Largo do Paço, Rio de Janeiro, em 1865.
Óleo sobre tela (72,5 x 114 cm), por Luigi Stallone.
Museu Histórico da Cidade do Rio de Janeiro, Brasil.
Óleo sobre tela (72,5 x 114 cm), por Luigi Stallone.
Museu Histórico da Cidade do Rio de Janeiro, Brasil.
Troca de insultos, ironia e muita indelicadeza marcaram um dos primeiros debates públicos que apareceram na infância da imprensa brasileira
Filipe Monteiro
Imagine uma peça teatral que tenha sido um grande sucesso de público. Atores e diretor ovacionados pela platéia, pessoas nas ruas debatendo calorosamente cada cena, críticos e autores se engalfinhando nos jornais de maior circulação. Coisa rara hoje em dia? Pois, acredite, durante a maior parte do período joanino, quando a Corte lusitana esteve no Brasil (1808-1821), espetáculos desse porte chacoalhavam o cotidiano da capital do Império Português. Em um meio tão efervescente, freqüentemente, surgiam grandes polêmicas – como a aqui narrada, envolvendo um dramaturgo a serviço do Rei e um jornalista mordaz.
Tudo começa no Largo do Paço, no Rio de Janeiro, onde funcionava, em 1808, uma casa conhecida popularmente como “Teatro de Manuel Luiz”. Ex-tocador de fagote, dançarino e cômico português, Manuel Luiz havia construído uma das primeiras casas de ópera da cidade. Seu teatro era um grande sucesso, mas começava a ficar pequeno para as pretensões dos artistas que se instalavam na cidade.
Com a vinda da família real em 1808, uma nova classe política e intelectual, quase toda formada
por membros das famílias nobres portuguesas,chegava ao Rio, trazendo músicos, atores, compositores.
Esse conjunto de artistas de primeira ordem,muito estimados em Portugal, pretendia encenar
aqui os grandes musicais e espetáculos de gala apresentados em Lisboa.
O pequeno Teatro de Manuel Luiz não comportaria esse ambicioso propósito. Além disso, o público da época era considerado “inculto”, dono de antigos costumes típicos de um país que carecia de “sentimento artístico”. Tendo isso em mente e sofrendo a pressão dos artistas que embarcaram junto com a Corte, o príncipe D. João bateu o martelo e determinou a construção de um novo teatro no Largo do Rocio, atual Praça Tiradentes. O Real Teatro de São João, como foi chamado, se transformaria em pouco tempo no centro nervoso da vida social carioca, onde também eram realizados importantes eventos políticos.
Para a sua inauguração, prevista para o dia 12 de outubro de 1813, D. João havia encomendado ao escritor e dramaturgo português D. Gastão Fausto da Câmara Coutinho (1772-1852) a ópera intitulada “O Juramento dos Numes”. D. Gastão,que chegou ao Brasil com a família real, era muito
próximo do rei. Sua posição, porém, não seria suficiente para evitar que o manuscrito de seu novo drama fosse exaustivamente criticado por Manuel Ferreira de Araújo Guimarães (1777-1838), redator e editor do periódico O Patriota: Jornal Literário, Político e Mercantil, que circulou entre 1813 e 1814.
Em maio de 1808, D. João VI permitiu a criação da Imprensa Régia, uma instituição que tinha por objetivo a divulgação de medidas oficiais de seu governo. Entretanto, por ela também rodaram publicações de caráter científico, obras sobre arte e literatura, além de periódicos que tratavam de
costumes da época, viagens, curiosidades etc. Um deles era justamente O Patriota, que nasceu como um jornal de variedades, divulgando textos políticos, memórias históricas e geográficas, entre outros. Apesar da conhecida ligação informal com a Corte – publicando, inclusive, diversos atos do gogoverno –, o jornal conseguiu manter certa autonomia e estimular debates políticos e literários no seio da nascente intelectualidade brasileira. E foi isso que fez Araújo Guimarães ao contestar abertamente na imprensa a qualidade e a importância da ópera escrita por D. Gastão.
