Tribos que aqui estavam responderam ao contato
com europeus escolhendo aliados e inimigos entre portugueses e franceses
Maria Regina Celestino de Almeida
Os tupiniquim, os tamoio, os aimoré, os goitacá e tantos outros diferentes grupos étnicos que aqui estavam no momento da chegada dos portugueses tornaram-se todos Índios, a partir desse encontro. Inaugurava-se para eles uma época de holocausto com níveis de mortalidade e prejuízos incalculáveis. Como teria sido possível a um punhado de europeus impor tamanhos danos a tantos povos guerreiros? A partir, não resta dúvida, da colaboração deles próprios.
Convém destacar, no entanto, que os povos indígenas não estavam no Brasil à disposição dos europeus nem tampouco com eles colaboraram por ingenuidade ou tolice. Suas relações de aliança e inimizade não se deram única e exclusivamente a partir dos interesses dos estrangeiros. Ao contrário disso, as várias etnias aqui existentes responderam ao contato de forma específica de acordo com seus próprios objetivos e interesses ligados à dinâmica de sua organização social. Tais interesses, como os dos europeus, igualmente se alteravam no decorrer do processo histórico. Muitos recusaram-se a colaborar, mantendo a posição de hostilidade, como os Aimoré, por exemplo. Para os tupi, no entanto, grupo predominante na costa brasileira no século 16, as relações com o outro constituíam elemento básico em sua tradição cultural, daí a extrema abertura ao contato que tanto surpreendeu os europeus e possibilitou a colonização.
Na condição de aliados ou de inimigos, os estrangeiros inseriram-se nas relações intertribais já existentes entre os vários grupos Tupi, dando continuidade às suas tradições. A escolha de aliados e inimigos dependia das circunstâncias e interesses e alteravam-se com freqüência. Se os europeus cedo compreenderam as hostilidade entre os grupos indígenas e utilizaram-se delas em proveito próprio, a recíproca é verdadeira. Além disso, ao perceberem o impacto negativo das alianças, os índios não titubeavam em mudar de lado, quantas vezes considerassem necessário. Os europeus e os grupos indígenas podiam lutar numa mesma guerra com objetivos bem diversos, como foi o caso da conquista da Guanabara: se para os portugueses ela significou estender sua soberania sobre terras brasílicas, para Araribóia e seus temininó era a chance de voltar às terras de origem e combater antigos inimigos. Alguns anos antes, eles haviam se aliado aos portugueses, aldeando-se no Espírito Santo para escapar de um iminente massacre dos Tamoio.
O caráter destruidor das relações de contato, no entanto, logo se revelou, inclusive para os grupos aliados. Ainda nas três primeiras décadas do século 16, quando a ocupação rarefeita da terra e as relações de escambo, então predominantes, não eram tão traumáticas para as populações indígenas, seus efeitos negativos já se faziam sentir, causando altas mortalidades, desestruturando a organização social dos povos, modificando relações, intensificando guerras, instigando ódios e, sem dúvida, acentuando a tradicional inconstância e flexibilidade das relações dos índios com os outros. Não foram poucos os grupos que de aliados tornaram-se ferrenhos inimigos dos portugueses por conta de suas traições, violências e maus tratos. O melhor exemplo nesse sentido foi a grande revolta dos tupiniquim em várias regiões do Brasil, embora parte deles tivesse mantido sua aliança com os portugueses em São Paulo. Comportamentos, concepções e atitudes eram criados e recriados constantemente tanto por parte dos índios quanto dos colonizadores, conforme as motivações e circunstâncias.
O trabalho e a escravização indígena foram sempre utilizados pelos europeus mas se, por um tempo, foi possível obtê-los principalmente a partir das trocas com os aliados, também interessados nas relações de amizade e em algumas mercadorias, sobretudo nos instrumentos de ferro, tal situação não poderia se manter. Nas primeiras décadas, os escravos eram principalmente os prisioneiros de guerra trocados com os aliados. Porém a ocupação efetiva da terra e a consequente voracidade dos colonos em obter cada vez mais trabalho e escravos dos índios, muito além do que eles estavam dispostos a dar, só poderia intensificar os conflitos. O resultado foi o incremento assustador das guerras indígenas contra os portugueses em toda a costa.
A vinda do primeiro governador geral acompanhado dos jesuítas visava a manter a soberania sobre a colônia contra os ataques estrangeiros mas, principalmente, a submeter os índios inimigos e a integrar os aliados, o que se faria através da guerra justa e da política de aldeamentos. Os massacres foram, então, arrasadores, principalmente sob Mem de Sá, levando inúmeros povos a optarem pelos aldeamentos para escapar do extermínio e da escravização que os ameaçava nos sertões. Assim, os vários grupos étnicos do Brasil foram maciçamente incorporados à colônia. Na condição de escravos ou de aldeados tornavam-se todos índios, misturando-se entre si e com outros segmentos da sociedade colonial nas fazendas, nos engenhos nas lavouras e nos aldeamentos.
Integrados à ordem colonial, grosso modo, esses índios até muito recentemente, deixavam de ter lugar em nossa história. Vistos numa perspectiva assimilacionista, eram considerados aculturados e passivos, tendo perdido, junto com a guerra, suas identidades, culturas e quaisquer possibilidades de resistência, tornando-se massa amorfa e inerte num sistema que não lhes dava nenhuma margem de ação. Diluíam-se nas categorias genéricas de escravos ou despossuídos da colônia e desapareciam da história, embora continuassem muito presentes na sociedade colonial.
Em nosso dias, as novas tendências da História e da Antropologia (valorizando a noção de cultura histórica e ultrapassando o dualismo simplista que opõe "índio puro" a "índio aculturado") somada à pesquisa documental e às questões continuamente colocadas pelos movimentos indígenas da atualidade (sobretudo quanto à construção de suas histórias e identidades) permitem uma revisão da história indígena e outra compreensão sobre as relações dos índios com os colonizadores e sobre suas experiências no interior dos aldeamentos. Apesar da dizimação em larga escala e do desaparecimento de inúmeras etnias, a documentação revela que, na condição de aldeados, os vários grupos étnicos misturados na colônia continuaram vendo-se e sendo vistos como índios até o século 19 e, além disso, permaneceram lutando, juridicamente e pelas armas, para fazer valer o mínimo de direitos que a legislação lhes garantia. Passaram a constituir categoria social específica, genérica, sem dúvida, e sugerida ou mesmo imposta pelos colonizadores, mas assumida por eles no processo histórico que os levava a rearticular valores, tradições, interesses e objetivos.
O ato de aldear-se e colaborar com os portugueses pode ser visto, portanto, como forma de resistência adaptativa diante do caos que se instalara nos sertões. Afinal, os acordos de paz com os portugueses se faziam com promessas de terra, proteção e outras vantagens, sobretudo para as lideranças, promessas essas que os índios esforçaram-se por fazer cumprir. No interior dos aldeamentos, as diversas etnias misturaram-se não apenas entre si mas com mestiços, colonos e missionários e nesse processo aprenderam novas práticas culturais e políticas que manejavam em busca de seus interesses bastante alterados, sem dúvida, na nova situação colonial. Ao viver um processo de reelaboração constante de comportamentos, valores, crenças, interesses e objetivos, os temininó, tupinambá tupiniquim e tantos outros tornavam-se índios, assumiram a identidade genérica que, além das imensa perdas, lhes proporcionava também possibilidades de sobreviver e resistir no mundo colonial.
Maria Regina Celestino de Almeida é professora de História da UFF e doutoranda em Ciências Sociais na Unicamp
JB 500 anos
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