Correspondência entre o historiador Capistrano de Abreu e a filha elucida sua negação do catolicismo e reflete o embate entre correntes dos pensamentos laico e religioso da época
Virgínia A. Castro Buarque
Foi com o soneto intitulado “A meu pai” que Honorina de Abreu, filha primogênita do historiador Capistrano de Abreu, ou, como era mais conhecida, madre Maria José de Jesus, monja da Ordem do Carmelo Descalço, buscou consolar seu pai, debilitado pela doença, poucos meses antes de sua morte, ocorrida em 13 de agosto de 1927. A poesia também traduzia um profundo desejo da madre: a conversão de Capistrano à fé católica, delicadamente sugerida nos versos.
“Foste tu, caro Pai, que do seio do Eterno
Me arrancaste e trouxeste a este mundo, a esta vida...
Quando eu desabrochei – qual flor recém-nascida –
O sol que me aqueceu foi teu amor tão terno.
Teu sangue é sangue meu... Trabalho paterno
Ganhou-me o pão com que eu cresci e fui nutrida.
Ah! Quanto te custei!... Quanta dor! Quanta lida!
Desde teu quente estio até teu frio inverno!
E agora, dá-me a mão... É noite. Vem comigo!
Vem que eu te levarei a Jesus, teu Amigo
Que te espera saudoso... Oh! Dize-me que sim!
Foste meu pai e eu tua mãe serei agora...
Dar-te-ei a Eterna Luz de que me deste a aurora,
Dar-te-ei – por esta vida – a Vida que é sem fim...”
Honorina nasceu em 1882 e estudou em um dos melhores colégios femininos do Rio de Janeiro – o Imaculada Conceição, dirigido pelas Filhas de Caridade, da Congregação de São Vicente de Paulo. Inteligente e culta, dominava sete línguas e publicou traduções e artigos, além de escrever poesia. Em 1902, vivenciou, no dizer de Capistrano, uma “crise religiosa”, que culminou no seu ingresso na vida monástica, nove anos depois. Desde então, sem se deixar intimidar pelas limitações impostas pela prática religiosa, empenhou-se em promover o retorno do pai e de seus parentes mais próximos ao seio da Igreja.
Se as cartas trocadas entre pai e filha mostram a relação bastante carinhosa que ambos mantiveram ao longo dos anos, elas também ressaltam a diferença de seus valores e projetos de vida. A despeito dos insistentes pedidos de madre Maria José, Capistrano permanecia reticente quanto à conversão, como se pode ler na carta enviada pela carmelita em 27 de julho de 1927, poucos dias antes da morte de Capistrano: “Soube, meu querido pai, que você mandou imprimir o soneto que lhe fiz, a fim de oferecê-lo aos amigos. Mas de que serve isto? O que eu quero é a sua resposta, o seu sim. Ah! Meu pai, como meu coração vive tão magoado vendo-o assim tão afastado de Deus! Por que não procura um Padre Jesuíta? Não leve a mal que eu lhe fale assim; é que eu vejo que é preciso que você se converta.”
Ora, Capistrano, que via com suspeição qualquer postura dogmática, fosse de cunho religioso ou laico, ficou profundamente amargurado com a decisão da filha de afastar-se, aos 29 anos de idade, da belle époque carioca para assumir a vida monástica no Convento de Santa Teresa, onde viveria até sua morte, em 1959. O descontentamento provinha tanto do distanciamento físico e afetivo imposto pela vida no claustro quanto da impossibilidade de transmitir a Honorina o legado intelectual por ele formulado.
Oscilando entre a melancolia e a revolta, o historiador fez uma confidência a Mário de Alencar em 18 de janeiro de 1911, uma semana depois do ingresso da filha no claustro: “Acho, porém, o caso dela pior que a morte: a morte é fatal; chega a hora inadiável; em resoluções como a de agora há sempre a crença, certamente errônea, de que o desenlace podia ser outro, e é isto que dói. Só agora vejo como a queria. Passo os dias sem sair, pensando nela, joguete dos sentimentos mais contraditórios, desde a indignação até as lágrimas”.
