domingo, 31 de maio de 2009

Do boato de rua à alta cultura


Paula Brito agitou o Rio com jornais e revistas populares, editou Machado de Assis, compôs lundus e modinhas e ficou amigo de D. Pedro II
Mônica Pimenta Velloso

Ruas estreitas favorecem a proximidade e a intimidade entre as pessoas. A comunicação é imediata, e assunto não falta. Pelo espaço público circulam costumes, hábitos, modas, sons, rumores e informações. O boato só precisa do “ouvido à boca para murmurar depressa e baixinho e saltar de um lado para outro”. Palavras de Machado de Assis sobre o que se passava nas ruas do centro do Rio no fim do século XIX.

Longe de ser apenas um passatempo ou uma distração, a boa e velha conversa fiada era uma ciência, uma arte. Invadia salões, cafés, clubes, sociedades, grêmios literários e recreativos, alimentando a vida cultural da capital do Império. E entre os muitos praticantes da conversação figurava com destaque o carioca Francisco de Paula Brito (1809-1861).

Mulato, autodidata e de origem extremamente humilde, Paula Brito fez de tudo na vida. Foi tipógrafo, comerciante, jornalista, proprietário de jornais, poeta, escritor, editor, tradutor, teatrólogo, compositor. Diante de uma lista assim variada, não é difícil entender por que ele era um dos principais agitadores culturais da cidade.

Em meados dos anos 1850, a Praça da Constituição (hoje Praça Tiradentes) era um movimentado centro de lazer, comércio e vida mundana. Ali funcionavam a botica de Juvêncio Ferreira – local de reunião de líderes políticos como Evaristo da Veiga e o general Polidoro – e o Café do Braguinha, que ganhou fama nos jornais devido a versos de letrados como Casimiro de Abreu e aos lundus bem-humorados de Laurindo Rabelo. Em frente ao café ficava o Teatro São Pedro (atual João Caetano). E no meio dessa agitação se localizava um misto de papelaria, oficina de encadernação e tipografia. Seu dono era Paula Brito, e o lugar – conhecido como “Loja do chá do melhor que há” – era um badalado ponto de encontro.

Paula Brito estava instalado na Praça da Constituição desde 1832. Ali conseguiu se impor no fechado comércio livreiro, até então monopolizado por imigrantes de origem européia. Seu segredo foi ficar atento ao leitor comum. Editou vários jornais e revistas populares, como O Limão de cheiro (1833), considerado o primeiro jornal alusivo ao carnaval, O capadócio (1835) e O carioca (1833-34). Lançou revistas destinadas ao público feminino, publicações humorísticas como A simpliciasinha (1833) e O simplício endiabrado (1839).

Como se não bastasse, teve a ousadia de investir em autores então jovens e desconhecidos. Neste caso, fica evidente o tino aguçado do editor; afinal, ele foi o responsável pelo lançamento de escritores como... Joaquim Manuel de Macedo, Martins Pena, Casimiro de Abreu e Machado de Assis!

Atento às conversas que vinham das ruas, Paula Brito se apercebeu do grande número de devotos, foliões e pessoas que circulavam pela cidade, mas permaneciam alheias aos jornais e revistas. Pois ele não mediu esforços para criar uma imprensa que os incluísse. Assim nasce, em 1849, o jornal A Marmota, dedicado ao grande público. Talvez o feito mais importante de Paula Brito tenha sido trazer humor e leveza à imprensa. Costumava dizer que nos países europeus e na América do Norte a leitura incluía “figurinhas e macaquices”. Por que no Brasil tinha de ser tão diferente? Por que os brasileiros não teriam direito a gracejos e riso? Ele estava decidido a mudar isso. As páginas de A Marmota vinham recheadas de anedotas, máximas, charadas e enigmas. Por vezes, compunha versinhos e desafiava os leitores a decifrá-los. Quem acertasse ganhava um prêmio: um livro, editado por sua tipografia. E para despertar o hábito da leitura, apresentava o periódico por meio de divertidas quadrinhas: “Como agora ninguém lê/ Neste século ilustrado/Sem, por algum incentivo, a tanto ser obrigado/De sorte que é necessário/das coisas ver-se a figura/ Para no escrito buscar-se o útil que se procura”.

“Ser útil, ainda que brincando”, uma de suas frases prediletas, viraria uma espécie de lema entre as revistas de humor cariocas nas primeiras décadas do século XX.

Aos poucos, a oficina-editora de Paula Brito tornou-se referência na cidade. Ali eram dadas aulas de piano, distribuíam-se folhetos sobre a epidemia de cólera-morbo, ofereciam-se cursos de bordado e figurinos da moda francesa. A loja ainda abrigava palestras, reuniões e encontros. Em um desses eventos, nasceu uma influente sociedade lítero-humorística de nome curioso: a “Petalógica”. Apesar de os “não iniciados” imaginarem que o termo tivesse uma origem romântica, derivando da palavra pétala, o nome da irmandade vinha da palavra peta, que significa mentira. Divertindo-se com o fato, o grupo deixava que a versão romântica corresse à solta.

