por Jean Baptista
BIBLIOTECA MUNICIPAL MÁRIO DE ANDRADE, SÃO PAULO
Ritual primitivo de sepultamento de indígenas/ Enterro, litogravura aquarelada, Johann Moritz Rugendas, séc. XIX, Museu da Casa Brasileira, São Paulo
Padre, padre, um dos nossos está com a cara toda pintada de vermelho”, disse o índio de uma Missão jesuíta tão logo o padre saiu do claustro, ainda pela manhã. O religioso estremeceu: “Fui correndo ver o que era, já pensando na peste”. Corria o século XVII na região onde hoje fica a tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai.
Ao chegar à pequena choça indígena, instalada próximo do povoado, ao padre não restaram dúvidas de que se tratava de varíola, doença que lhe rendia profundas preocupações. Ele tinha viva na memória a experiência de surtos anteriores: era preciso reagir rapidamente para tentar salvar o corpo dos índios enfermos, ainda que com baixa chance de vitória.
Mas, pensou o cura, também era o momento propício para fazer semear a mística do salvamento pelo Deus único do catolicismo. Ou seja, de aplicar seu apostolado para que os indígenas compreendessem que o Altíssimo ansiava pela alma de cada silvícola, podendo oferecer em troca uma vida longa e saudável.
Correspondência, livros de catequese, sermões e outros registros datados dos séculos XVII e XVIII revelam o trabalho dos jesuítas da Província Eclesiástica do Paraguai, atualmente parte do território da Argentina, do Paraguai e do Brasil. Eles tentaram implantar entre os indígenas abrigados nos povoados missionais (Guarani, Jê e Pampianos) noções de pecado, culpa e castigo. E a ação nefasta de doenças epidêmicas teve sua valia nesse esforço catequista.
REPRODUÇÃO
O esforço de evangelização de nativos começa logo depois do Descobrimento/ Evangelização no Novo Mundo, gravura, Hans Staden, 1557
“Os deuses ameríndios são mais fracos que o Deus verdadeiro” – eis o princípio da argumentação de missionários ativos na América colonial quando o assunto era varíola, sarampo ou gripe, doenças européias contra as quais os indígenas não possuíam defesas biológicas. Assim, os religiosos apresentavam-se aos nativos como representantes de uma vontade divina que, quando contrariada, não se fazia de rogada e enviava enfermidades a uma comunidade.
A estratégia religiosa tinha conexões com o que os nativos entendiam por doenças. Eles, de fato, eram inclinados a interpretá-las como manifestações do desgosto dos deuses diante do comportamento da humanidade. Muitas vezes, os silvícolas consideravam os surtos, as epidemias e as doenças individuais como o resultado de um “embruxamento”, vindo de algum indivíduo poderoso.
Ao acenar com a chave do controle das epidemias, os missionários se tornavam legítimos feiticeiros entre os indígenas. Tão logo uma epidemia abatia um povoado, uma série de medidas relacionadas à vida e espiritualidade era tomada, para tentar efetivar o processo de conversão dos nativos.
A modalidade do “praguejamento missionário” fundamentado em pestes visava, sobretudo, os índios que já haviam recebido a “boa nova” e, mesmo assim, seguiam com uma “vida pagã”. Na perspectiva jesuítica, o preço dessa opção era cobrado, em primeiro lugar, nas matas ao redor dos povoados missionais. Nelas se espalhava uma infinidade de cadáveres e moribundos provenientes de grupos devastados pelos surtos. Mas igualmente órfãos, mulheres e velhos desamparados – potenciais novas “ovelhas” para o rebanho dos padres.
MUSEU DO NOVO MUNDO, LA ROCHELLE
Medicina xamânica rivalizava com a dos católicos/A fabricação do Curare, óleo sobre tela, François Auguste Biard, sem datação, Museu do Novo Mundo, La Rochelle, França
Também nas matas moravam os xamãs, os indivíduos com poderes e funções espirituais entre os grupos sacerdotais dos indígenas. Eles foram descritos na documentação católica da época como diabólicos opositores do projeto missional. Não por acaso, os religiosos diziam que a mata habitada por xamãs era a incubadora das epidemias.
