Tito Barros Leal de Pontes Medeiros
Professor da Universidade Estadual do Vale do Acarau
Resumo
Este artigo procura compreender a produção sofocliana questionando a tradicional temporalização da história grega no Período Arcaico (XII – VI a.C.) e no Período Clássico (V – IV a.C.), propondo o século V a.C. como transição entre estes períoodos. São analisados também alguns conceitos aristotélicos que se supõem fundamentais para compreender a dimensão filosófico-educativa da tragédia sofocliana e, neste sentido, tentar observar elementos éticos nas ações de Édipo, a partir da tragédia “Édipo Rei”.
Abstract
This article tries to understand the Sophocle's production questioning the traditional temporary demarcation of the Greek history in the Archaic Period (XII - VI B.C.) and in the Classic Period (V - IV B.C.), proposing the century V B.C. as transition among these periods. They are also analyzed some Aristotelian concepts that are supposed fundamental to understand the philosophical-educational dimension of the Sophocle's tragedy and, in this sense, to try to observe ethical elements in the actions of Oiedipus, starting from the tragedy King Oiedipus.
Notas introdutórias
O trabalho se propõe a analisar, a partir da ética aristotélica, as ações de Édipo na tragédia Édipo Rei de Sófocles. Para tanto se crê necessária, a fim de melhor situar o leitor na pesquisa, algumas considerações teórico-metodológicas.
Partindo do pressuposto de que as tragédias contribuíram para a construção de uma moral do homem grego, estas podem ser consideradas como elementos marcantes de um período de transição em que o homem oscila entre o sagrado e o profano, as leis divinas e as leis dos homens (nomos).
Neste sentido, a clássica divisão entre Período Arcaico e Período Clássico na história da Grécia antiga, será redimensionada — pelo menos na perspectiva deste trabalho — compreendendo-se o século V não como o primeiro do último período mencionado, mas como transição entre os dois universos simbólico-culturais que se confrontavam e se (re)configuravam.
Século V a. C. como período de transição
Jean-Peirre Vernant sublinha que o texto trágico está permeado pelas tensões e ambigüidades (VERNANT, 1977) subjacentes ao período de transição proposto neste estudo.
A polis grega, surgida ainda no período arcaico, abriu novas e fecundas possibilidades para os helenos. Foi a partir do desenvolvimento dessa nova forma de organização social que se implantou radicalmente no cotidiano do grego a filosofia e, com ela, as discussões sobre política e justiça.
Assim sendo, o surgimento das cidades-Estado no mundo grego contribuiu com o surgimento de uma situação histórica característica: o choque entre duas mentalidades. De um lado a mentalidade própria do mundo arcaico, marcada pelo misticismo e pelas limitações do homem frente ao divino; do outro a nova mentalidade, a clássica, ainda em formação, uma espécie de poder-ser-algo-novo, que punha em xeque o misticismo apresentando como “remédio” às limitações humanas da razão.
O homem inicia um caminhar petulante, desafia os deuses, foge do seu destino, tenta construir um caminho alternativo para sua vida baseado nas suas ponderações racionais, na filosofia e na política.
Esta transição, porém, não foi fácil. Os personagens trágicos, representantes por excelência deste momento de transformação psico-social do mundo grego, que quase sempre pagam alto preço por suas escolhas. A estes resta, muitas vezes, a bem da verdade, a simples certeza de terem podido praticar a escolha, “desobedecer” o destino, “rebelar-se” contra as vontades divinas em benefício das vontades humanas. Neste sentido, a tragédia marca o momento da ação humana.
Jean-Pierre Vernant e Vidal-Naquet, a propósito, escreveram:
Assim, também com a cidade, desenvolve-se um sistema de instituições e de comportamento propriamente político. (...) é nítido o contraste social que a polis substituiu juntamente com as práticas e a mentalidade que lhes eram solidárias. Não é diferente com a tragédia. Ela não poderia refletir uma realidade que, de alguma forma, lhe fosse estranha. (VERNANT, 1977: 8-9)
Percebe-se assim, portanto, que a tragédia é um espelho refletindo as transformações sociais próprias do período de transição entre a mentalidade social arcaica e a mentalidade social clássica. Segundo Arnold Hauser o texto trágico explicita nas suas entrelinhas “os conflitos internos da estrutura social de Atenas”. (HAUSER, 1953: 84)
É, pois, o texto trágico permeado de ambigüidades: democrático, quanto aos aspectos externos de suas apresentações às massas e, ao mesmo tempo aristocrático, quanto aos conteúdos de suas narrativas (a perspectiva trágico-heróica da vida) (HAUSER, 1953: 84); individualista, haja vista as ações dos protagonistas das peças e, ao mesmo tempo coletivo, posto a kátharsis que as apresentações deveriam produzir no público (HAUSER, 1953: 85).