{NOVAPÁGINA}
A contenda criada pela opção religiosa da filha, que tanto contrariou as expectativas de Capistrano, traduziu de maneira singular um importante embate travado no interior do círculo letrado do Brasil entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Neste período, tendo substituído os púlpitos como arena de discussão, a imprensa conferia visibilidade a distintos projetos de sociedade, pensados por autores de orientação positivista, liberal, anarquista, muitos dos quais defendiam o afastamento da Igreja de qualquer ingerência no espaço público.
A prática da escrita epistolar, tão empregada pela madre – e que, no dizer de Capistrano, configurava-se como um “sermão” –, não ficava alheia a este debate, consistindo em uma modalidade particular de apostolado letrado. Afinal, com a Restauração Católica, deslanchada de acordo com as diretrizes do Concílio Vaticano I (1870-1871), o episcopado incentivou a promoção dos mais variados discursos, manuscritos e impressos, tidos como instrumento de contestação ao que era denominado “catolicismo de fachada” e “ignorância religiosa” da sociedade brasileira.
Capistrano, em contrapartida, mantinha divergências de longa data com a Igreja: nascido em Maranguape, no Ceará, em outubro de 1853, fez os primeiros estudos no Seminário de Fortaleza, de onde foi retirado por não se adaptar à rígida disciplina. Vindo para o Rio de Janeiro, em 1875, trabalhou na Livraria Garnier, foi redator da Gazeta de Notícias, e em seguida tornou-se funcionário da Biblioteca Nacional, em 1879. Esses trabalhos renderam-lhe um certo reconhecimento no meio intelectual, reafirmado por sua aprovação, em 1883, no concurso para professor de História e Corografia do Brasil do Colégio Pedro II, onde atuou até 1889.
Em 1907, Capistrano publicou o primeiro volume da reedição comentada da História Geral do Brasil, de Varnhagen; nesse mesmo ano, ele lançou sua obra mais famosa, Capítulos de História Colonial. Desta maneira, no início do século XX Capistrano já era apontado como um dos expoentes da historiografia brasileira, aquele que, rompendo com o modelo de uma narrativa centrada no tempo linear e na história política, havia introduzido o povo como agente histórico, reconstituindo o processo pelo qual fora “capado e recapado, sangrado e ressangrado”.
Curiosamente, porém, no desempenho de suas atividades intelectuais, Capistrano dialogava diariamente com afamados pensadores católicos, freqüentadores dos mesmos círculos intelectuais da capital da República, como, por exemplo, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (onde haviam ingressado, além do próprio Capistrano, intelectuais como Eduardo Prado, de quem era grande amigo, Afonso Celso e o padre Júlio Maria); a Academia Brasileira de Letras (da qual Capistrano sempre recusou o convite para participar e onde se encontrava Alceu Amoroso Lima); e o Colégio Pedro II (do qual faziam parte Jônathas Serrano e Raja Gabaglia).
Mas nem as cartas da filha freira nem a convivência com colegas católicos conseguiram demover Capistrano de sua resistência à religião. Se Capistrano concordava com a afirmativa católica de que a realidade não era resultante de um simples acaso, sendo portadora de um sentido implícito, a desdobrar-se no tempo, ele rejeitava de forma veemente, devido à sua formação cientificista, uma filosofia teológica da História, segundo a qual a existência humana seria conduzida pela Providência Divina. Além disso, Capistrano não acreditava que o catolicismo poderia levar a uma “civilização espiritual”, que viabilizaria a manutenção da ordem, da autoridade e das hierarquias sociais.
Esta opinião de Capistrano a respeito da religião pode ser percebida, ainda que de forma implícita, na resposta dada ao pedido do político Pandiá Calógeras para que prefaciasse a obra do jesuíta Madureira, que já tinha revisado; em carta, Capistrano afirmou que “[...] nada escreveria, que o estimava muito, e que a sua colaboração fora uma prova do muito apreço em que o tem; mas que escrever era impossível, pois suas convicções próprias diferiam muito das do amigo e que, se a probidade científica permitia a revisão, as convicções não consentiam aprovar quanto está no livro”.
As considerações de Capistrano acerca da fé católica mantiveram-se inalteradas com sua paulatina aproximação do pensamento alemão, promovida a partir dos anos 1880, quando o historiador se dedicou ao estudo do idioma germânico, do método histórico-crítico e da psicologia dos povos. Com base nestas leituras, ele passou a enfatizar a necessidade de precisão documental, conferiu maior destaque às particularidades de cada período histórico e, sobretudo, defendeu uma compreensão da cultura baseada na tradição como elemento essencial para constituir uma nação. Daí seu esforço em aprender línguas indígenas (especialmente dos bacaeris e dos caxinauás), pois Capistrano considerava tal vocabulário uma fonte privilegiada de acesso à organização social ameríndia, pesquisa que culminou na edição da obra Ra-txá-hu-ni-ku, em 1914.
