por Pascal Marchetti - Leca
Aos 50 anos, em 1920: personalidade intensa e, paradoxalmente, variável
Em André Paul Guillaume Gide conviviam os contrários. Foi o herdeiro da rica Juliette Rondeaux Gide, filha de um fabricante de tecidos, e de Paul Gide, rebento da burguesia togada da França e professor da Faculdade de Direito de Paris. O casal tinha gosto pelo estudo e uma sóbria elegância nos modos e hábitos puritanos. Juliette e Paul se davam muito bem no essencial, embora tivessem idéias opostas sobre a melhor forma de criar o filho.
Pelo futuro do bebê, nascido em 22 de novembro de 1869, o casal escolheu Paris para fixar residência. No endereço da família, a divisão das tarefas pedagógicas para educar o pequeno André se inscrevia na geografia do apartamento: ora ele estava no gabinete, para aprender cultura “profana” com o pai, ora na capela doméstica, onde a mãe lhe dava formação espiritual.
De um cômodo para outro, os métodos didáticos também diferiam e, segundo as recordações do escritor, não era raro os esposos entrarem em conflito: “Com freqüência, eu os ouvia discutir o alimento que convinha dar ao cérebro de uma criança. Às vezes, surgiam polêmicas acerca da obediência, sendo minha mãe favorável a que criança se submetesse sem procurar compreender, ao passo que meu pai conservava a tendência de tudo me explicar”.
REPRODUÇÃO
Capa do livro em que tornou público o repúdio ao stalinismo
Em outubro de 1877, prestes a completar 8 anos de idade, André ingressou na Escola Alsaciana da rua de Assas, freqüentada pela burguesia liberal. Foi expulso por “maus costumes”, algo não muito bem explicado. Estranhamente, o menino foi encaminhado pelos pais a um especialista em patologia criminal, que lhe ensinaria ser o prazer uma espécie de delito. Em conseqüência desse atalho “educacional”, o garoto começou a desconfiar do corpo rebelde que lhe tinha revelado um “paraíso vergonhoso” e passou o fim da infância a combater as exigências que a carne lhe fazia: “De resto, eu sei que me prejudica contá-lo (...); pressinto que isso pode ser usado contra mim. (...) Digamos que o escrevo por penitência. Naquela idade inocente em que seria desejável que a alma fosse apenas transparência, ternura e pureza, revejo em mim unicamente sombra, feiúra, dissimulação”.
Em 2 de outubro de 1880, a morte prematura do pai o imobilizou na culpa. Sozinha, a puritana Juliette sujeitou o filho rebelde às suas idéias de educação e deveres filiais. Vencido pela angústia, sacudido por crises de choro e tremores, encarcerado na afl ição, Gide repetia: “Eu não sou igual aos outros!”. Seus estudos se ressentiram disso. Da Escola Alsaciana foi para internatos (Vedel, Bauer e Keller), para um preceptor e, depois, para dois liceus (Montpellier e Henri-IV). Perdido na escolaridade errática, viu o triunfo do simbolismo e passou a se dedicar à criação literária na juventude. Publicou Lês cahiers d’André Walter (Os cadernos de André Walter) em 1891, Lês Poésies d’André Walter (As poesias de André Walter) em 1892, duas obras que nem de longe pressagiavam a posterior audácia gidiana.
Em outubro de 1893, desembarcou na Argélia com o amigo Paul-Albert Laurens, fi lho do pintor Jean-Paul Laurens. Foi a oportunidade de libertação. Gide adoeceu e, durante a convalescença, descobriu “as ardentes surpresas dos oásis”. Vale dizer que a entrega ao desejo homossexual representou um renascimento. Paludes, de (1895) e Os frutos da terra, de (1897) são livros que marcaram seu rompimento com o simbolismo nebuloso dos títulos anteriores. Continham numerosas alusões à experiência pederástica no deserto do país africano e ofereceram o primeiro contrapeso literário à moral puritana herdada dos pais.
RDA/RUE DES ARCHIVES
Discursando no enterro de Gorki, com Stalin ao fundo (o 4o da esq. para a dir.): desencanto político foi brutal
Nada disso, porém, lhe devolveu a paz. E em 8 de outubro de 1895, cinco meses após a morte de sua mãe, o hedonista decidiu se casar com a prima Madeleine Rondeaux em busca do “céu do insaciável inferno” pessoal. Charles Gide, tio de André, não tinha nenhuma ilusão: “Nada indica que esse casamento seja feliz, mas seria assumir uma grande responsabilidade impedi-lo (...), de forma que não há senão escolher entre um mal certo e um mal eventual!”. Madeleine aprendeu isso a duras penas, ao descobrir a homossexualidade do marido, mas se fechou no silêncio. “Jamais uma queixa, nada além de uma resignação muda e uma mágoa inconfessa”, resumiu Gide, pouco depois da morte da esposa.