A deliberação, ou a escolha
A psicologia social grega do período de transição está fortemente marcada por uma indagação constante sobre a ética. Essa nova problemática, introduzida de forma definitiva no cotidiano da polis desde o pensamento socrático, configurou-se numa questão central do novo modos vivendi que surgiria no período clássico.
Ora, a produção trágica no mundo heleno se dá de forma marcante do final do século VI e por todo o século V a. C., portanto, enquadra-se no período de transição entre a Grécia Arcaica e a Grécia Clássica como se vem defendendo neste artigo.
De fato, as preocupações relacionadas às questões éticas (ou mesmo a uma possibilidade de moral) estão presentes em todos os textos de Sófocles, ainda que nem sempre tenham sido trabalhadas de forma mais detalhada e evidente. Compreende-se tal fato a partir da seguinte consideração: o primeiro grande tratado de Ética, Ética a Nicômaco, de Aristóteles, surge na Grécia no século IV a. C., sendo posterior ao período da produção sofocliana.
Inserido num contexto intelectual que engatinhava no tema em questão, Sófocles desenvolveu obras onde os problemas éticos aparecem no centro das discussões. Realmente, a afirmação ora registrada pode parecer conflituosa com as várias teses e críticas literárias produzidas sobre as tragédias sofoclianas, e assim o é, ao menos em parte. Isto explica-se.
As análises de cunho literário apontam Sófocles como o mais humanista dos tragediógrafos gregos; os problemas apresentados por Sófocles em suas peças são sempre relacionados a questões humanas. Pouco se estuda, porém, a presença de elementos de uma proto-ética em seus escritos.
Temos, porém, que a questão ética é uma dos pontos centrais da Filosofia que tenta compreender o homem como ser social. Ora, a tragédia narra os problemas da sociedade ateniense, e, segundo Hauser, “em nenhuma outra forma de arte são apreciados tão direta e claramente quanto nela os conflitos internos da estrutura social de Atenas” (HAUSER, 1953: 84); portanto, narra problemas de dimensões éticas.
Ademais, um dos problemas principais circunscrito à Ética é o das escolhas — o escolher bem. Sófocles (e estende-se essa afirmação aos demais tragediógrafos) traz em suas obras uma reflexão concernente à escolha, ou seja, sobre a ação humana, escolha essa que é permeada por variantes e condicionantes sociais.
Na Ética a Nicômaco (LIVRO III, Cap. 02), Aristóteles apresenta uma reflexão sobre a escolha. Segundo o filosófo, ela parece ser algo voluntário, porém não é pela involuntariedade que o estagirita a define. A escolha não é comum à irracionalidade; segundo o autor ela se faz contrária ao apetite e não se relacionando com o agradável e o doloroso. Ela não visa as coisas impossíveis, relaciona-se com os meios e não com os fins e não se identifica com a opinião. Para Aristóteles, a escolha somente pode ser caracterizada a partir do binômio bondade-maldade.
T. G. Rosenmeyer observa que nas tragédias “o mal é endêmico entre os bons, num vínculo político que desafia uma separação entre dignos e indignos” (FINLEY, 1998: 168); afirma ainda que na concepção sofocliana “herói e vilão são um só, ou melhor, (...) nenhuma das duas condições é apropriada para a compreensão do mau procedimento humano” (FINLEY, 1998: 168).
Desta forma, Bem-Mal, certo-errado, felicidade-infelicidade, tradição-inovação, etc, se completam. Notadamente, é a partir desta oscilação entre extremos que Sófocles constrói seus heróis. São essas ambigüidades que, introduzidas visceralmente em suas personagens lhes confere o caráter humano — demasiadamente humano.
São as escolhas das personagens que movem as tragédias de Sófocles — e assim o é nas suas sete obras.
Para Aristóteles, a melhor escolha necessita sobremaneira do uso da razão (logos) e da reflexão. A escolha é, pois, aquilo que, racionalmente, colocamos diante das situações conflituosas.
