Ao selecionar o exótico, procurava-se uma identidade que marcasse sobretudo a diferença
Lilia Moritz Schwarcz
Nina Rodrigues, conhecido representante da escola tropical de medicina da Bahia, em finais do século 19, costumava chocar seus estudantes proferindo frases do tipo: "se um país não é bastante antigo para se fazer conhecer por sua história, não é suficientemente rico para ser respeitado por suas finanças, precisa ser, pelo menos, interessante." O famoso médico retomava, na verdade, uma toada que parecia fazer sentido. Com efeito, desde inícios do século, pensar em uma nacionalidade local implicava buscar um discurso essencial, feito de excentricidades que, por exclusão, não podiam ser encontradas em nossa breve história de país independente e, muito menos, em qualquer traço de predomínio econômico. A saída, portanto, foi sempre selecionar o exótico, ou melhor, procurar por uma identidade que marcasse sobretudo a diferença.
Não é o caso de procurar por um modelo qualquer. Sabe-se, ao contrário, que a identidade, em seu sentido mais óbvio, é um pressuposto, um objeto quase virtual: não é dado puro, sendo antes uma construção. Não é, porém, o espaço da pura manipulação aleatória, na medida em que seu conteúdo é parte de um universo cultural reconhecível e compartilhado. Mas nada como lançar mão da comparação, já que nem todos os países experimentam a questão da mesma maneira. Basta lembrar do caso dos ingleses, dos franceses ou mesmo da reflexão que faz Eduardo Lourenço, com relação a Portugal. Na opinião desse autor, "nem o estatuto cultural, nem a situação histórico-política são, para os portugueses, um problema". É o passado - "a certeza de saber quem somos por ter sido largamente quem fomos" - que faz de Portugal um país centrado, bem concentrado e definido: "gente inscrita em um certo espaço físico e cultural que padece de ’hiperidentidade’, de uma quase fixação na contemplação da diferença".
Hora de desviar dessa seara escorregadia. Pode-se dizer que cada povo carrega ou existe em função de certo momento solar, que lhe confere sentido, euforiza magicamente a memória do que é. Poucas nações, porém, guardam para si o papel medianeiro e simbolicamente messiânico que Portugal desempenhou, quando a História Ocidental convertia-se em mundial. Mas, no caso brasileiro, a história é outra. Apesar de jamais ter incorrido no perigo de imaginar-se narcisicamente o centro do mundo - sendo quase uma ilha de memória - também aqui, e em vários momentos, selecionaram-se determinados ícones, prontamente transformados em símbolos da nacionalidade: 1822 (com a Independência), em 1888 e 1889 (com a Abolição e a República), ou 1930 (com o Estado Novo). Mas foi durante o Império, e mais particularmente no Segundo Reinado, que o tema da identidade se associou de forma mais imediata às práticas oficiais, quando investiu-se de forma pesada na recuperação e idealização de um modelo nacional e na conformação de um imaginário que colava o rei à imagem do Estado e - na ausência de uma história local (que não fosse portuguesa) - exaltava a natureza e os seus naturais como base material desse mesmo Império.
O modelo não era novo. Desde as primeiras imagens e relatos, o país foi associado à essa "feição natural". No entanto, nesse caso, o próprio processo de emancipação nacional, marcado pelas vicissitudes da afirmação de uma monarquia nos trópicos - cercada de Repúblicas por todos os lados - implicava uma tentativa palaciana de imaginar a nação. O Império oscilava, porém, entre dois pêndulos pesados: de um lado a representação de uma realeza européia, destacada por sua origem Bragança, Bourbon e Habsburgo; de outro, a relevância econômica do tráfico e da mão-de-obra escrava, que se espalhava por todo o território. Enredado por essa contradição fundante, o Império foi pródigo na criação de discursos que primaram por iluminar um tipo de memória e obscurecer outra: a presença do trabalho cativo e de uma sociedade miscigenada.
Dessa maneira, na medida em que era preciso dotar o país recém-independente de novos parâmetros de reconhecimento, cumpriu o romantismo o papel de uma verdadeira política cultural, altamente pautada em base ficcional, prontamente transformada em "matéria da realidade". Congregados em torno de algumas instituições diletas - como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a Academia Brasileira de Belas Artes - coube a um grupo selecionado a tarefa de pensar numa história feita de continuidades e sem conflitos e numa identidade que nascia colada aos indígenas, povos autóctones que, como tal, simbolizavam a nação em seus atos de bravura e de sacrifício. Afastados de qualquer base empírica, nossos índios eram mesmo bons selvagens, à moda de Rousseau, e conviviam envoltos por uma natureza que substituía, com méritos, a falta de palácios, de igrejas e de outros monumentos que bem servem para representar uma nação.
É assim que o nacionalismo brasileiro do 19 utiliza-se do romantismo na elevação da natureza (que vira paisagem), e das populações locais entendidas como nobres, autênticas e ao mesmo tempo ingênuas, diante do caminho indelével da civilização. O próprio projeto ganhava, assim, caráter estratégico a partir do momento em que era financiado pelo Estado e transformado em modelo de unidade nacional. Era responsabilidade dos pesquisadores fundar uma narrativa histórica e recortar um certo passado, de forma sempre enaltecedora. Por outro lado, os documentos saíam dos arquivos e compêndios e ganhavam vida nos romances épicos e em suas descrições que didaticamente misturavam ficção com descrições edênicas da terra e motivos de base histórica. Por fim, as pinturas acadêmicas retocavam a cena, recuperando a agenda histórica e os grande eventos exaltados na literatura romântica.
É assim que o círculo se fecha e o nacionalismo brasileiro de meados do 19 vira romântico, nas mãos de uma elite que convivia de forma paternalista com o espetáculo da escravidão e da mistura extremada. Longe do cotidiano, da violência de um sistema pautado no domínio de um homem sobre o outro, o país surgia destacado a partir do que tinha de mais universal e mais particular: de um lado uma realeza digna dos modelos mais tradicionais, de outro uma natureza grandiosa com seus indígenas envoltos em cenários idealizados, base espiritual dessa grande nação. Tratava-se, mais uma vez, de inventar um passado, recuperar o presente e associar uma certa aparência a uma essência, que havia de mostrar que o Brazil era mesmo, e tão-somente, Brasil.
Lilia Moritz Schwarcz é professora do Departamento de Antropologia da USP e autora de As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos, Companhia das Letras, 1998
JB 500 anos
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