No Brasil, país ambíguo por natureza, a construção das crenças coletivas se faz por caminhos sinuosos. O resultado, muitas vezes, está longe da verdade...
Lorenzo Aldé
Futebol, mulher e religião não se discute. É o que ensina a sabedoria popular. Temas controvertidos, envoltos em paixões e idiossincrasias, melhor deixar de lado para não estragar o bate-papo de botequim. Que tal, então, conversar sobre os personagens e episódios de nossa História? Será que eles entram na roda sem maiores pinimbas?
Nem sempre. Mitos, lendas e incorreções sobre a formação e a identidade nacionais povoam o imaginário coletivo. Muitas vezes a versão se sobrepõe ao fato, seja pela disseminação de interpretações equivocadas, seja pela dificuldade de se definir, preto no branco, o que é a verdade neste país de memórias “mestiças”.
Bom exemplo é a figura de Getulio Vargas. Ditador simpatizante dos ideais fascistas ou defensor dos trabalhadores? Entre os dois extremos do mesmo personagem, é difícil equilibrar-se numa visão isenta. “É quase uma ofensa falar mal de Vargas”, comenta a professora Mariana Melo, baseada em sua experiência com turmas de um curso noturno em uma escola estadual do Rio de Janeiro. Não adianta descrever em detalhes as arbitrariedades do Estado Novo (1930-1937), a censura, a perseguição política. “Mas, professora, ele criou as leis trabalhistas”, retrucam os alunos. Para ela, uma postura compreensível: “Dentro da perspectiva dessa camada social, isso é o mais importante”, pondera a professora, dizendo ser espinhosa também a missão de mostrar aos alunos que as benesses sociais trazidas por Vargas não foram fruto de sua generosidade pessoal, mas resultado de um processo histórico quase inevitável.
Se entre adultos é complicado esclarecer contradições desse gênero, que dirá entre crianças e adolescentes. Este público está habituado a interpretar histórias que tenham vilões de um lado e heróis de outro. “Tem que ter uma definição: é bom ou é mau?”, sintetiza a professora Joana Ferraz de Abreu, que leciona em escolas particulares do Rio. Por isso, ensinar Getulio também lhe dá trabalho, assim como episódios da História mundial. “A Alemanha é a vilã da guerra, mas a Inglaterra também tinha campos de concentração. Claro que tudo depende de que lado do front o país esteve e de quem saiu vitorioso. As crianças americanas, por exemplo, dificilmente aprendem muito sobre a bomba atômica”, compara.
No Brasil, o ato bárbaro cometido pelos Estados Unidos contra Hiroshima e Nagasaki no fim da Segunda Guerra Mundial tem espaço na sala de aula. E repercute até demais, pois o antiamericanismo anda em voga entre os mais jovens. É um dos preconceitos que prejudicam uma compreensão imparcial dos acontecimentos.
Há muitos outros. Os índios aqui eram preguiçosos (quando não “burros”), por isso não funcionaram como escravos. Já os africanos “entendiam o capitalismo” e assim “aceitavam melhor” sua condição e se misturaram harmonicamente aos portugueses. Versões que não caem do céu: estão presentes nos livros didáticos e ganham adeptos ou críticos de acordo com os ventos ideológicos de cada época. Autores hoje consagrados já sofreram patrulha e foram relegados ao esquecimento em momentos adversos às suas teses. Em trechos de Casa-Grande & Senzala (1933), Gilberto Freyre descreve como os negros iam para o trabalho cantando e fala da importância da figura da ama-de-leite, o que sugere que a interação entre senhores e escravos não era tão excludente ou violenta. Por essas e outras, a obra do sociólogo foi desprezada nos anos 1960 e 70, auge do marxismo na academia, por supostamente “atenuar a luta de classes”. Relativizadas como reflexões condizentes com seu momento histórico, as contribuições de Freyre são hoje aceitas como valiosas para se entender a formação cultural do país. Até porque, se por um lado descreve a excepcional (no sentido de exceção, claro) mistura entre portugueses e negros no Brasil (diferentemente do que ocorreu, por exemplo, nas possessões inglesas e francesas na Ásia e na África), por outro também fala das torturas e castigos aos quais os escravos eram submetidos. Ambigüidades tipicamente luso-brasileiras, pois não?
Tem mais. Tiradentes: um herói nacional? Não foi. Naqueles fins do século XVIII, os insurgentes das Minas (por muito tempo tachados de inconfidentes, outra imprecisão histórica fruto da versão oficial da época) queriam a independência regional, nem pensavam em Brasil. E Pedro Álvares Cabral? “Por incrível que pareça, ainda hoje é superdimensionado”, revela Roberto Argento, outro professor de escolas particulares cariocas. A lenda do “descobrimento” acidental no caminho para as Índias, pelo visto, ainda perdura. Político? Tudo corrupto. Percepção que as autoridades atuais insistem em renovar, dia após dia, nos escândalos do noticiário. “Os alunos não acreditam que algum político, em qualquer tempo, tenha feito algo de bom. Quando aprendem sobre as práticas dos coronéis, dizem que é tudo igual até hoje”, diz Joana Ferraz de Abreu. E a participação do Brasil na Segunda Guerra desperta interesse, curiosidade? Que nada: somente risos. “Eles acham piada, desvalorizam, não acreditam que tenha sido importante. Nem quando digo que afundamos oito navios alemães e tivemos 36 afundados por eles, e que perdemos 1.040 homens”, revela a professora.
