ELINA PESSANHA E REGINA MOREL
A reestruturação capitalista das últimas décadas redesenhou a geografia das atividades produtivas e rompeu com o paradigma tecnológico anterior, com profundos reflexos no mercado de trabalho. A tendência predominante neste contexto tem sido enfatizar a competitividade das empresas no mercado globalizado, investindo contra toda forma de controle estatal e contratual da força de trabalho. No Brasil, pretende-se em nome do "fim da era Vargas", desmontar todo o sistema de relações de trabalho e instaurar um padrão mais "moderno" e adequado à nova ordem mundial. É sabido, no entanto, que a flexibilização e desregulamentação de normas trabalhistas têm assumido significados distintos segundo os contextos nacionais. Para além das puras forças de mercado, as agendas de relações de trabalho nos diferentes países dependem de arranjos institucionais próprios e mecanismos de negociação e confronto entre as classes.
O sistema brasileiro de relações de trabalho tem sido caracterizado por uma forte intervenção e regulação do Estado, com sérias implicações sobre o comportamento corporativo tanto do empresariado quanto dos trabalhadores. A consolidação democrática e os ajustamentos neoliberais, realizados na década de 90, têm levado a políticas públicas ambivalentes, assim como a respostas ambíguas por parte dos atores sociais. Se, por um lado, é verdade que parte expressiva dos sindicatos se encontra perplexa diante das novas medidas, por outro, não se pode dizer que o movimento sindical esteja imobilizado neste momento. Se a questão da defesa do emprego se torna a prioridade em tempos de crise, novas questões, como as da qualificação e da participação nos lucros das empresas, se incorporam às pautas de negociações.
O objetivo final é a reforma profunda da CLT, e, até o momento, as mudanças de maior impacto foram, sem dúvida, as que, em 1998, instituíram o contrato de trabalho por prazo determinado e o Banco de Horas. Outras mudanças, introduzidas por medidas provisórias, traçam normas para a contratação de trabalhadores por tempo parcial e para a suspensão temporária do contrato de trabalho. Igualmente, uma proposta de emenda constitucional pretende definir novas regras para o enquadramento, a unicidade e o financiamento sindicais e, complementarmente, limites ao poder normativo da Justiça do Trabalho.
As reações dos trabalhadores a todo esse quadro de transformações no padrão de relações de trabalho do país, refletem a heterogeneidade de suas condições bem como as posturas políticas de suas organizações. Apontam, ainda, para uma forte ambigüidade presente nas expectativas dirigidas ao Estado, enquanto "protetor", mas também principal responsável pela nova regulação dos direitos trabalhistas.
Assim, por um lado, os trabalhadores mais organizados apresentaram até bem recentemente muitos traços de vitalidade e de capacidade de mobilização (o número de greves começa a decair em 97), só nos últimos anos se observando o aumento expressivo de pautas defensivas sobre as propositivas, em resposta à conjuntura de desemprego elevado e crescente precarização do mercado de trabalho.
Por outro lado, para alguns segmentos do mercado de trabalho a legislação trabalhista é de difícil acesso, a densidade sindical é reduzida, as relações de trabalho são mais autoritárias. A flexibilização do mercado de trabalho nesses casos já é uma realidade, como demonstram a inexistência de quaisquer restrições aos empregadores quanto às formas de estabelecimento de vínculo empregatício e o número de trabalhadores fora do mercado formal. Atualmente, os assalariados com registro vêm perdendo participação para o conjunto de desempregados e ocupados precariamente: para uma População Economicamente Ativa estimada em mais de 75 milhões de pessoas em 1999, apenas cerca de 18 milhões são assalariados regidos pela CLT.
Esse quadro diferenciado e os desafios postos pela convivência de frágeis e poderosos sindicatos, estão certamente na raiz da ambigüidade acima referida. Realmente, tudo indica que as propostas governamentais pretendem abolir "por decreto" toda a herança corporativista, ignorando inteiramente a própria história das relações trabalhistas no Brasil. É lamentável, portanto, que propostas inovadoras, experimentadas no início da década de 90, de criação de arenas de negociação como a do contrato coletivo de trabalho e a das câmaras setoriais tenham sido abandonadas em benefício do livre jogo das forças do mercado.
Não se tem ainda sinais claros sobre os rumos do que está por vir, num quadro em que a maior flexibilização nas condições de contratação/demissão e a redução de encargos sociais não tem garantido a geração efetiva de novos empregos. Fica difícil falar em "fim da era Vargas" quando um estilo tecnocrático de formular políticas atribui às elites estatais o lugar central na elaboração das mudanças, desorganizando todo um sistema de intermediação de interesses, com sérios riscos para a democracia.
Eliana Pessanha e Regina Morel são professoras do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ
JB 500 anos
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