A guerra de poder entre padres e os tais “ministros do demônio” era explícita e rendeu relatos pitorescos, como o episódio que envolveu o padre jesuíta Mola, fundador da Missão de San Carlos, no atual território brasileiro.
Mola enfrentou um poderoso feiticeiro que se proclamava o “senhor das pestes e das enfermidades”, causa de profundo assombro na comunidade. O feiticeiro, contudo, acabou “provando de seu próprio veneno e caiu doente”. Os índios, então, zombaram dele: como poderia ser o senhor das enfermidades se não conseguiu se defender da epidemia?
Já os xamãs que aceitavam a conversão ao catolicismo – de preferência em praça pública – podiam obter a remissão de seus pecados e o perdão do Deus dos brancos. De modo geral, graças ao auxílio pestilento, os missionários conseguiam sobrepujar os adversários na disputa pela liderança espiritual dos nativos.
No interior dos povoados, a realidade também era dramática. Apesar das instalações hospitalares, as epidemias afetavam drasticamente os censos anuais. Adultos eram presas fáceis, mas a mortandade atingia mais as crianças das Missões.
BIBLIOTECA NACIONAL MARIO DE ANDRADE, SÃO PAULO
Prantear a morte do semelhante mobilizava os ditos selvagens/ Funerais e sepulturas e o modo de chorar seus defuntos, xilogravura, Jean de Léry, 1600, Biblioteca Mário de Andrade, São Paulo
MARANGATU Relatos dos missionários explicitam as idéias de então. A salvação física de uma criança, durante epidemias, só se dava mediante intercessão divina – o veículo da bênção poderia ser um elemento da medicina mágica administrada por jesuítas e seus enfermeiros ou, especialmente, a interferência dos santos, capazes de aplacar a cólera divina.
Certa feita, um povoado foi quase extinto por uma epidemia. Entre seus habitantes, havia uma menina de 10 anos que costumava ajoelhar-se todos os dias aos pés de uma imagem de Maria, a quem destinava rezas e pedidos. Em outra Missão, dois pequenos irmãos, de 5 e 7 anos, fo RAM vistos caminhando em direção à igreja do povoado, mortificando-se com açoites e implorando a complacência de santa Ana. As três crianças – e outras com vivências semelhantes – teriam se salvado, de acordo com registros dos religiosos.
Chamados pelos indígenas de marangatu (os bem-aventurados), os santos se assemelhavam aos heróis xamânicos dotados de poderes de cura. Só que os santos, segundo os padres, cobravam um preço diferente para conceder graças: desejavam humilhações, resignações, missas, confissões, conversões e novenas. Apesar de muitos indígenas terem seguido essas recomendações, a preferência por cantos, danças e oferendas de alimentos era majoritária.
De todo modo, os padres ensinavam que os marangatu ofereciam a imunidade por meio de intervenções notáveis. Um bom exemplo eram as supostas aparições de santo Ignácio, fundador da Companhia de Jesus, em tempos de epidemia. O santo costumava “aparecer” aos doentes de um modo aterrador: demonstrando sua irritação com os homens.
ACERVO FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL - BRASIL
O inferno dos nativos misturava onças e outros bichos aos demônios católicos/ Xilogravura, s/data, autor desconhecido, Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro
Sobre isso, eis o relato de um jesuíta: “O santo apareceu no sonho de um enfermo, ralhou com ele asperamente pelo pecado que havia cometido e deu-lhe bofetadas para que lhe servissem de memória”. A outra pessoa enferma, uma índia com difteria, santo Ignácio também providenciou em sonho uma reprimenda: “Vocês comem de maneira desenfreada tudo o que encontram pela frente! Por isso estão enfermos!”. Palavra do santo...