Toda escolha depende de uma deliberação e esta se dá “sobre as coisas que estão ao nosso alcance e podem ser realizadas” (ARISTÓTELES, 1973: 285). Nas obras de Sófocles suas personagens sempre aparecem em processo de deliberação; noutras palavras, em vias de decidir.
Na Poética, Aristóteles escreve a seguinte passagem:
É pois a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão (...) que se efetua e não por narrativa mas mediante atores, e que, suscitando o “terror e a piedade, tem por efeito a purificação [catarse] dessas emoções.” (...) E como a tragédia é imitação de uma ação e se executa mediante personagens que agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio caráter e pensamento (...) daí vem por conseqüência o serem duas as causas naturais que determinam as ações: pensamento e caráter; e, nas ações (...), tem origem a boa ou a má fortuna dos homens. (ARISTÓTELES, 1973: 447-8)
Vê-se que, ao definir a tragédia, Aristóteles afirma que esta é um tipo de representação que “imita ações de caráter elevado” e o que determina essas ações são o “pensamento” e o “caráter” [ethos] das personagens. Desta forma, as ações às quais Aristóteles se refere são as deliberativas. Como anteriormente afirmado, as personagens sofoclianas estão sempre analisando uma situação para posicionar-se ante um problema.
Razão X Paixão
Até aqui foram tratadas as questões ligadas à razão humana presentes na construção das personagens sofoclianas; pouco se falou, no entanto, acerca das paixões que, de forma não menos patente, nelas se manifestam. Utilizamos o termo paixão fazendo referencia à terminologia utilizada por Aristóteles (e por praticamente toda a cultura grega). Neste sentido paixão se identifica a uma disposição contrária ou favorável a alguma coisa, e que ultrapassa os limites da razão.
Jean-Pierre Vernant e Vidal-Naquet são os que melhor falam dessa tensão entre razão e paixão no herói trágico:
Os sentimentos, as falas, os atos do herói trágico dependem de seu caráter, de seu ethos (...). Mas esses sentimentos, falas e ações aparecem, ao mesmo tempo, como expressão de uma potência religiosa de um daímon que age através deles (VERNANT, 1977: 15).
A citação acima aponta para a relação entre cultura arcaica e os princípios da cultura clássica: a primeira marcada na religiosidade que impele o herói a agir — comumente, em dissonância com a razão e em sintonia com a paixão —; a segunda marcada pela atitude característica do herói-trágico que, constantemente põe-se a questionar seus problemas, sua sorte, seu destino, sua vida e, assim procedem, mesmo que isto lhes seja — como muitas vezes é — muito caro.
Continuando, afirmam os autores:
A todo momento, a vida do herói se desenrola como que sobre dois planos, cada um dos quais, tomado em si mesmo, seria suficiente para explicar as peripécias do drama, mas que a tragédia precisamente visa a apresentar como inseparáveis um do outro: cada ação aparece na linha e na lógica de um caráter, de um ethos, no próprio momento em que ela se revela como a manifestação de uma potência do além de um daímon. Ethos-daímon, é nessa distância que o herói trágico se constitui. (VERNANT, 1977: 15)
Dessa forma, podemos nos perguntar que homem é esse que oscila entre o ethos e o daímon com tanta facilidade. Aristóteles, no capítulo XIII da Poética nos dá a resposta:
É [o] homem que não se distingue muito pela virtude da justiça; se cai no infortúnio, tal acontece não porque seja vil e malvado, mas por força de um erro; e esse homem há de ser algum daqueles que gozam de grande reputação e fortuna, como Édipo e Tiestes ou insignes representantes de famílias ilustres (ARISTÓTELES, 1973: 454).
Este homem trágico ao qual Aristóteles se refere padece de problemas de excelência pessoal (arete). Sempre procurando acertar e em constante busca pela justiça, segue seu caminho, porém, constantemente afasta-se da vida contemplativa (theoretikos) aproximando-se da do prazer (hedonen) e da das paixões (ARISTÓTELES, 1973: 252). Numa perspectiva aristotélica, afastando-se da razão esse homem afasta-se da arete.
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Após estas considerações, crê-se ser tempo de passar à análise da obra em questão. Os pontos até aqui analisados serão agora situados no texto de Sófocles.
Vale ressaltar que foi dada preferência ao estudo de Édipo, sendo ele, pois, o cerne do estudo. Não cabe neste artigo uma pormenorização das demais personagens da tragédia — pois hercúleo trabalho seria!
