Mantendo crianças afastadas das famílias para livrá-las de costumes indesejáveis, internatos criados na Amazônia no século XIX tinham por objetivo transformar “selvagens brutos em cidadãos ”
Irma Rizzini
Em meados de 1860, um tuxaua – chefe indígena – adentrou o palácio da presidência do Pará para pedir proteção contra os desmandos de que dizia ter sido vitima. Dois filhos seus haviam sido levados à força para serem educados na Companhia de Aprendizes Marinheiros do Pará. O pai das crianças estava acompanhado de sua extensa família e era o único que dominava a língua portuguesa. José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898), presidente da província do Pará entre 1864 e 1866, registrou o episódio no Relatório dos negócios da província do Pará, de 1864. Conta ele que as crianças se apresentaram no palácio da presidência vestidas com a farda branca da Companhia, onde eram submetidas a uma vida amarga, se comparada à liberdade com que haviam sido criadas. Por isso, mandou liberar imediatamente os indiozinhos.
A atitude de Magalhães não era comum na época. A possibilidade das crianças indígenas e desvalidas serem educadas afastadas de suas famílias e comunidades era então bastante valorizada. As expressões prosperidade, progresso e civilização haviam adquirido forte simbolismo nas províncias amazônicas. A aspiração de transformar matas em campos cultivados e nativos em seres civilizados era tema recorrente nos discursos das elites ilustradas de Belém e Manaus.
A partir do Ato Adicional de 1834, os governos provinciais tornaram-se responsáveis pela instrução primária, secundária e profissional. Foram criadas, nesse período, instituições educativas dirigidas à população livre – como escolas públicas, institutos, colônias de ensino artesanal e agrícola, bem como asilos para a educação feminina –, com o objetivo de formar um povo trabalhador e ordeiro. Nas duas últimas décadas do Império, a preocupação com o preparo dos trabalhadores se intensificou devido à crise do sistema escravista, quando se tornou necessário encontrar substitutos para o trabalho exercido pelos escravos. Grupos de produtores, especialmente os fazendeiros, se queixavam da pouca afeição dos homens livres pobres para o trabalho regular. Esperava-se que os trabalhadores se submetessem, sem resistência ou fugas, às longas jornadas de trabalho pesado e parcamente remunerado.
Na Amazônia, a falta de braços para a agricultura e o modo de viver independente de seus habitantes tornavam mais premente o anseio de incutir na população os valores relativos ao trabalho regular e disciplinado. Por iniciativa do Estado e da Igreja, Belém e Manaus abrigaram as instituições de formação com maior duração do Império. Com a fundação de institutos para educação das crianças e também de escolas para a formação de professores, a região experimentou um importante crescimento na instrução primária. Segundo o Censo de 1872, metade da população de Belém era alfabetizada. O índice é alto para os padrões da época e em comparação à escolarização da população em idade escolar, demonstrando também a importância das outras formas de educação, como a doméstica.
A formação do cidadão implicava não somente conhecimento dos direitos e deveres pela população livre, como era defendido pelos agentes educacionais de outras partes do Império. O aprendizado do português e a sedentarização da população do interior também foram medidas reclamadas pelos inspetores e diretores da instrução na região. Até a década 1850, o nheengatu era a língua geral amazônica. Formulada pelos jesuítas, utilizava palavras indígenas do tronco tupi e estrutura sintática latina, facilitando a comunicação entre índios de etnias diferentes e os missionários. O nheengatu se disseminou pela Amazônia colonial a partir do século XVII, com a atuação missionária dos jesuítas. Embora tenha sido proibida depois da expulsão daquela ordem religiosa pelo Marquês de Pombal, continuou a ser usada na região.
Erradicar a língua geral consistia na primeira tarefa das escolas das freguesias e vilas do interior, como ressaltou Antônio Gonçalves Dias (1823-1864). O poeta analisou estes fatores no relatório que apresentou ao governo amazonense após as visitas realizadas nas escolas primárias situadas ao longo do Rio Solimões, em 1861, e pronunciou-se: “A vantagem da freqüência das escolas estaria principalmente em se desabituarem da língua geral que falam sempre, em casa e nas ruas, e em toda parte. Se pouco demoram nas escolas, se têm essas longas interrupções de quatro meses e mais por ano, é claro que conservarão muitos erros de pronunciação e mesmo de linguagem, sem que isso deva reverter em desfavor do mestre.”
