quarta-feira, 27 de maio de 2009

Mauá por trás do mito

A Baroneza, foi a primeira locomotiva a trafegar em território brasileiro,
servindo na Estrada de Ferro Petrópolis, depois Estrada de Ferro Mauá,
construída por iniciativa de Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá,
inaugurada em 30 de abril de 1854. Nesta vista, a Baroneza está sendo
exibida junto a um grupo de ferroviários na década de 1920.

O empresário Irineu Evangelista de Souza é apontado como a antítese de d. Pedro II quanto à política econômica do Segundo Reinado. Mas será que isso é mesmo verdade?
Carlos Gabriel Guimarães

Empresário moderno”, “burguês”, “empreendedor” – muitas palavras foram usadas por biógrafos e historiadores para marcar as diferenças entre Irineu Evangelista de Souza, o barão de Mauá, e o Império brasileiro, em geral retratado, nesse jogo de contrastes, como um regime arcaico e atrasado. Mas houve mesmo essa distância entre o barão e a Corte? Foi ele, de fato, um homem à frente do seu tempo? Ou o mito que envolve o personagem foi inventado para a defesa de determinados interesses de classe e de projetos políticos a posteriori?

Tanto as biografias mais conhecidas de Mauá – de Alberto de Faria (1926), Lídia Besouchet (1943), Claudio Ganns (1943), Anyda Marchant (1965) e Jorge Caldeira (1995) – quanto as releituras marxista e a nacional-desenvolvimentista propostas nas décadas de 1940 a 1960 por Caio Prado Júnior e Celso Furtado, entre outros, enfatizaram a figura do industrial liberal que se destacava num país essencialmente agrícola e conservador. Tal visão é até hoje reproduzida nos livros didáticos do ensino médio, que chegam a denominar de “era Mauá” o período “urbano-industrial” do apogeu do Império, entre 1850-1870. A pesquisa histórica revela, no entanto, que a atuação do grande negociante e aristocrata foi sempre no sentido da legitimação do Império brasileiro, e não o contrário, como comumente se repete.

A trajetória do jovem caixeiro e depois negociante Irineu Evangelista de Souza é bem conhecida. Nascido em 28 de dezembro de 1813 na antiga capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul, era filho e neto de proprietários de terras e produtores de charque daquela região. O assassinato do pai, quando tinha cinco anos, e o segundo casamento da mãe foram acontecimentos que selaram seu destino: sua irmã casou aos 12 anos e ele, três anos mais novo, foi entregue ao tio paterno, José Batista de Carvalho. Pouco se conhece da relação tio-sobrinho, a não ser um fato importante: José Batista, capitão de navio, dedicava-se ao comércio de cabotagem, e um dos portos de parada mais importante era a cidade do Rio de Janeiro, principal centro comercial do Império português no Atlântico. Graças aos contatos do tio, aos 13 anos de idade Irineu virou caixeiro de um dos mais poderosos negociantes de “grosso trato” da cidade, João Rodrigues Pereira de Almeida (futuro barão de Ubá). Os negociantes de grosso trato são aqueles que empregavam grandes fundos em tráficos e manufaturas, pondo em rápido movimento e extensão a indústria colonial brasileira; faziam também comércio de especulação, bancos e seguros.


João era filho de José Rodrigues Pereira de Almeida, um dos maiores negociantes e contratadores portugueses no período da Viradeira (reinado da d. Maria I, mãe de d. João VI). Ele e seus irmãos Antônio Rodrigues Pereira de Almeida, Joaquim Pereira de Almeida e Mateus Pereira de Almeida mantinham casas comerciais no Rio de Janeiro e em Lisboa. Deputado da Real Junta de Comércio, acionista e diretor do Banco do Brasil, negociante do comércio de cabotagem com a região Sul do Brasil e um dos maiores traficantes de escravos da sua época, foi João Rodrigues Pereira de Almeida quem apresentou ao jovem caixeiro o mundo dos “negociantes de grosso”, vulgarmente conhecidos como atacadistas.

Voltados para a importação e exportação de variados produtos – desde manufaturados a escravos –, esses negociantes se dedicavam muitas vezes também ao comércio de especulação, na área de câmbio e de seguros. Eram conhecidos como pessoas de grande “sagacidade e inteligência”, inclusive para calcularem bem as circunstâncias dos investimentos e as projeções de seus negócios. Mantinham, em geral, um grande número de empregados, assalariados ou não. No recrutamento dos caixeiros, costumavam pesar o parentesco e as indicações, feitas por pessoas próximas à família do negociante. Fora isso, a utilização da mão-de-obra infantil era comum numa sociedade não-capitalista como a brasileira do período.