Mesmo opressoras, as intervenções podiam resultar em medidas salutares, algumas capazes de salvar a vida dos que demonstravam alinhamento à moral pregada nas Missões. Assim, a religiosidade ameríndia, que via nos sonhos a possibilidade de encontrar explicações e curas para problemas terrenos, dialogava de perto com percepções ocidentais.
A banalização da morte, ilustrada pela existência de covas comuns durante epidemias, no período de 1630 a 1730, deu origem a outro fenômeno: um intenso, criativo e imprevisível debate entre padres e índios sobre o destino dos mortos.
Os jesuítas tentavam difundir a sua “geografia do além”, segundo a lógica ocidental, assim como suas idéias sobre as relações entre os vivos e os mortos. Já os nativos trataram de construir um “além-morte” singular. Não raro, relatavam aos jesuítas que, em sonho, haviam estado num inferno habitado por onças, corujas e serpentes. Ou no paraíso, ao lado de resplandecentes anjos de asas vermelhas, em terras de alimento abundante onde se cantava, dançava e se mantinha morfologia social experimentada na vida terrena.
Como se vê, o cenário pintado pelos missionários correspondia à tentativa de sobrepujar as percepções da cultura indígena. A lógica deles era objetiva: tempo de epidemia, tempo de dar combate ao diabo, ou seja, de eliminar o que não era cristão. Entretanto, a necessidade de convívio levou jesuítas e sul-ameríndios a dialogar sobre as representações em circulação e a experimentar aproximações e distanciamentos em prol da sobrevivência do projeto missional.
Padres e nativos geraram, com isso, uma religiosidade que, ao fim, não era nem jesuítica nem indígena, mas sim um conjunto de crenças relacionadas, aplicável unicamente no solo das incríveis Missões.
O TRABALHO NOS HOSPITAIS MISSIONAIS
REPRODUÇÃO
Mapa de 1671 da região missioneira
A principal medida material em tempos de epidemia nas Missões era a instalação de um hospital – na verdade, apenas um galpão erguido ou adaptado ao evento. A Coleção De Angelis, importante documentação sobre o processo jesuítico na região do rio Prata, hoje depositada na Biblioteca Nacional, e em microfilmes no Centro de Pesquisas Históricas da PUCRS, reúne uma série de relatos sobre esse espaço missional ao longo de 150 anos.
Conforme os registros, nesses hospitais os padres tentavam alterar práticas e costumes indígenas perante a doença e a cura, assim como se esforçavam para mantê-los à vista, bem longe das influências xamânicas. Ali uma “boa morte” cristã estava garantida, com sacramentos aplicados ao doente, assim como uma medicina mágica: ervas nativas (outrora xamânicas) junto com recursos católicos (imagens de santos, água-benta, óleos sagrados). Um altar portátil era erguido no centro do estabelecimento.
O contingente de trabalhadores daquele espaço também era singular: há registros de homens e mulheres distribuídos na limpeza, no carregamento dos corpos para o cemitério (havia um serviço especial no caso de surtos em locais distantes do povoado), na administração de remédios e de alimentos. Não raro, meninos do coral, devidamente instruídos, permaneciam ao lado dos enfermos para lhes dar consolo por meio de cantos e até mesmo da extrema-unção.
Esses enfermeiros indígenas eram aqueles espiritualmente destacados entre todos do povoado, selecionados nas congregações, no coral, no exército e, possivelmente, entre antigos praticantes do xamanismo.
Quando a epidemia era mais mortal e restavam apenas nativos saudáveis sem nenhuma distinção espiritual, a própria imunidade passava a ser sinal da preferência divina sobre o restante. – J. B.