Porém, se alguma referência surgir ao longo do texto ora escrito concernente às demais personagens da tragédia em questão, isso se dará na forma de apontamentos coadjuvantes visando melhor compreensão da personagem em foco.
As ações de Édipo em “Édipo Rei”
Far-se-á, desde já, a análise das ações de Édipo na tragédia. Abre-se o texto com Édipo proferindo as seguintes palavras:
Meus filhos, nova geração de Cadmo, / porque permaneceis aí ajoelhados / portando ramos suplicante? / Ao mesmo tempo enche-se Tebas da fumaça / de incenso e enche-se também de hinos tristes / e de gemidos. Não reputo justo ouvir / de estranhas bocas, filhos meus, as ocorrências, / e aqui estou, eu mesmo, o renomado Édipo. (SÓFOCLES, 2002: 19 V. 1-8)
Por essa passagem, vemos que Édipo apresenta-se à cidade como a solução para a peste que a estava assolando. Isso se deve a duas questões principais:
1) Édipo já havia livrado Tebas de uma primeira desventura, a Esfinge;
2) De fato, somente ele poderia livrar a cidade de seu infortúnio atual, pois ele era o problema que afligia a cidade.
Neste sentido, ao apresentar-se como um rei preocupado com os problemas da cidade e disposto a solucioná-los, Édipo antecipa o governante do período Clássico. Isso fica bastante patente quando ele afirma:
Sei bem que todos vós sofreis, mas vos afirmo / que o sofrimento vosso não supera a o meu / Sofre cada um de vós somente a própria dor; / minha alma todavia chora ao mesmo tempo / pela cidade, por mim mesmo e por todos vós. (SÓFOCLES, 2002: 19 V. 77-81)
Em sua Ética Aristóteles nos afirma que a política (politiké) abrange as outras ciências em função do Bem (agathon) humano e que o Bem do Estado é maior, mais complexo, belo e divino que o do indivíduo (ARISTÓTELES, 1973: 249-50). A Ética busca o Bem da ciência política. Ora, vê-se nesta cena um Édipo político, muito mais preocupado com seu povo que consigo, muito próximo do ideal político proposto por Aristóteles.
O rei tebano, contudo, na sua busca para solucionar o problema que maltratava a cidade, envereda por um caminho não tão próprio ao homem do período clássico: pede auxílio ao divino. Neste momento, Édipo, o político do futuro século IV, retorna o seu tempo.
Recebe, por Creonte, o oráculo de Apolo, porém não consegue compreendê-lo. Fica a interrogar-se sobre o significado das palavras oraculares, busca compreendê-las a todo custo e, é nesse momento que Édipo inicia um duplo caminho, em tudo conflitante. Se por um lado o rei de Tebas busca solucionar o enigma por meio da ação racional, empreendendo quase que uma análise policial sobre o caso, por outro, arrebatado pelas paixões se perde nas buscas.
Édipo está perdido. Não sabe por onde começar. Quer solucionar o problema, mas não sabe como. O que fazer? Percebe-se então o desvio do racional; Édipo entrega-se às paixões.
Sem saber muito bem o que fazer, Édipo afirma:
não apagarei a mácula por outrem, / mas por mim mesmo: quem matou antes um rei / bem poderá querer com suas próprias mãos / matar-me a mim também; presto um serviço a Laio / e simultaneamente sirvo à minha causa. (SÓFOCLES, 2002: 19 V.169-173)
Pode-se perceber nesta passagem a anfibologia das ações de Édipo. Apesar de afirmar que se “prestará um serviço”, procurando o assassino de Laio, ele mesmo, na medida em que empreende a procura, se vai tornando procurado. A busca pelo assassino de Laio o levaria a ele mesmo: eis a tragicidade da tragédia.
A peça continua e uma outra importante ação de Édipo vem a público. Ele atribui a sentença ao assassino de Laio:
O criminosos ignoto seja ele um só / ou acumpliciado, peço agora aos deuses que viva na desgraça e miseravelmente! / E se ele convive comigo sem que eu saiba, invoco também para mim os mesmos males / que minhas maldições acabam de atrair inapelavelmente para o celerado! (SÓFOCLES, 2002: 19 V.289-295)
Porém, até aquele momento Édipo sequer havia compreendido com clareza as palavras do oráculo de Febo. Deliberou, pois às escuras. Não teve a temperança de analisar e compreender o problema com todos os seus pormenores. Como já foi apresentado, para Aristóteles a deliberação deve ser exercida com prudência e não concluída com base numa mera opinião. Édipo agora, auto-amaldiçoado, segue seu destino.