Em face da bancarrota de João Rodrigues Pereira de Almeida, ocorrida em 1828 ou 1829, o negociante inglês Richard Carruthers, um de seus principais credores, assumiu os ativos da sua empresa e tornou-se patrão do jovem Irineu Evangelista. Os relatos biográficos costumam destacar a generosidade de Carruthers, por não ter aceitado como ativo a casa residencial do comerciante. Este, por gratidão, encaminhou o caixeiro Irineu ao credor. A chegada de Carruthers ao Rio de Janeiro e sua relação com João Rodrigues Pereira de Almeida não são em geral bem analisadas pelos biógrafos do visconde de Mauá. Aliás, no tocante à trajetória e à organização dos negócios dos negociantes ingleses, há uma lacuna, na medida em que a historiografia brasileira e portuguesa enfatizam a dependência dos portugueses diante dos comerciantes ingleses desde o Tratado de Methuen, de 1703, que estipulou a compra do vinho português, pela Inglaterra, em troca da importação de tecidos ingleses, por Portugal. O tratado, que passou a vigorar para o Brasil a partir de 1810, teria mantido a dependência também dos brasileiros em relação aos ingleses.


Era comum, no período colonial, que negociantes ingleses, sobretudo irmãos, se fixassem primeiramente em Lisboa, migrando depois para outras regiões do Império português. Richard Carruthers chegou a Lisboa no dia 9 de janeiro de 1822, permanecendo na cidade junto com seus irmãos Guilherme e Isaac. No final de 1823, partiu para o Rio de Janeiro. Fazia parte da cultura de negócios da época a associação de ingleses com grandes negociantes portugueses, que gozavam de privilégios em face de seu poder econômico e principalmente político. Os Carruthers, em especial Guilherme, tinha ligações com José Bento de Araújo, que pelo comércio constituiu uma das maiores fortunas do período. Pode-se supor que a aproximação entre Richard Carruthers e os Pereira de Almeida tenha começado em Lisboa, e se fortalecido no Rio de Janeiro.

A trajetória de Irineu Evangelista de Souza como “negociante de grosso”, e não mais como caixeiro, começa no momento em que assume a direção da firma comercial Carruthers e Irmãos, depois Carruthers & Co. Localizada na rua Direita nº 84, com negócios “de fazenda seca por atacado” – ou seja, importação de gêneros secos tais como fios e tecidos de algodão da Inglaterra, principalmente de Manchester –, a firma inglesa conquistou grande prestígio na praça do Comércio do Rio de Janeiro. Além de tecidos, comercializava outros produtos, como as boticas e vinhos da região de Setúbal, que passaram a ser enviados de Lisboa por Guilherme Carruthers depois da liberação desse tipo de comércio, em 1834.

Depois que assumiu a direção da firma, e principalmente após o retorno de Richard Carruthers a seu país, em 1837, a projeção de Irineu Evangelista cresceu. Em 1840, realizou sua primeira viagem à Inglaterra, ocasião em que visitou o sócio Richard. Essa viagem, para os biógrafos de Mauá, constituiu-se num marco, pois foi o momento em que Irineu Evangelista de Souza tomou conhecimento da moderna indústria capitalista, tendo despertada sua vocação “industrial”. Entretanto, o que houve de concreto foi a organização de uma firma comercial, em Manchester, com o nome de Carruthers, De Castro & Cia, da qual Irineu era sócio comanditário, ou seja, só participava com o capital, sem obrigações e outras responsabilidades. O nome De Castro se relacionava ao negociante português, radicado na Inglaterra, José Henrique Reynell de Castro. Os biógrafos de Mauá, sobretudo Lídia Besouchet e Jorge Caldeira, enfatizam que José Henrique era filho de d. Miguel Caetano de Castro, judeu convertido ao cristianismo e físico-mor (a quem cabia a fiscalização da medicina e farmácia) de d. João VI.


Ainda na década de 1840, outros negócios fizeram com que o nome de Irineu Evangelista de Souza se destacasse ainda mais. Adquiriu em 1846, da firma Carlos Coleman & Co., o Estabelecimento de Fundição e Estaleiro da Ponta da Areia. Esse negócio estava relacionado com a chamada Tarifa Alves Branco, instituída em 1844 pelo ministro da Fazenda Manuel Alves Branco, que modificou as tarifas aduaneiras de quase 3 mil produtos importados. Estes tiveram seus impostos aumentados em 30% e até 60%.

O empreendimento tem aspectos polêmicos, seja pelos empréstimos e privilégios concedidos pelo governo imperial, seja pela própria organização da produção e do trabalho. No tocante à organização, o estaleiro era um conjunto de oficinas, e não uma fábrica moderna capitalista (maquinofatura) como hoje a entendemos. A forma de organização, embora tenha uma divisão do trabalho, era extremamente dependente da habilidade (trabalho) do trabalhador, não tendo o componente moderno do sistema fabril, com a máquina-ferramenta substituindo o trabalho. Com relação aos trabalhadores, nos dois únicos relatórios da empresa encontrados, referentes aos anos 1854 e 1855, chama atenção a presença de um grande contingente de escravos envolvidos no trabalho, pertencentes ao próprio estaleiro ou “negros de ganho”, cativos alugados cujo pagamento era em parte repassado a seus senhores. A presença de escravos nos negócios de Irineu Evangelista, após o fim do tráfico negreiro, em 1850, compromete, decerto, a sua fama de abolicionista.