Embora o pensamento alemão mantivesse semelhanças com a perspectiva católica por sua valorização da cultura e da tradição, bem como por sua simpatia pelo conservadorismo político e ideológico, as diferenças entre ambos eram nítidas para Capistrano. Afinal, a vertente doutrinária do catolicismo, ao abordar a história vivida, concebia-a de maneira estática, remontando-a a um passado idealizado (principalmente medieval). Deste modo, era eliminada a possibilidade de mudança. Já Capistrano compreendia a história como um processo dinâmico e evolutivo, através do qual seria possível o desenvolvimento social.
Por todas essas discordâncias com a Igreja, Capistrano não atendeu aos pedidos da filha, que chegou a enviar-lhe os mais eminentes jesuítas da época, como os padres Franca e Madureira, ao pressentir que sua agonia estava próxima. Capistrano morreria sem se converter ao catolicismo, mantendo assim, em seus derradeiros momentos, uma atitude coerente com o seu distanciamento em relação às questões religiosas que adotara ao longo da vida. Esta posição crítica seria esboçada em tons irônicos (mas não sarcásticos) no relato deixado por Rodrigo Otávio Filho, ensaísta e poeta que, amigo de Capistrano, registrou a última conversa do historiador com o Dr. Felício dos Santos, médico “católico praticante e íntimo [...] do rebelde livre pensador [...] [que] insinuou o bem que lhe faria receber os Santos Sacramentos. Capistrano, com um leve sorriso, respondeu, pensando em sua filha Honorina, esposa de Cristo: ‘Ora, Felício, eu sou mais amigo de Jesus do que você. Nós somos íntimos...Pois se ele é meu genro!’”
Virgínia A. Castro Buarque é professora do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e autora de Escrita Singular: Capistrano de Abreu e Madre Maria José. Fortaleza: Secretaria da Cultura do Estado do Ceará/Museu do Ceará, 2003.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
Virgínia A. Castro Buarque
Foi com o soneto intitulado “A meu pai” que Honorina de Abreu, filha primogênita do historiador Capistrano de Abreu, ou, como era mais conhecida, madre Maria José de Jesus, monja da Ordem do Carmelo Descalço, buscou consolar seu pai, debilitado pela doença, poucos meses antes de sua morte, ocorrida em 13 de agosto de 1927. A poesia também traduzia um profundo desejo da madre: a conversão de Capistrano à fé católica, delicadamente sugerida nos versos.
“Foste tu, caro Pai, que do seio do Eterno
Me arrancaste e trouxeste a este mundo, a esta vida...
Quando eu desabrochei – qual flor recém-nascida –
O sol que me aqueceu foi teu amor tão terno.
Teu sangue é sangue meu... Trabalho paterno
Ganhou-me o pão com que eu cresci e fui nutrida.
Ah! Quanto te custei!... Quanta dor! Quanta lida!
Desde teu quente estio até teu frio inverno!
E agora, dá-me a mão... É noite. Vem comigo!
Vem que eu te levarei a Jesus, teu Amigo
Que te espera saudoso... Oh! Dize-me que sim!
Foste meu pai e eu tua mãe serei agora...
Dar-te-ei a Eterna Luz de que me deste a aurora,
Dar-te-ei – por esta vida – a Vida que é sem fim...”
Honorina nasceu em 1882 e estudou em um dos melhores colégios femininos do Rio de Janeiro – o Imaculada Conceição, dirigido pelas Filhas de Caridade, da Congregação de São Vicente de Paulo. Inteligente e culta, dominava sete línguas e publicou traduções e artigos, além de escrever poesia. Em 1902, vivenciou, no dizer de Capistrano, uma “crise religiosa”, que culminou no seu ingresso na vida monástica, nove anos depois. Desde então, sem se deixar intimidar pelas limitações impostas pela prática religiosa, empenhou-se em promover o retorno do pai e de seus parentes mais próximos ao seio da Igreja.