Às vezes, episódios marcantes para uma cidade ou região são vistos por seus moradores como decisivos para a História do Brasil. Em recente viagem a Recife, a professora Mariana Melo testemunhou, no discurso de vários guias turísticos, a louvação das Batalhas dos Guararapes (1648 e 1649), com a conseqüente expulsão dos holandeses, como marco inicial da identidade nacional. Talvez os pernambucanos não gostem de ouvir isso, mas nem mesmo no momento da Independência, quase dois séculos depois, estava bem claro o que era ser brasileiro.
Atire a primeira pedra quem não se acha no umbigo do mundo. Ou os cariocas realmente acreditam que a vinda da família real, em 1808, transformou profundamente todo o país? Pois se nem país existia! O impacto na cidade do Rio de Janeiro e seus ecos na Região Sudeste mal se fizeram sentir no Norte e no Nordeste, por exemplo. E nem o bairrismo nos salva da desinformação. Em recente vestibular na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), solicitados a mencionar duas obras arquitetônicas dos tempos de D. João, a maioria dos alunos listou entre elas o Teatro Municipal. Talvez uma confusão espacial, por se localizar próximo ao prédio da Biblioteca Nacional, esta sim uma instituição nascida da Corte portuguesa. O problema é que nem o prédio da BN data daquela época. Como o Teatro Municipal, foi construído nos primeiros anos do século XX, no governo do prefeito Pereira Passos.
Se nem Carmen Miranda era brasileira, a que certeza podemos nos apegar? O futebol é inglês, a banana é asiática, nossos “reis” contemporâneos são tão díspares quanto podem ser Pelé, Roberto Carlos e Xuxa. Sem falar na cultura de massa, que há décadas afunilou os significados de Brasil para o eixo Rio-São Paulo, via tevê. Até a cana-de-açúcar, orgulho do momento na promessa dos biocombustíveis contra o aquecimento global, deve ser questionada como símbolo nacional. Não só porque também foi importada de outras possessões lusas, mas porque o glorioso Proálcool, na virada da década de 1970 para a de 1980, foi feito à custa de outro glorioso orgulho pátrio: a Mata Atlântica nordestina. Repetiremos a dose, agora para cima da Amazônia?
Ufanismos sempre devem ser vistos com desconfiança. Mas é claro que parte desses mitos merece ser encarada com bom humor. A origem saxã do nosso esporte número 1, por exemplo, é matéria de almanaque. O futebol é brasileiro e ninguém tasca! Assim como o samba, claro. Inicialmente também derivado de influência européia — a binária e “marcial” polca — foi requebrado no terreiro dos negros com tempero de maxixe até virar essa contradança inimitável pelos gringos. Ponto para a miscigenação brasileira!
Segundo o pesquisador José Miguel Wisnik, da USP, o samba é a síntese da identidade nacional. Foi a solução, ansiosamente procurada no alvorecer da República, para incorporar a incômoda figura do mestiço, até então “nem rejeitado nem admitido”. “A invenção do samba é o ‘desrecalque’ dessa figura que vem à tona para ser símbolo do Brasil”, resumiu Wisnik em encontro sobre as identidades do samba, realizado na Bahia em 2007. Em resumo: o Brasil é mulato. Terra das contradições, onde convivem ordem e desordem, democracia e jeitinho, descontração e violência, natureza e devastação, diversidade e racismo.
Talvez seja esta a nossa sina. Mas antes de naturalizar a bandeira do samba como ideal nacional, fica aqui mais uma pulga para orelhas pensantes. Segundo o antropólogo Hermano Viana, a consolidação do ritmo, entre os anos 1920 e 1930, também foi uma criação intelectual, que atendia aos interesses políticos da época. “O governo precisava impor uma centralização cultural, havia uma indústria fonográfica nascente, e o rádio despontava como o primeiro meio de comunicação de massa”, comentou no mesmo evento.
Se o mulato que dá cara ao Brasil é “inzoneiro” como na canção, basta recorrer ao dicionário para descobrirmos que se trata de um ser “enganador”. Quem sabe, em se tratando de Brasil, nosso dever como historiadores, professores ou simples cidadãos, deva ser buscar não as certezas, mas as incertezas? Elucidar não as verdades, mas os enganos? Explicar para confundir, confundir para esclarecer...
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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