quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Invenção de um país festivo


Estudiosos sempre destacaram a riqueza de ritmos,
o brilho das formas e as qualidades melódicas da música nacional

Martha Abreu

Se o carnaval e o samba, vistos como produtos de um especial e positivo mestiçamento de raças e culturas, são freqüentemente apontados como indiscutíveis marcas do ser brasileiro, a construção desta identificação possui uma longa e conflituosa história. Expressando uma outra visão sobre as festas, o fiscal da Freguesia de Santana da cidade do Rio de Janeiro, em 1846, por exemplo, comentava de uma forma bem pouco animada a famosa e concorrida Festa do Divino Espírito Santo: "esta festa de aldeia, no centro da cidade capital do Império é já olhada pelo homem civilizado como imprópria". A polêmica comemoração do Divino atraía, no século 19, um expressivo contingente populacional, especialmente os segmentos pobres, livres e escravos, numa festa religiosa repleta de diferentes manifestações musicais, como as valsas, polcas, batuques e lundus.

Ao lado deste preocupado fiscal, filiaram-se muitas autoridades e intelectuais, que procuraram cercear ou criticar a realização de festas em geral, tentando inviabilizar para o futuro qualquer possibilidade de um dia as danças e as músicas populares virem a ser símbolos da nacionalidade. Ao longo do século 19, o impacto da europeização dos costumes sobre antigas práticas culturais e religiosas, numa cidade como o Rio de Janeiro, capital do Império Brasileiro, produziu preconceituosas e contraditórias avaliações sobre as festas populares.

O curioso, entretanto, é que desde este tempo muitos dos registros sobre as festas associavam os costumes do "povo", em geral vistos como condenáveis, com a (difícil) formação da nacionalidade e da civilização brasileiras. Estes relatos oscilavam entre a crítica às desordens, que supostamente aconteciam nos dias de festa, e a preocupação com o desaparecimento de determinadas tradições, ameaçadas pela importação de costumes estrangeiros. Para literatos e memorialistas do século 19, um dos grandes desafios era, então, construir uma nação tendo que levar em conta as antigas tradições, quase sempre católicas e repletas de "atrasadas" manifestações populares e negras.

As discussões sobre as perspectivas da nacionalidade brasileira ganharam novo impulso nas últimas décadas do século passado, após a abolição da escravidão, quando definitivamente teriam que ser incorporados os libertos e descendentes de africanos ao mercado de trabalho livre e à "nação brasileira". Em meio a uma série de polêmicas sobre os efeitos negativos da mestiçagem racial, emergiu a discussão sobre a presença negra e africana na "alma nacional". Festas, músicas e danças despontariam, entre setores intelectuais, como um importante campo de estudos para se avaliar e, principalmente, projetar a versão musical da nação brasileira. Afinal, estas manifestações passaram a representar valiosos indicativos de uma nação formada por uma "raça mestiça", de inegável influência portuguesa, católica e, infelizmente para alguns, africana.

Escritores e músicos de diferentes partes do Brasil, no final do século 19 e início do 20, iriam identificar e construir, a partir de variadas e híbridas doses de etnia e cultura, uma original identidade nacional, musical e festiva. Para estes autores, não haveria dúvidas sobre a grande vitalidade da "música popular brasileira", em geral vista como produto de uma positiva e prodigiosa mestiçagem. Dentre os estilos de música eleitos como verdadeiros símbolos desta "música popular brasileira", destacavam-se as modinhas, os lundus e as chulas.

O trabalho de alguns destes autores envolveu-se também com a construção de uma história da "música brasileira", buscando legitimar a originalidade nacional. Esta perspectiva histórica, sempre ligada à construção do que seria a "música popular brasileira", seria seguida e aprofundada pelos modernistas, na década de 1920 (dentre eles Renato Almeida, Luciano Gallet e Mário de Andrade). Para estes autores, comprometidos com a construção de uma "música nacional", e, por isso, interessados nas possibilidades de harmonização (a palavra é sugestiva, se pensarmos no sentido de conciliação) da "música popular", as avaliações sempre foram positivas, destacando-se a riqueza de ritmos, o brilho das formas, as qualidades melódicas, a exuberância de vida interior.

No entanto, sem jamais terem chegado a um acordo, o melhor recurso que intelectuais e músicos encontraram para definir as características gerais da "música popular" nas sínteses históricas que procuraram construir foi a eleição de alguns gêneros musicais. A partir da antiga modinha e lundu, destacaram o choro, o maxixe e, finalmente, o samba.

Nesta operação, contraditoriamente, ao mesmo tempo que buscavam valorizar a mestiçagem musical dos estilos, às vezes muito próxima a uma depuração dos traços africanos, não conseguiram deixar de transparecer as dificuldades de síntese em termos de uma "música popular brasileira", em função da variedade de estilos e da significativa influência negra e africana.

As conclusões dos primeiros articuladores de uma identidade musical brasileira oscilaram entre a escolha de determinados estilos miscigenados e as inegáveis influências africanas. O samba talvez tenha servido muito bem a estes dois lados. Como defendia Renato Almeida, em 1926, "o samba do carnaval", apesar de apresentar o predomínio da influência africana, exprimia "motivos puramente brasileiros". Os "mestiços" teriam sabido quebrar um pouco a sua "violência", "tornando mais lânguida a melodia, mas acessível ao nosso temperamento".

Passadas tantas décadas, talvez seja oportuno indagar o quanto as atuais discussões sobre a "música popular brasileira" - e a sua própria história - encontram-se dependentes deste forte legado deixado pelos primeiros construtores de uma pretensa identidade musical (popular) brasileira.

Martha Abreu é professora do Departamento de História da UFF e autora do livro O império do divino, festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900, Nova Fronteira, 1999

JB 500 anos

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