Ângela de Castro Gomes
As crianças aprendem, ouvindo e lendo histórias de fadas, que existem certas palavras que têm poder mágico. Quer dizer, que têm o poder de transformar as coisas e as pessoas, realizando seus maiores desejos e tornando o mundo muito melhor. O problema é que essas palavras, geralmente, são misteriosas, sendo preciso que a pessoa que as pronuncie possua uma série de qualidades e conheça regras para que seu poder funcione com eficiência. Caso contrário, o efeito pode se inverter e o resultado ser um mundo pior do que o original. Portanto, é o que as crianças aprendem, há muita disputa em torno do controle das palavras e elas podem mudar de sentido, conforme o enredo da história e a atuação de seus personagens.
Os adultos, que não mais lêem livros de histórias de fadas e nem mesmo livros de História do Brasil, com freqüência se esquecem de tudo isso, mas continuam buscando palavras mágicas, capazes de tornar o seu mundo melhor. Uma delas, com poder certeiro em campanhas eleitorais e projetos políticos dos mais variados tipos é modernidade. Ser moderno - estar em acordo com o novo de um certo tempo - é sempre uma ambição e uma promessa a serem alcançadas. O problema é que geralmente não se presta muita atenção ao fato de que o conteúdo desta palavra não tEm definição fixa, não tem modelo pré-definido e acabado e que, justamente por isso, há sempre várias idéias de moderno competindo pelo traçado de um mundo melhor. Várias idéias igualmente possíveis e desejáveis, dependendo da escolha do ângulo de visão do proponente e do observador.
Contudo, existem momentos na história de grupos sociais e de nações em que essa busca pelo moderno ganha intensidade particular, exprimindo-se através de projetos que podem ter a face de planos econômicos, de reformas políticas ou de propostas de renovação artística, por exemplo. É bom ressaltar também que, com freqüência, todas essas dimensões estão articuladas, tendo o desejo de ser moderno muitas formas de manifestação e muitos porta-vozes.
No caso da sociedade brasileira, um dos momentos consagrados como fundamental para a compreensão dos debates sobre a modernização foram as primeiras décadas do século 20, e nelas, em especial, os chamados fabulosos anos 20. Fabulosos, meio mágicos, portanto, porque neles se concentrou um conjunto de projetos de modernidade que não apenas diagnosticou e discutiu os mais graves problemas que então se vivia, como igualmente procurou dar a eles soluções inovadoras para a época. Questões que envolviam a realização de eleições, a educação, a saúde, as relações de trabalho e a urbanização estiveram na ordem do dia. Participando dos debates encontravam-se políticos profissionais, médicos, engenheiros, militares, educadores, filólogos, sociólogos, historiadores, arquitetos, literatos e artistas plásticos. Uma lista extensa e ainda assim incompleta, que quer dar a idéia da intensidade, da complexidade e da importância do período.
Um período de muitos nacionalismos, contemporâneo aos impactos produzidos pela Primeira Guerra Mundial, onde o desejo maior era construir um país que pudesse estar ao lado das "nações desenvolvidas e civilizadas", superando seu atraso e alcançando a modernidade. Inúmeros poderiam e deveriam ser os meios mobilizados para tão imensa tarefa. Inúmeros também poderiam ser os caminhos e projetos a seguir. Não é casual, portanto, que esse tenha sido um período de extrema riqueza na produção cultural da história de nosso país.
Isto porque a modernidade tem inegavelmente uma face estética como forma de expressão. Projetos políticos e sociais transformadores buscam se materializar nos traços de um edifício, de uma escultura, de uma pintura, de uma poesia. A arte é um campo fantástico de comunicação, uma vez que sua linguagem fala à razão e à emoção, como intelectuais e políticos sabem muito bem. Mas isso só acontece porque somos educados para "entender" essa linguagem; porque "treinamos" nossa sensibilidade para o novo conteúdo que ela nos apresenta. Quando, durante os anos 1910-20, instaura-se um movimento de grande renovação artística no Brasil - o Modernismo - o que ocorre é uma imensa disputa entre os próprios intelectuais sobre quem era verdadeiramente moderno e nacional, ao lado de uma enorme desconfiança do público sobre as mudanças que estavam sendo propostas. Foi preciso algum tempo para que os intelectuais se confrontassem e se posicionassem entre si e para que o público aprendesse a "ver" e a "ler" o que ficou conhecido como "arte moderna" brasileira.
Por essa razão, é praticamente nos anos 1930 e após muita luta, que a modernidade modernista passa a se instaurar como padrão artístico e também como uma das faces do Brasil que o Estado Novo (1937-1945) estava procurando construir. Ao longo dessa trajetória, diversos grupos intelectuais disputaram posições, não só contra os que chamavam de passadistas e retrógados (os "inimigos" geralmente são assim), como igualmente entre si, pois havia modernistas de diferentes procedências e com diferentes projetos estéticos. Como palavra mágica a modernidade tem suas manhas e elas são muitas...
Havia os modernistas paulistas que organizaram a Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, e com grande estrondo, assinalando simbolicamente o início do movimento. Eles foram muitos e muito famosos: Mário e Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Plínio Salgado, Cassiano Ricardo, entre outros. Mas eles eram tão diferentes entre si, que formaram vários grupos, havendo diversas correntes modernistas paulistas. Havia os modernistas mineiros de Belo Horizonte, como Carlos Drummond de Andrade, Cyro dos Anjos, Eduardo Frieiro, além daqueles do grupo da revista Verde, de Cataguazes. Havia também um modernismo no Rio de Janeiro, com Ronald de Carvalho, Renato de Almeida, Lúcio Costa, Ismael Nery e Andrade Muricy, entre outros. Havia modernistas em Pernambuco, Bahia e no Rio Grande do Sul. Enfim, havia modernismos e modernistas de vários tipos e em vários estados do Brasil.
Havia pintura moderna, como o homem amarelo de Anita Malfatti, as mulatas de Di Cavalcantti e os murais de Cândido Portinari. Escultura moderna, em bronze e mármore, como as de Brecheret e Bruno Giorgio. Poesia moderna, como a dos versos de Manuel Bandeira, Cecília Meireles e tantos outros. Romance regional e social moderno, como o dos livros de Rachel de Queirós, Jorge Amado e Graciliano Ramos. Arquitetura moderna, como a consagrada no prédio do Ministério da Educação e Saúde do Rio de Janeiro por Lúcio Costa e Oscar Niemmeyer. E havia Villa-Lobos das Bachianas e do canto orfeônico.
Enfim, tantos nomes e obras fundamentais. Reunindo-os e também separando-os tantos projetos que, de forma geral, desejavam retratar um Brasil mais nacional, real, arrojado e, se possível, mais belo. Os modernistas, com certeza, no seu tempo, tiveram qualidades para enfrentar os mistérios e realizar o sonho da palavra mágica: modernidade.
Ângela de Castro Gomes é professora titular de História do Brasil da UFF e pesquisadora do CPDOC-FGV.
JB 500 anos
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