O fato é que a cultura local prejudicava os planos dos educadores. No Amazonas e no Pará, a população se deslocava com freqüência, para a coleta e fabrico da goma elástica da borracha ou em busca de castanhas ou outros produtos comerciáveis. Os alunos abandonavam as aulas para acompanhar as famílias nessas atividades, pois a participação das crianças era fundamental para a sobrevivência da comunidade. Por isso, a freqüência escolar ficava restrita a um semestre do ano. Sem entender os costumes de índios e caboclos, os educadores se queixavam de que a população vivia sempre embrenhada nas matas, “longe das vistas do governo e de sua ação benéfica”.
Irma Rizzini
Em meados de 1860, um tuxaua – chefe indígena – adentrou o palácio da presidência do Pará para pedir proteção contra os desmandos de que dizia ter sido vitima. Dois filhos seus haviam sido levados à força para serem educados na Companhia de Aprendizes Marinheiros do Pará. O pai das crianças estava acompanhado de sua extensa família e era o único que dominava a língua portuguesa. José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898), presidente da província do Pará entre 1864 e 1866, registrou o episódio no Relatório dos negócios da província do Pará, de 1864. Conta ele que as crianças se apresentaram no palácio da presidência vestidas com a farda branca da Companhia, onde eram submetidas a uma vida amarga, se comparada à liberdade com que haviam sido criadas. Por isso, mandou liberar imediatamente os indiozinhos.
A atitude de Magalhães não era comum na época. A possibilidade das crianças indígenas e desvalidas serem educadas afastadas de suas famílias e comunidades era então bastante valorizada. As expressões prosperidade, progresso e civilização haviam adquirido forte simbolismo nas províncias amazônicas. A aspiração de transformar matas em campos cultivados e nativos em seres civilizados era tema recorrente nos discursos das elites ilustradas de Belém e Manaus.
A partir do Ato Adicional de 1834, os governos provinciais tornaram-se responsáveis pela instrução primária, secundária e profissional. Foram criadas, nesse período, instituições educativas dirigidas à população livre – como escolas públicas, institutos, colônias de ensino artesanal e agrícola, bem como asilos para a educação feminina –, com o objetivo de formar um povo trabalhador e ordeiro. Nas duas últimas décadas do Império, a preocupação com o preparo dos trabalhadores se intensificou devido à crise do sistema escravista, quando se tornou necessário encontrar substitutos para o trabalho exercido pelos escravos. Grupos de produtores, especialmente os fazendeiros, se queixavam da pouca afeição dos homens livres pobres para o trabalho regular. Esperava-se que os trabalhadores se submetessem, sem resistência ou fugas, às longas jornadas de trabalho pesado e parcamente remunerado.
Na Amazônia, a falta de braços para a agricultura e o modo de viver independente de seus habitantes tornavam mais premente o anseio de incutir na população os valores relativos ao trabalho regular e disciplinado. Por iniciativa do Estado e da Igreja, Belém e Manaus abrigaram as instituições de formação com maior duração do Império. Com a fundação de institutos para educação das crianças e também de escolas para a formação de professores, a região experimentou um importante crescimento na instrução primária. Segundo o Censo de 1872, metade da população de Belém era alfabetizada. O índice é alto para os padrões da época e em comparação à escolarização da população em idade escolar, demonstrando também a importância das outras formas de educação, como a doméstica.
A formação do cidadão implicava não somente conhecimento dos direitos e deveres pela população livre, como era defendido pelos agentes educacionais de outras partes do Império. O aprendizado do português e a sedentarização da população do interior também foram medidas reclamadas pelos inspetores e diretores da instrução na região. Até a década 1850, o nheengatu era a língua geral amazônica. Formulada pelos jesuítas, utilizava palavras indígenas do tronco tupi e estrutura sintática latina, facilitando a comunicação entre índios de etnias diferentes e os missionários. O nheengatu se disseminou pela Amazônia colonial a partir do século XVII, com a atuação missionária dos jesuítas. Embora tenha sido proibida depois da expulsão daquela ordem religiosa pelo Marquês de Pombal, continuou a ser usada na região.
Erradicar a língua geral consistia na primeira tarefa das escolas das freguesias e vilas do interior, como ressaltou Antônio Gonçalves Dias (1823-1864). O poeta analisou estes fatores no relatório que apresentou ao governo amazonense após as visitas realizadas nas escolas primárias situadas ao longo do Rio Solimões, em 1861, e pronunciou-se: “A vantagem da freqüência das escolas estaria principalmente em se desabituarem da língua geral que falam sempre, em casa e nas ruas, e em toda parte. Se pouco demoram nas escolas, se têm essas longas interrupções de quatro meses e mais por ano, é claro que conservarão muitos erros de pronunciação e mesmo de linguagem, sem que isso deva reverter em desfavor do mestre.”