A produção pós-viuvez foi abundante. Ele, então, afirmou sua independência e homossexualidade, o que arrancou críticas do amigo, escritor e jornalista François Mauriac: “O erro de Gide (...) foi agitar a bandeira da homossexualidade. A homossexualidade não é uma causa. É como um corcunda que se pusesse a gritar: ‘Vivam as corcundas!’ Não tem sentido!”. Mesmo assim, os leitores bem-pensantes de seus livros pressentiram em Gide a alma de um libertador e, a partir do início da década de 30, um mentor, um verdadeiro Rousseau, o filósofo do iluminismo do século XVIII, só que dos tempos modernos.
De fato, libertado de máscaras sociais e desejando mais do que nunca consolidar o que qualificava de sua “bela função (...) de inquietador”, Gide empreendeu uma “cruzada social”: fustigou o sistema colonial francês, atacou violentamente o capitalismo, celebrou a grandeza do Estado sem religião e, na página do dia 13 de maio de 1931 do seu diário íntimo, confessou depositar esperança no triunfo da União Soviética: “Eu queria viver para ver o plano da Rússia ter bom êxito (...). Aqueles que mais duvidam de seu sucesso são, precisamente, os crentes que não admitem uma fé de ordem tão diferente de sua fé mística!” Aderiu a um comunismo militante até meados da década.
COLEÇÃO PARTICULAR
Pétain foi outro que teve o apoio e, depois, o desprezo do escritor
Em 17 de junho de 1936, acompanhado de outros intelectuais, viajou ao país dos sovietes, onde esperava encontrar-se com o escritor Máximo Gorki, que estava gravemente enfermo. Gorki morreu no dia 20, antes da chegada dos amigos. E foi Gide quem, sobre um estrado na praça Vermelha, pronunciou o elogio fúnebre ao lado do ditador Joseph Stalin e do diplomata e político Viatcheslav Molotov – foi ele que deu nome ao coquetel incendiário, tão usado em manifestações populares.
Involuntariamente, Stalin serviu para que Gide mudasse suas convicções. O francês percebeu e escreveu que a utopia que perseguiu poderia dar à luz o inesperado. “Sim, ditadura, evidentemente; mas a de um homem, não mais a dos proletários unidos, a dos sovietes (...). É forçoso reconhecer claramente: não era a isso que se queria chegar. Um passo mais e nós diremos: é exatamente o que ninguém queria.” Publicou no mesmo ano Retorno da URSS, obra que marca seu rompimento com o comunismo e na qual denuncia os crimes de Stalin.
Em 1939, publicou o primeiro volume de seu Diário, que cobria os anos de 1889 a 1929. No dia 14 de junho de 1940, aprovou o discurso do marechal Philippe Pétain, mais tarde líder do governo fantoche imposto aos franceses pelos nazistas, período conhecido como a França de Vichy. Rompeu, depois, com Pétain. Em maio de 1942, já incluído no índex do governo de Vichy, liderado pelo marechal, fugiu para a Tunísia num cargueiro.
BIBLIOTECA DO CONGRESSO, WASHINGTON, D.C.
Paul Claudel: inimigo preferencial e alvo do deboche de Gide
Só retornaria a Paris após a libertação do país do nazismo, quando apresentou seu testamento literário, Teseu, em 1946, o ano seguinte ao fim da Segunda Guerra Mundial. Nessa obra, mostrou-se como o aventureiro “libertado da consciência pesada, do ressentimento”. Em 1947, um telegrama da Suécia comunicou-lhe que ganhara o Prêmio Nobel de Literatura.
Morreu no dia 19 de fevereiro de 1951, aos 81 anos, de problemas cárdio-respiratórios, sem ter se reconciliado com o poeta e dramaturgo Paul Claudel, que no passado havia tentado converter Gide ao heterossexualismo. A ruptura entre os dois foi brutal e definitiva. Claudel, porém, pode ter sido o último nome que Gide escreveu em vida. Mauriac, pouco depois da morte do escritor, recebeu um telegrama...do defunto! No pedaço de papel, Gide deixou registrada a seguinte mensagem: “Não existe inferno. Pode se depravar à vontade. Avise Claudel”.