O drama em questão era uma ode a Sua Alteza Real, D. João, e ao povo lusitano. “Numes” eram as divindades mitológicas, como Vênus e Vulcano, que prestavam juramento ao príncipe ameaçado em suas fronteiras pelas “hostes francesas” – o exército de Napoleão, que invadira Portugal em 1807. Recorrendo à Antiguidade clássica, o escritor criou um poema lírico em que os deuses gregos dialogavam sobre os motivos para defender o rei português e seu novo Império nos trópicos, região que ainda viria a ser a “atalaia e farol do mundo inteiro”. O sucesso da peça se daria menos pela narrativa das façanhas do heróico “Sexto João” do que pelo intenso debate que ela inspirou.
A crítica inicial afirmava sem reservas: “Este trabalho vem mesmo a ser inútil!” Após ler o prólogo da peça, o jornalista ficaria revoltado com D. Gastão, pois este afirmara que em composições daquele gênero não se deveria seguir ao pé da letra determinados “preceitos dramaticaes”. Não satisfeito, o jornalista avisava que não examinaria o estilo de escrita de D. Gastão, pois nem o nome de poeta ele merecia. O artigo de duas páginas, que saiu na edição de outubro de 1813 do Patriota, terminava de forma ácida: “Não mais entreteremos o leitor sobre um drama, que as artes se empenharão em avultar”.
A crítica ao espetáculo caiu como uma bomba no meio artístico pouco tempo antes da abertura do Real Teatro. Aquilo era uma novidade para a população, desacostumada dos debates públicos
através da imprensa, que naquele momento ensaiava seus primeiros passos. O Patriota fez parte do boom de publicações que surgiram com a expansão da atividade jornalística depois da chegada da Corte portuguesa ao Brasil. A circulação de livros e jornais havia sido reprimida por quase três séculos, e todas as tentativas de burlar as determinações da Coroa fracassaram. E não foram poucas.
Em Pernambuco, por exemplo, uma pequena tipografia montada durante o governo de Francisco de Castro Morais, em 1706, foi liquidada e todo o material gráfico, confiscado. No Rio, Antonio Isidoro da Fonseca, antigo impressor em Lisboa que imigrou para o Brasil com a família, trouxe clandestinamente na bagagem preciosas ferramentas para montar uma pequena oficina, que chegou a funcionar em 1747, mas em pouco tempo foi fechada, acusada de propagar idéias contrárias ao “interesse do Estado”.
Com a permissão do funcionamento da imprensa surgiram centenas de folhetins, gazetas e libretos, muitos dos quais tiveram curtíssima duração. Na Corte, além do Patriota, também circularam a célebre Gazeta do Rio de Janeiro, publicada entre 1808 e 1822, O Bem da Ordem, O Amigo do Rei e da Nação, entre outros. Em Salvador apareceu o periódico a Idade d´Ouro do Brasil, em 1811, e em Recife, em 1821, surgia a Aurora Pernambucana. A maioria das publicações era favorável a D. João, diferentemente de periódicos portugueses publicados
no exterior, que faziam franca oposição ao governo português, como o famoso Correio Braziliense,
vendido em Londres. Aqui no Brasil, os censores a serviço da Junta Diretora da Imprensa Régia
não davam conta de ler tudo que era impresso.Portanto, era possível a publicação de uma crítica, mesmo que dirigida a um funcionário da Corte.
Sentindo-se atacado por Araújo Guimarães, D.Gastão rapidamente redigiu uma resposta efensiva à censura do redactor. Pedia, então, que Araújo explicasse o que entendia por poema dramático e lírico, pois, em sua opinião, o redator não sabia do que estava falando. Os miradores de ópera do século XIX debatiam constantemente a respeito da importância do texto frente à música do espetáculo.
O que era mais importante, um escritor ter liberdade de criação para produzir um belo poema ou submeter-se aos caprichos dos mestres compositores da música? Pelo visto, D. Gastão se posicionava ao lado daqueles que almejavam maior liberdade para as falas.