O fato é que a cultura local prejudicava os planos dos educadores. No Amazonas e no Pará, a população se deslocava com freqüência, para a coleta e fabrico da goma elástica da borracha ou em busca de castanhas ou outros produtos comerciáveis. Os alunos abandonavam as aulas para acompanhar as famílias nessas atividades, pois a participação das crianças era fundamental para a sobrevivência da comunidade. Por isso, a freqüência escolar ficava restrita a um semestre do ano. Sem entender os costumes de índios e caboclos, os educadores se queixavam de que a população vivia sempre embrenhada nas matas, “longe das vistas do governo e de sua ação benéfica”.
A verdade é que as famílias locais dominavam os meios de sobrevivência nas matas e rios e independiam das instituições do governo para educar os filhos. Levá-los à pescaria e à caça era a verdadeira escola, conforme se pode depreender dos testemunhos dados pelos moradores dos povoados do rio Negro ao engenheiro Joaquim Leovigildo de Souza Coelho, em 1861. O controle governamental sobre a população era, assim, muito limitado. Cedo percebeu-se que só educando as crianças longe da influência da família é se poderia impor-lhes novos hábitos, e os governos da região decidiram criar instituições de ensino, em regime de internato, para a “inoculação do amor pelo trabalho” entre os alunos.
Em 1840, a província do Pará instalou a primeira Casa de Educandos Artífices do país, com a finalidade de educar os meninos pobres pelo trabalho manual. Os alunos moravam e estudavam na instituição, regidos por normas disciplinares bem rigorosas. No ano seguinte, foi a vez do governo maranhense, que, inspirado na experiência pioneira, instalou também a sua Casa de Educandos. O primeiro diretor do estabelecimento, o alferes Falcão, entregou-se com afinco à missão de transformar “selvagens brutos em cidadãos polidos”.
O Amazonas teve a sua Casa fundada em 1858. Ali crianças indígenas e desvalidas foram iniciadas nos mistérios da leitura e da escrita e treinadas nos ofícios manuais, como os de alfaiataria, sapataria e marcenaria. Ao indiozinho, após a admissão na instituição educacional, era-lhe imposta uma nova identidade: a de aprendiz, uniformizado na farda e no tratamento. Os alunos eram registrados oficialmente, como um número, e ganhavam nomes cristãos. O aprendizado nas oficinas começava geralmente aos doze anos, idade em que o jovem era considerado apto a assumir atividades que exigissem maior capacidade física e mental.
O ensino não se limitava ao aprendizado da língua e de um ofício. Estimulava-se, por exemplo, o estudo da música, mas ao mesmo tempo acenava-se assim para os alunos com um ofício que dificilmente teriam chances de exercer fora da escola. Não sem razão, famílias indígenas temiam, apesar das boas intenções dos educadores, a exploração do trabalho de suas crianças. E, de fato, vários tipos de abuso foram denunciados nas capitais, especialmente a partir de 1880. Imprensa e autoridades públicas não se furtaram a comparar a situação de muitos meninos indígenas “reeducados” – mas agora trabalhando em casas de famílias de Belém e Manaus ou empregados nos seringais – à própria condição de escravos.
Muitas dessas instituições de ensino sobreviveram à mudança de regime político e continuaram a funcionar nas primeiras décadas republicanas, com novos prédios e currículos atualizados. Resta saber se cumpriram, de fato, seu objetivo. A resposta só pode ser não. Fazendo as contas, os internatos atingiram uma parcela ínfima da população infantil – não mais do que 100 ou 150 meninos por estabelecimento –, trazendo assim mais benefícios a governantes, que puderam propagar seus feitos em prol da educação popular, do que às crianças desvalidas da Amazônia.
Irma Rizzini é professora de História da Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora da tese: “O cidadão polido e o selvagem bruto: a educação dos meninos desvalidos na Amazônia Imperial”. (UFRJ/ PPGHIS, 2004).
Saiba mais - Bibliografia:
FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Memórias da infância na Amazônia. In: DEL PRIORI, Mary (Org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999, p.317-346.
FREIRE, José Ribamar Bessa. Rio Babel: a história das línguas na Amazônia, Rio de Janeiro: Atlântica/Ed. UERJ, 2004
SAMPAIO, Patrícia, ERTHAL, Regina (Orgs). Rastros da Memória: histórias e trajetórias das populações indígenas na Amazônia. Manaus: EDUA/CNPq, 2006.
Saiba Mais - Documento:
DIAS, Antonio Gonçalves. Documento n. 1 (Relatório da inspeção das escolas públicas do rio Solimões, Amazonas, de 26/03/1861), publicado como anexo ao Relatório do Presidente da Província do Amazonas, em 03/05/1861. Ver em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/69/000051.html
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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