OS 30 POVOS DAS MISSÕES
© MAURICIO SIMONETTI/PULSAR IMAGENS
Ruínas das construções jesuíticas em São Miguel das Missões (RS)
O Brasil foi pioneiro na preservação do que restou das Missões jesuíticas na região de fronteira com a Argentina e o Paraguai. Já na década de 30, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) iniciou o tombamento e restauro das ruínas gaúchas. Atualmente, todo o assombroso conjunto arquitetônico dos chamados 30 Povos das Missões está tombado pela Unesco, como Patrimônio Cultural da Humanidade.
A catequização das comunidades ditas primitivas começou em Paris, na mente do teólogo espanhol Ignácio de Loyola, que fundou a Companhia de Jesus em 1534. Roma aprovou a nova ordem em 1540, e os jesuítas, então, partiram de seus países para evangelizar os povos da Índia, do Extremo Oriente e das Américas portuguesa e espanhola.
Com a criação da Província Espanhola do Paraguay, em 1607, reduções jesuíticas foram fundadas em Guayrá, hoje área pertencente ao estado do Paraná. Essas Missões foram dizimadas pelos bandeirantes paulistas entre 1628 e 1629, e milhares de guaranis assentados foram levados a São Paulo para escravidão.
A experiência trágica em Guayrá levou os jesuítas a migrar para as regiões dos rios Uruguai, Paraná, Paraguai e Tebicuary, onde fundaram novas comunidades. Recém-convertidos, os guaranis foram educados de acordo com as normas jesuíticas pedagógicas. Alguns, iniciados nas artes e ofícios, se tornaram músicos, fabricantes de instrumentos musicais, impressores de livros, calígrafos e copistas, carpinteiros, ferreiros, tecelões e alfaiates, escultores, construtores e entalhadores.
O plano arquitetônico e urbanístico dessas comunidades serviu de cenário para liturgias e músicas polifônicas semelhantes às das catedrais européias, fruto da abnegação de jesuítas educadores, como o arquiteto João Batista Primoli (1673-1747) e o maestro Domenico Zipoli (1688-1726).
Juntas, as Missões chegaram a ter população de 80 mil indígenas em 1772 – cada uma abrigava entre 2 mil e 4 mil nativos. Na atual configuração geográfica da região, estavam assim distribuídas: 7 povos no oeste gaúcho, 15 povos na província argentina de Misiones e 8 povos no Paraguai.
O fim dessa saga começou com a disputa de fronteiras entre as duas Coroas. Pelo Tratado de Madri, de 1750, a região portuguesa de Sacramento (atual Uruguai) foi trocada pela região espanhola dos 7 Povos. Apesar da catastrófica Revolta Guarani, levante dos índios contra o fim das Missões, entre 1754 e 1756, a população assentada foi obrigada a se retirar de suas modernas cidades para a outra margem do rio Uruguai.
Ciúmes de outras ordens religiosas em Roma, rumores de minas de ouro escondidas e conspiração jesuítica para a criação de Estado independente colaboraram para a extinção da Companhia de Jesus em 1759. Os jesuítas das missões paraguaias foram presos e deportados para a Europa em 1767.
Os cerca de 80 mil índios das 30 Missões ficaram sob os cuidados de outras ordens religiosas, como a dos franciscanos, mas sem sucesso. A população nativa foi declinando. Muitos índios voltaram para as selvas ou migraram para Buenos Aires e outras cidades, graças aos ofícios aprendidos com os padres.
PARA SABER MAIS
A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. Ronaldo Vainfas. Companhia das Letras.
Xamanismo e cura na Coleção De Angelis. Org. de Maria Cristina dos Santos. PUCRS.
História do medo no Ocidente. Jean Delumeau. Companhia das Letras.
Negros da terra. John Manuel Monteiro. Companhia das Letras.
Religião como tradução. Cristina Pompa. Edusc, 2003.
Jean Baptista é professor-doutor de América Latina e América do Norte no curso de Relações Internacionais da ESPM de Porto Alegre e autor da pesquisa Fomes, pestes e guerras: dinâmicas dos povoados missionais em tempos de crise (1670-1750)
Revista Historia Viva
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