Um fato muito pouco explorado nas biografias de Irineu Evangelista, pois vai de encontro ao mito que se criou em torno dele, foi sua participação no tráfico negreiro, a partir da firma inglesa Carruthers & Co. A ligação de vários negociantes e firmas inglesas com traficantes de escravos não é nenhuma novidade. Entretanto, a estreita relação da Carruthers & Co. com um dos maiores traficantes de escravos do período, o português Manoel Pinto da Fonseca, mostra sua participação e interesse no trágico “comércio de carne humana”. Apesar da lei de 1831 que proibiu o desembarque de escravos na costa brasileira, e principalmente após a Bill Aberdeen, de 1845, que concedeu à marinha inglesa o direito de perseguir, apresar e atacar os navios negreiros, mesmo em águas brasileiras, o tráfico de escravos não só continuou como aumentou. A presença de firmas inglesas nesse negócio altamente rentável demonstrava o quanto era difícil liquidá-lo.


Apesar de tudo, o prestígio econômico e político de Irineu Evangelista possibilitou sua eleição para a presidência da Sociedade dos Assinantes da Praça do Rio de Janeiro no biênio 1846-47. Foi também convidado pelo Gabinete Conservador de 1848 para participar da comissão organizadora do Código Comercial Brasileiro, que tinha à frente o ministro da Justiça, Eusébio de Queiroz, e contava com importantes figuras do Império, como José Clemente Pereira, Caetano Alberto Soares, José Thomas Nabuco de Araújo (pai de Joaquim Nabuco) e Francisco Ignácio Moreira, o barão de Penedo. Ampliando seu esquema mercantil, em 1850 a Carruthers & Co. associou-se, em Nova York, a Henry Dixon, organizando a firma Carruthers, Dixon & Co. A respeito desse negociante norte-americano, não existem maiores informações, a não ser no New York Business Directory for 1846/1847, que se refere a um importador chamado Henry Dixon. Nesse período, registrou-se uma crescente participação de negociantes americanos no comércio de escravos.

Após a promulgação do Código Comercial, e com o fim do tráfico negreiro, ambos em 1850, Irineu Evangelista e outros negociantes aplicaram seus capitais em vários e diversificados negócios. São sócios dele no período importantes negociantes brasileiros, como Militão Maximo de Souza (o futuro visconde de Andaraí), João Antonio de Figueiredo (pai do futuro visconde de Figueiredo, um dos maiores banqueiros do final do Império), e firmas e negociantes estrangeiros, como Manoel Pinto da Fonseca e a Hogg, Adam & Co. Entre os empreendimentos que os atraíam estavam a criação da Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro Petrópolis (1852) e a organização de vários bancos, como o segundo Banco do Brasil (1851-53), a Sociedade Bancária Mauá, MacGregor & Cia (1854-66), o Banco Mauá & Cia (1856) e o novo Banco Mauá & Cia (1866-75).

A trajetória dos negócios efetuados pelo futuro barão e depois visconde de Mauá, títulos estes concedidos por d. Pedro II após 1850, somada às honrarias e mercês recebidas, como os empréstimos e monopólios com que foi favorecido, expressam bem o homem da Corte, por mais que seus interesses, muitas vezes, tenham sido contrariados pelo poder imperial. Ao contrário do que afirmam as biografias, demarcando bem as fases do “empresário-empreendedor” – ou seja, primeiro negociante, depois industrial –, podemos afirmar que o primeiro não desapareceu, enquanto o segundo nunca existiu. Isso pode ser constatado muito bem no registro de matrículas dos comerciantes e firmas comerciais do Tribunal do Comércio, criado pelo Código Comercial de 1850.


A firma Carruthers & Co. aparece lá matriculada com o n.º 279, de 5 maio de 1851, autorizada a realizar “negócios de fazenda por atacado”. Irineu Evangelista de Souza tem a matrícula n.º 275, feita na mesma data e também com os mesmos propósitos comerciais. Na organização da ferrovia da Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro Petrópolis, constava entre os acionistas a firma Carruthers & Co., representada pelo “comerciante” Irineu Evangelista de Souza. Portanto, a firma não desapareceu na década de 1840, existindo até o início da década de 1850. Somente com a organização de outros negócios foi que a firma Carruthers & Co. desapareceu, e o banqueiro entrou para a história.


Carlos Gabriel Guimarães é professor de história da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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