Se as cartas trocadas entre pai e filha mostram a relação bastante carinhosa que ambos mantiveram ao longo dos anos, elas também ressaltam a diferença de seus valores e projetos de vida. A despeito dos insistentes pedidos de madre Maria José, Capistrano permanecia reticente quanto à conversão, como se pode ler na carta enviada pela carmelita em 27 de julho de 1927, poucos dias antes da morte de Capistrano: “Soube, meu querido pai, que você mandou imprimir o soneto que lhe fiz, a fim de oferecê-lo aos amigos. Mas de que serve isto? O que eu quero é a sua resposta, o seu sim. Ah! Meu pai, como meu coração vive tão magoado vendo-o assim tão afastado de Deus! Por que não procura um Padre Jesuíta? Não leve a mal que eu lhe fale assim; é que eu vejo que é preciso que você se converta.”
Ora, Capistrano, que via com suspeição qualquer postura dogmática, fosse de cunho religioso ou laico, ficou profundamente amargurado com a decisão da filha de afastar-se, aos 29 anos de idade, da belle époque carioca para assumir a vida monástica no Convento de Santa Teresa, onde viveria até sua morte, em 1959. O descontentamento provinha tanto do distanciamento físico e afetivo imposto pela vida no claustro quanto da impossibilidade de transmitir a Honorina o legado intelectual por ele formulado.
Oscilando entre a melancolia e a revolta, o historiador fez uma confidência a Mário de Alencar em 18 de janeiro de 1911, uma semana depois do ingresso da filha no claustro: “Acho, porém, o caso dela pior que a morte: a morte é fatal; chega a hora inadiável; em resoluções como a de agora há sempre a crença, certamente errônea, de que o desenlace podia ser outro, e é isto que dói. Só agora vejo como a queria. Passo os dias sem sair, pensando nela, joguete dos sentimentos mais contraditórios, desde a indignação até as lágrimas”.
{NOVAPÁGINA}
A contenda criada pela opção religiosa da filha, que tanto contrariou as expectativas de Capistrano, traduziu de maneira singular um importante embate travado no interior do círculo letrado do Brasil entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Neste período, tendo substituído os púlpitos como arena de discussão, a imprensa conferia visibilidade a distintos projetos de sociedade, pensados por autores de orientação positivista, liberal, anarquista, muitos dos quais defendiam o afastamento da Igreja de qualquer ingerência no espaço público.
A prática da escrita epistolar, tão empregada pela madre – e que, no dizer de Capistrano, configurava-se como um “sermão” –, não ficava alheia a este debate, consistindo em uma modalidade particular de apostolado letrado. Afinal, com a Restauração Católica, deslanchada de acordo com as diretrizes do Concílio Vaticano I (1870-1871), o episcopado incentivou a promoção dos mais variados discursos, manuscritos e impressos, tidos como instrumento de contestação ao que era denominado “catolicismo de fachada” e “ignorância religiosa” da sociedade brasileira.
Capistrano, em contrapartida, mantinha divergências de longa data com a Igreja: nascido em Maranguape, no Ceará, em outubro de 1853, fez os primeiros estudos no Seminário de Fortaleza, de onde foi retirado por não se adaptar à rígida disciplina. Vindo para o Rio de Janeiro, em 1875, trabalhou na Livraria Garnier, foi redator da Gazeta de Notícias, e em seguida tornou-se funcionário da Biblioteca Nacional, em 1879. Esses trabalhos renderam-lhe um certo reconhecimento no meio intelectual, reafirmado por sua aprovação, em 1883, no concurso para professor de História e Corografia do Brasil do Colégio Pedro II, onde atuou até 1889.
Em 1907, Capistrano publicou o primeiro volume da reedição comentada da História Geral do Brasil, de Varnhagen; nesse mesmo ano, ele lançou sua obra mais famosa, Capítulos de História Colonial. Desta maneira, no início do século XX Capistrano já era apontado como um dos expoentes da historiografia brasileira, aquele que, rompendo com o modelo de uma narrativa centrada no tempo linear e na história política, havia introduzido o povo como agente histórico, reconstituindo o processo pelo qual fora “capado e recapado, sangrado e ressangrado”.