Machado de Assis, um dos ilustres integrantes da Petalógica, considerava a sociedade sua “família da rua”. Funcionava, segundo ele, como um espaço para troca de informações: “Quereis saber do último acontecimento parlamentar? Era ir à Petalógica. Da nova ópera italiana? Do novo livro publicado? Do último baile? Da última peça de Macedo ou Alencar? Do estado da praça? Dos boatos de qualquer espécie? Não precisava ir mais longe, era ir à Petalógica. Os petalógicos, espalhados por toda a superfície da cidade, lá iam, de lá saíam, apenas de passagem, colhendo e levando notícias, examinando boatos, farejando acontecimentos”.

Os petalógicos também gostavam de carnaval. A casa de Paula Brito era um dos principais pontos do percurso de um grupo animado de foliões, o “Congresso das Sumidades Carnavalescas”. Na festa de 1860, Machado de Assis decretava na Marmota a morte da seriedade: “Morreste, seriedade! Momo, o deus das zombarias, Usurpou-te, por três dias, Teu esplêndido bastão (...) Homem sério e bem formado neste dia é contrabando, respeitado e venerando, coisa que não se diz. A razão (...) vestiu um chapéu de guizo e pôs um falso nariz”.

Os escritores não eram os únicos no círculo de amizades de Paula Brito. Entre 1839 e 1861, figuras representativas das artes e da política circulavam em volta de Paula Brito. José Maria da Silva Paranhos (futuro visconde do Rio Branco), Eusébio de Queirós e Francisco Otaviano eram grandes amigos. Não demorou muito, sua tipografia despertou a atenção de D. Pedro II. Em dezembro de 1850, o imperador o apoiou na fundação da “Imperial Tipografia 2 de dezembro”, data do aniversário de D. Pedro II e também de Paula Brito. Publicado em A Marmota, o retrato “O gabinete de 6 de setembro de 1855” fez enorme sucesso. Na foto que ilustra a matéria, D. Pedro II aparece rodeado pelos seus seis ministros. A imagem, aliás, foi posta à venda na loja de Paula Brito.

Mas apesar dos muitos periódicos, dos grupos de literatura e dos amigos famosos, foi a música que deu mais visibilidade à figura de Paula Brito. Como anfitrião, organizou encontros memoráveis entre músicos populares e poetas letrados. Muitos músicos compunham em sua casa. Ali se sentiam mais livres. Não precisavam, por exemplo, acatar os cânones musicais, e podiam se dedicar a experimentações. Em sua tipografia, Paula Brito anunciava e editava partituras, divulgava letras e títulos musicais. Assim, ele e seus parceiros produziram novos ritmos, sonoridades e linguagens, e contribuíram para a propagação dos primeiros gêneros genuinamente brasileiros: a modinha e o lundu.

Entre as músicas que nasceram dessas parcerias estão as de Joaquim Manuel de Macedo, Gonçalves de Magalhães e Araújo Porto Alegre. Os lundus também atraíram a atenção do maestro Francisco Manoel da Silva, autor do Hino Nacional Brasileiro. Em parceria com Paula Brito, ele compôs o malicioso “Lundu da marrequinha” (1863). A música fez enorme sucesso na Corte. Acredita-se, aliás, que o maestro inspiraria mais tarde um personagem de Machado de Assis chamado Pestana, no conto “Um homem célebre” – um compositor dividido entre a música erudita e canções populares. Outro músico de destaque era Laurindo Rabelo, membro da “Petalógica”. Violonista, repentista, compositor de modinhas e de lundus, Laurindo criou um estilo inconfundível.

A atmosfera romântica e nativista da “Petalógica” inspira uma nova sensibilidade não só em relação às letras, mas também no que diz respeito às melodias. E isso se deve em grande parte à origem étnico-social de alguns intelectuais do grupo. Laurindo Rabelo tinha ascendência cigana. Machado de Assis e Paula Brito eram mulatos, vindos de famílias humildes. A mãe de Machado, de ascendência açoriana, era lavadeira. Paula Brito era filho de marceneiro. De diferentes maneiras, esses intelectuais conseguem estabelecer contato com expressões culturais que estavam à margem da cultura letrada. O estilo clássico europeu, até então hegemônico, abre-se de vez para a diversidade dos ritmos de origem africana.

A música e a literatura que eram feitas e discutidas entre os amigos de Paula Brito indicam um novo panorama cultural na cidade. De sua tipografia-livraria surgiram e circularam as idéias de uma nova sensibilidade artística e social. Paula Brito e seus muitos e importantes amigos perceberam e souberam enfrentar os desafios e paradoxos de seu tempo. Um tempo em que a sua loja, se não ele próprio, estava no centro da vida cultural do Império.

MÔNICA PIMENTA VELLOSO É PESQUISADORA DA FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA E AUTORA de “CULTURA DAS RUAS NO RIO DE JANEIRO: MEDIAÇÕES, LINGUAGENS E ESPAÇOS”. (FCRB, 2004).

Saiba Mais - Bibliografia:

ALENCASTRO, Luiz Felipe. “Vida privada e ordem privada no Império”. IN: Alencastro, Luiz Felipe.(org.) História da vida privada, Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. (v.2)

BESSONE, Tânia. Palácios de destinos cruzados, bibliotecas, homens e livros no Rio de Janeiro, 1870-1920. Rio de Janeiro: Arquivo nacional, 1999.

TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular. São Paulo: Editora 34, 1998.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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