Apesar da enérgica resposta à sua crítica, Araújo não pôde contestá-la, pois caiu doente e não escreveu a tréplica antes da representação da ópera. Para felicidade de D. Gastão, outros jornais da época saudaram o espetáculo, definindo-o como magnífico. Na edição do Patriota de janeiro de 1814, é finalmente publicado o Exame da resposta defensiva à censura do Redactor.
Indiferente ao êxito que a peça obteve, o jornalista não suspende a artilharia e indaga: “Pensa o poeta que em menos de duas páginas caberiam todos os seus defeitos?” E ao responder ao pedido de seu rival para que explicasse o que entendia por poema dramático e lírico, escreveu, de forma irônica, que não imaginava que alguém pudesse compor um gênero que não conhecesse.
Já era o mês de fevereiro de 1814 quando chegou à praça o Recenseamento ao pseudo-Exame
da resposta defensiva à censura do redactor. Percebe-se aqui que D. Gastão deixa de lado a
polidez de sua última resposta e parte para o ataque final, dizendo que havia desistido de continuar com a disputa após ter lido aquela “rebolaria de palavras”, mas mudara de idéia, pois queria desqualificar “todas aquellas pulhas de ralé baixa”. O dramaturgo condenava o que ele chamou de “pseudo-exame”, pois este tinha enxovalhado uma bela produção revista pela competente Secretaria de Estado, votada a Sua Alteza Real e representada em Sua Augusta Presença.
A discussão termina com uma resposta indireta do redator do Patriota, que, reproduzindo uma breve citação do poeta britânico Alexander Pope (1688-1744), infantiliza D. Gastão comparando-o a mulheres e crianças, e dando a entender que este só saberia difamar, e não dialogar. Para muitos, inclusive membros do governo, o debate foi desgastante, na medida em que resvalou numa troca de acusações mútuas e ofensas pessoais. O censor régio Luiz José de Carvalho e Melo, em um parecer enviado ao rei, relatava que os dois escritores não se contiveram nos limites de uma disputa literária, da qual o público teria tirado proveito e eles, a glória. Apesar da falta de compostura dos dois escritores, essa querela refletia algo inédito para os brasileiros. Era o florescimento de uma imprensa que, mesmo vigiada e limitada, permitia a divulgação de novas idéias e fomentava o debate público em torno de temas que interessavam ao nascente mercado consumidor de arte e literatura.
Um cochilo dispendioso
A construção do Real Teatro de São João era um projeto acalentado por D. João VI desde o momento em que a comitiva real desembarcou no Rio de Janeiro. A obra, determinada pelo
decreto de 28 de maio de 1810, foi financiada pelo empresário Fernando José de Almeida.
Criado à imagem do Teatro de São Carlos, templo da dramaturgia portuguesa, o prédio comportava 1.020 pessoas e chegou a oferecer ao público cinco espetáculos por semana. Dizem as más línguas que D. João, freqüentador assíduo, tinha o péssimo hábito de dormir durante os espetáculos. Parte ou não do folclore em torno da controversa imagem do monarca, tido como bonachão e preguiçoso, o fato é que esse cochilo custava caro ao Erário Régio, que pagava cem mil-réis pela Tribuna Real e 50 mil-réis pelos camarotes dos ministros.
Como não era desejo do monarca aumentar os impostos nem criar novos, foi elaborado um sistema de loterias para a subvenção do estabelecimento e para a contratação de maquinistas, figurinistas, ar tistas etc. O belo edifício, que serviu de inspiração para Jean- Baptiste Debret, cenógrafo contratado do teatro, pegou fogo no dia 25 de março de 1824, durante um espetáculo. Em menos de duas horas estava reduzido a cinzas. Seu proprietário, no entanto, não desistiu, e conseguiu um empréstimo no Banco do Brasil para a reconstrução da casa. A reinauguração se deu em 22 de janeiro de 1826, com o nome de Imperial Theatro de São Pedro de Alcântara.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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