença, 1976.

___________________ Cartas a Kugelmann. Havana: Editorial de Ciencias Sociales, 1975.

___________________ O capital-crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

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NOVA ESCRITA ENSAIO. Marx Hoje. São Paulo: Editora Escrita, 1983.

NOVELLO, MARCELO. El capital tampoco sabe de niñez. http://po.org.ar/po/po393/e12.ntm

PLEBE, ARMANDO. Karl Marx: un ensayo de biografia intelectual. Barcelona: Editorial Hispano Europea, 1973.

[1] Idem, p.275 e 276.

[2] Idem, p.276 e 277

[3] Idem, p.277

[4] Idem, p.278

[5] idem, p.279 e 280.

[6] Idem, p. 282.

[7] Idem, p.288 e 289.

[8] Idem, p.290.

[9] MARX, Karl. Manifesto Comunista. São Paulo: Global, 1982, p.32.

[10] Nova Escrita Ensaio. Marx Hoje. São Paulo: Escrita, 1983 p.55. (grifo nosso).

[11]Novello, Marcelo. El capital tampoco sabe de niñez. http://po.org.ar/po/po393/e12.ntm

[12] Idem http://po.org.ar/po/po393/e12.ntm

* São instituições que têm a guarda provisória da criança e possuem uma infra-estrutura considerável, parecidos com uma empresa, pois possuem advogados, assistentes sociais, médicos, enfermeiras e monitores. Atuam de forma ostensiva na busca de mães solteiras, extremamente pobres, avisando-as da existência de famílias estrangeiras interessadas em seu filho. São intermediários diretos e indiretos em todo o processo administrando a todos os gastos financeiros até a adoção final, seja legal ou ilegal.

JOÃO DOS SANTOS FILHO
Bacharel em Turismo pelo Centro Universitário Ibero-Americano de São Paulo (Unibero) e bacharel em Ciências Sociais pela PUC/SP. Mestre em Educação: História e Filosofia da Educação pela PUC/SP. Professor-convidado na Faculdad de Filosofia e Letras da Universidad Nacional de Heredia (UNA), em San José da Costa Rica. Professor concursado pela Universidade Estadual de Maringá. Autor do livro “Ontologia do turismo: estudo de suas causas primeiras” EDUSC, Universidade de Caxias do Sul

Revista Espaço Acadêmico

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