Curiosamente, porém, no desempenho de suas atividades intelectuais, Capistrano dialogava diariamente com afamados pensadores católicos, freqüentadores dos mesmos círculos intelectuais da capital da República, como, por exemplo, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (onde haviam ingressado, além do próprio Capistrano, intelectuais como Eduardo Prado, de quem era grande amigo, Afonso Celso e o padre Júlio Maria); a Academia Brasileira de Letras (da qual Capistrano sempre recusou o convite para participar e onde se encontrava Alceu Amoroso Lima); e o Colégio Pedro II (do qual faziam parte Jônathas Serrano e Raja Gabaglia).
Mas nem as cartas da filha freira nem a convivência com colegas católicos conseguiram demover Capistrano de sua resistência à religião. Se Capistrano concordava com a afirmativa católica de que a realidade não era resultante de um simples acaso, sendo portadora de um sentido implícito, a desdobrar-se no tempo, ele rejeitava de forma veemente, devido à sua formação cientificista, uma filosofia teológica da História, segundo a qual a existência humana seria conduzida pela Providência Divina. Além disso, Capistrano não acreditava que o catolicismo poderia levar a uma “civilização espiritual”, que viabilizaria a manutenção da ordem, da autoridade e das hierarquias sociais.
Esta opinião de Capistrano a respeito da religião pode ser percebida, ainda que de forma implícita, na resposta dada ao pedido do político Pandiá Calógeras para que prefaciasse a obra do jesuíta Madureira, que já tinha revisado; em carta, Capistrano afirmou que “[...] nada escreveria, que o estimava muito, e que a sua colaboração fora uma prova do muito apreço em que o tem; mas que escrever era impossível, pois suas convicções próprias diferiam muito das do amigo e que, se a probidade científica permitia a revisão, as convicções não consentiam aprovar quanto está no livro”.
As considerações de Capistrano acerca da fé católica mantiveram-se inalteradas com sua paulatina aproximação do pensamento alemão, promovida a partir dos anos 1880, quando o historiador se dedicou ao estudo do idioma germânico, do método histórico-crítico e da psicologia dos povos. Com base nestas leituras, ele passou a enfatizar a necessidade de precisão documental, conferiu maior destaque às particularidades de cada período histórico e, sobretudo, defendeu uma compreensão da cultura baseada na tradição como elemento essencial para constituir uma nação. Daí seu esforço em aprender línguas indígenas (especialmente dos bacaeris e dos caxinauás), pois Capistrano considerava tal vocabulário uma fonte privilegiada de acesso à organização social ameríndia, pesquisa que culminou na edição da obra Ra-txá-hu-ni-ku, em 1914.
Embora o pensamento alemão mantivesse semelhanças com a perspectiva católica por sua valorização da cultura e da tradição, bem como por sua simpatia pelo conservadorismo político e ideológico, as diferenças entre ambos eram nítidas para Capistrano. Afinal, a vertente doutrinária do catolicismo, ao abordar a história vivida, concebia-a de maneira estática, remontando-a a um passado idealizado (principalmente medieval). Deste modo, era eliminada a possibilidade de mudança. Já Capistrano compreendia a história como um processo dinâmico e evolutivo, através do qual seria possível o desenvolvimento social.
Por todas essas discordâncias com a Igreja, Capistrano não atendeu aos pedidos da filha, que chegou a enviar-lhe os mais eminentes jesuítas da época, como os padres Franca e Madureira, ao pressentir que sua agonia estava próxima. Capistrano morreria sem se converter ao catolicismo, mantendo assim, em seus derradeiros momentos, uma atitude coerente com o seu distanciamento em relação às questões religiosas que adotara ao longo da vida. Esta posição crítica seria esboçada em tons irônicos (mas não sarcásticos) no relato deixado por Rodrigo Otávio Filho, ensaísta e poeta que, amigo de Capistrano, registrou a última conversa do historiador com o Dr. Felício dos Santos, médico “católico praticante e íntimo [...] do rebelde livre pensador [...] [que] insinuou o bem que lhe faria receber os Santos Sacramentos. Capistrano, com um leve sorriso, respondeu, pensando em sua filha Honorina, esposa de Cristo: ‘Ora, Felício, eu sou mais amigo de Jesus do que você. Nós somos íntimos...Pois se ele é meu genro!’”
Virgínia A. Castro Buarque é professora do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e autora de Escrita Singular: Capistrano de Abreu e Madre Maria José. Fortaleza: Secretaria da Cultura do Estado do Ceará/Museu do Ceará, 2003.
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