Charles Segal afirma que:
La pièce [Œdipe Roi] met em corrélation l'identité perssonnelle, le langage et l'ordre du monde em tant que réflexions multiples de l'échec du héros à trouver les termes médiatisans et ordonnateurs de l'avie civilisée. (SEGAL, 1998: 108)
É exatamente isso que se pode perceber nesta obra de Sófocles, um herói perdido, um rei em busca de salvar a sua cidade, porém incapaz de compreender um presságio, oscilando entre o mundo sagrado e o mundo humano, um Édipo manco (VERNANT, 2000), um homem que cambaleia.
Porém o que de mais grave se percebe nas ações de Édipo é sua presunção, a idéia que alimenta sobre si mesmo, que o cega ante a verdade, que o prende numa jaula de inviolável hermetismo psíquico. Édipo se vê como salvador, se entende como a resposta de um problema que não entende. E, na verdade ele assim é.
Quando Édipo se viu diante da Esfinge, logo de sua chegada a Tebas, pôde resolver o enigma que lhe foi apresentado pelo fabuloso monstro. Isto porque Édipo percebeu ali uma espécie de redenção. O Enigma da Esfinge só poderia ser respondido por Édipo, pois ele próprio era a resposta. Veja-se o que Jean Pierre Vernant escreve sobre o tema:
O monstro está em seu montículo, vê Édipo chegar e pensa que ele é uma bela presa. A Esfinge formula o seguinte enigma: ‘Quem, entre os que vivem na terra, nas águas, nos ares, tem uma só voz, um só modo de falar, uma só natureza, mas tem dois pés, três pés e quatro pés, dípous, trípous, tetrápous?' Édipo reflete. Essa reflexão talvez seja mais fácil para um homem que se chama Édipo, Oi-dípous ‘bípede'. Responde: ‘É o homem.' (VERNANT, 2000: 168)
A situação agora é diferente. Édipo também é a resposta para o assassinato de Laio; não sabe, mas é. Sua capacidade de análise do fato lhe é dificultada por dois motivos:
1) Ele está fugindo do seu destino (“Matarás o pai e casará com a mãe”, lhe diz o Oráculo de Delfos quando Édipo o foi consultar.);
2) Compreender em si a resposta seria impossível para um homem acometido pela confiança.
Édipo é por demais confiante! Segundo Aristóteles a confiança é uma paixão e, assim sendo, desvia o homem do caminho da razão. Na “Retórica das Paixões” o filósofo afirma:
São confiantes os que se acham nas seguintes disposições: se crêem que tiveram muitos resultados felizes e nada sofreram, ou se muitas vezes chegaram a situações perigosas e escaparam, porquanto os homens são insensíveis, ou por não terem experiência, ou por não disporem de proteção. (...) ora, cremos ter superioridade (...) pelas mais importantes vantagens pelas quais somos temíveis por sermos superiores (...) e se não cometemos injustiça contra ninguém. (ARISTÓTELES, 2000: 37)
Até esta altura, Édipo só havia tido glórias na vida. Em sua consciência havia conseguido fugir do destino ao sair de Corinto, evitando assim assassinar seus pais adotivos que ele ignorava. Havia conseguido vencer a Esfinge e, assim, livrado uma cidade de seus males. Por conta disto, conquistara o direito ao trono tebano que era seu por direito, mas ele não sabia.
Édipo via a si mesmo como um afortunado sem poder aceitar, portanto, a resposta que recebera de Tirésias, o cego adivinho, que pôde “enxergar” o que o rei não conseguiu — ou não se esforçava para conseguir.
Ao ouvir da boca do haríolo a verdade sobre si, Édipo toma-se de cólera, perde por completo o senso da razão, absorve-se numa busca desesperada pela verdade, a qual ele mesmo teima em não perceber.
As palavras que Édipo direciona a Tirésias após a revelação dos fatos, transparecem um misto de ironia e sarcasmo de Sófocles. O autor faz com que o rei fale aquilo dele mesmo sem que tenha consciência: “Em tua boca / torna-se débil a verdade; tens fechados / teus olhos, teus ouvidos e até mesmo teu espírito” (SÓFOCLES, 2002: 19 V.442-443).