CRONOLOGIA
Em 1875, aos 6 anos: o pai e a mãe divergiam sobre o modelo de sua educação
1869
André Gide nasce em Paris
1892
Publica As poesias de André Walter
1895
Casa-se com Madeleine Rondeaux
1897
Publica Os frutos da terra
1914
Começa a Primeira Guerra Mundial; Gide publica Os subterrâneos do Vaticano
1923
Nasce sua filha Catherine, fora do casamento
1936
Publica Retorno da URSS, obra na qual denuncia os crimes de Stalin
1940
Apóia o marechal Pétain, imposto aos franceses pelos nazistas
1942
Rompido com Pétain e com o governo Vichy da França, foge para a Tunísia
1946
Publica Teseu, seu testamento literário
1947
Ganha o Prêmio Nobel de Literatura
1951
Morre em 19 de fevereiro, aos 81 anos
FAZ-DE-CONTA MATRIMONIAL
REPRODUÇÃO/COLEÇÃO PARTICULAR
O jovem casal Madeleine e André: uma união diferente
“Por mais que eu recue no tempo, sempre a revejo (...)”, escreveu André Gide sobre sua prima Madeleine Rondeaux. Em outubro de 1895, ela passou a ser sua esposa perante Deus e os homens. O escritor tomou consciência dos sentimentos amorosos que ela lhe inspirava em 1882: “Senti que naquele pequenino ser, que eu já amava ternamente, morava uma grande, uma intolerável aflição, uma tamanha tristeza que todo o meu amor e toda a minha vida não bastariam para curar. Que mais dizer? Até aquele dia, eu tinha vagado a esmo; de repente, descobri um novo oriente na minha vida”.
Que esperava ele, exatamente, daquela escolha? Uma couraça contra a vida, talvez a remissão do pecado ou a promessa de uma ascese, um autocontrole do corpo. Em todo caso, Madeleine, que também cultivava o ideal de pureza, aceitou o desafio de um casamento pertencente ao campo da fantasia. Acabou perdendo as esperanças e capitulando pouco a pouco face à evidência do fracasso. Uma carta, aberta por descuido, informou-a da verdadeira natureza das relações do seu marido com o filho de um pastor. Em conseqüência, ela se refugiou na comuna de Cuverville, em semi-reclusão. Madame Gide morreu subitamente na Páscoa de 1938. “Que será da minha vida agora sem eixo?”, indagou-se o escritor.
Depois da morte de Madeleine, ele reconheceu que tinha uma filha de outro relacionamento, com Elisabeth van Rysselberghe, fato cuidadosamente escondido da esposa. Catherine Gide nasceu em abril de 1923 e criou na França uma entidade, a Fundation Catherine Gide, que zela pela memória do pai. – P. M-L
MUTATIS MUTANDIS
A expressão latina quer dizer “mudar o que tem de ser mudado”. André Gide viveu essa máxima como observador do início explosivo do século XX. Militou em várias frentes que buscavam um caminho político para a Europa, mas sem medo de rever, várias vezes, suas posições. Um personagem seu, Edouard, no livro Os moedeiros falsos, de 1925, parece antecipar esse traço de sua personalidade, que se faria presente nos conturbados anos da Segunda Guerra:
“Eu nunca sou apenas aquilo que creio ser – e isso varia o tempo todo, de forma que, muitas vezes, se eu não estivesse lá para aproximá-los, meu ser da manhã não reconheceria o da noite. Não há nada mais diferente de mim do que eu mesmo. (…) Meu coração só bate por simpatia; vivo apenas por outrem; por procuração, poderia dizer, por núpcias, e é quando saio de mim mesmo para me tornar qualquer um que sinto viver mais intensamente que nunca.” – P. M-L.
Pascal Marchetti - Leca É professor da Universidade da Córsega
Revista Historia Viva
Um comentário:
Com prazer fui apresentada hoje a André Gide.
Apesar de ler muito, nunca ouvi falar dele. Vivesse nos dias de hoje, onde o homosexualismo já é cientificamente comprovado como um gen no DNA, ele estaria liberto desse pesadelo.
Os pais tiveram grande culpa, principalmente ao colocarem-no num colégio interno. Com a rigidez que sabemos que esses colégios imputam numa criança.
Mas enfim, ele era rico, e fez sua história.
Temos então hoje a citação de seu nome, com livros e etc..
Bela postagem!
Parabéns!
Abraços
Mirse
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