Mas “Édipo é um homem de busca, um indagador, um questionador. (...) Homem para quem a aventura da reflexão e do questionamento deve sempre ser tentada” (VERNANT, 2000, 1970).
Desnorteado, segue sua investigação. Agora Édipo está sozinho, desamparado. Caminha só em busca da verdade, mas que verdade ele busca? Não se vê nele apego à sabedoria do passado, representada por Tirésias, que o próprio Édipo desprezou abruptamente; tampouco se percebe o bom uso da razão, característica que lhe era tão peculiar.
Édipo, o justo, transforma-se em Édipo, o tirano, o injusto, o arrogante. E assim permanecerá, até o momento da peripécia, ou seja, da segunda e definitiva transformação sofrida pelo herói, o reconhecimento dos seus erros.
Referido reconhecimento se dará de forma gradual na obra, iniciando-se quando Édipo profere essas palavras: “Ah! Deuses! Tudo agora é Claro! (SÓFOCLES, 2002: 19 V.902). Deste ponto em diante Édipo volta a se acalmar. Tenta se encontrar uma vez mais com a razão, apega-se ainda às sabedorias divinas, vale-se de todos os meios para solucionar o problema.
A justiça somente voltará ao palácio de Édipo no momento exato do reconhecimento do seu crime. Édipo é arrebatado por uma dor insuportável, posto que não teve oportunidade de escolher seu destino; seus atos foram, de acordo com as categorias aristotélicas, atos mistos, voluntários, pois que os princípios estavam no agente; e involuntários, uma vez que nenhum homem escolheria por eles. (ARISTÓTELES, 1973: 282)
E jamais eu seria assassino / de meu pai e não desposaria / a mulher que me pôs neste mundo. / Mas os deuses desprezam-me agora / por ser filho de seres impuros / e por que fecundei — miserável! — / as entranhas de onde saí! / Se há desgraça pior que a desgraça, / ela veio atingir-me, a mim, Édipo! (SÓFOCLES, 2002: 19 V.89)
Furando os seus próprios olhos, numa passagem onde a dor e a agonia imperam, Édipo reencontra a luz da razão. Essa situação paradoxal, expressa nas entrelinhas da peça, leva o público-leitor a pensar na trajetória humana. As ações de Édipo analisadas neste artigo podem e devem ser lidas a partir da idéia que Charles Segal tão bem sintetiza: ”Œdipe le roi devient Œdipe l'homme” (SEGAL, 1998: 122).
Édipo é uma alegoria sobre a humanidade. Sua jornada simboliza os caminhos que o homem percorre através da históira; uma jornada cambaleante. Por isso mesmo o símbolo dessa humanidade é Édipo, o de pés inchados, conforme a etimologia de seu nome. Por isso é que ele seguiu um caminho marcado pelas paixões, pelas falhas, pelos excessos, tão caros à vida do homem. Segundo Segal :
Œdipe résout et vit, dans sa propre vie, en connaissance de cause, l'énigme du Sphinx qui est en même temps l'énigme de l'homme qui existe dans le temps, et de son union paradoxale de l'un et multiple, simultanément. (SEGAL, 1998: 123))
Escrita num período de transição, no qual as mentalidades sociais estão se reconfigurando, se transformando, Édipo Rei, de Sófocles, transmite um ensinamento ético valioso que será mais bem detalhado em Aristóteles. Édipo Rei ensina o caminho para a virtude (virtus), ou seja, o caminho para encontrar a disposição de caráter que torna o homem bom e que o faz desempenhar bem sua função social. (ARISTÓTELES, 1973: 272)
Édipo desempenha sua função de rei: descobre(-se) o assassino de Laio, aplica(-se) a pena merecida (o exílio) e salva sua cidade. O meio-termo (meson), aquilo que é eqüidistante aos extremos foi alcançado.
O Rei se reconcilia com a razão e, munido da prudência (phronesis) advinda do reconhecimento das suas ações, passa a transitar pelos dois universos mentais. Isso fica bastante evidente em “Édipo em Colono”, também de Sófocles. As ações edípicas servem, neste sentido, como metáfora das ações humanas. Sófocles, desprezando o platonismo de sua época antecipa o aristotelismo, fazendo da obra de arte um veículo educativo.
Documentos
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Revista Mirabilia