domingo, 31 de maio de 2009

Fandango do barulho

Festas populares paranaenses varavam a noite e muitas vezes terminavam na polícia
José Augusto Leandro

Animadas com a chegada de marinheiros ao porto de Paranaguá, cinco vizinhas solteiras decidiram organizar uma festa na Ilha da Cotinga. O local escolhido foi a casa da engomadeira Leocádia, e o evento foi produzido com todo o cuidado: elas limparam o terreno, confirmaram a presença de dois tocadores de rabeca e um de harmônica, compraram velas em quantidade suficiente para queimar noite adentro, mataram algumas galinhas para o jantar e providenciaram bebidas para os convidados. Trataram até de buscar a “licença” para o ajuntamento das pessoas com o inspetor de quarteirão. Com seus melhores vestidos de chita, estavam prontas para o “fandango” – a festa que era sinônimo de diversão e promessa de namoro.

Mas a noite acabou em tragédia. O excesso de bebida fez com que um dos convidados, o espanhol Antonio Marbano, perdesse a cabeça e atacasse seu compatriota Luiz Rondero com “uma ou mais punhaladas, não se recorda o número, pois achava-se um tanto embriagado...”. O exame de corpo de delito determinou a causa mortis: “uma facada no peito e uma hemorragia aórtica fulminante”.

Esse infeliz desfecho do fandango de Leocádia e suas amigas, ocorrido em 26 de agosto de 1877, não foi um caso isolado. Nos processos criminais da época há vários registros de crimes e confusões em eventos similares. E é justamente graças aos autos policiais que se pode conhecer melhor as facetas daquela pouca estudada manifestação.

Os folcloristas descrevem o fandango como uma música e uma dança típicas das camadas populares praieiras. Quanto à sua origem, há certa controvérsia. Muitos historiadores sugerem que a festa teria raízes ibéricas. Alguns sugerem uma ascendência árabe. Já o inglês Peter Burke identifica a América como berço do fandango, que teria aportado na Espanha por volta de 1700.

O fato é que na Europa a manifestação já carregava um significado pejorativo. Dizia-se, por exemplo, que a mulher nada recusaria ao seu parceiro depois de dançar o fandango. O primeiro Dicionário da Língua Portuguesa, de Moraes e Silva, incorpora em 1813 esta visão negativa, definindo a prática como “certa dança alegre, e algo tanto desonesta”.

Ainda no século XVIII, o fandango aportou no litoral paranaense, assim como em muitas partes do Brasil, por mãos e pés de colonos portugueses. Danças ritmadas com fortes batidas dos pés eram suas características mais marcantes. Alguns instrumentos musicais também eram recorrentes, como a viola, a rabeca e o adufo (uma espécie de pandeiro). O tamanco dos dançarinos, batido sobre tábuas de madeira dispostas no chão da casa, era outra importante fonte sonora. As danças se dividiriam em dois grupos: as batidas e as bailadas – o primeiro se caracterizava pela forte e barulhenta batida dos tamancos em coreografias variadas, executadas pelos homens, enquanto no segundo a dança era feita em pares.



À medida que a população se expandia para o interior do estado e subia a serra, o fandango se fazia presente também nas manifestações da cultura campeira, vinculando-se às festas dos plantios e colheitas e a costumes regionais, como o uso do chimarrão.

Os preparativos iniciais incluíam o convite, feito normalmente pelo “fandangueiro” ou por alguém de sua família, e a obtenção da licença com o inspetor de quarteirão. Os inspetores de quarteirão eram nomeados pelo chefe de polícia e tinham a incumbência de vigiar os moradores de determinada área para o cumprimento da ordem e da tranqüilidade pública. O organizador da festa também precisava comprar uma boa quantidade de velas e, sobretudo, de bebidas. A arrumação e a limpeza do terreiro e da casa e a presença de tocadores de música animados e dispostos a varar a noite complementavam os requisitos necessários a um bom armador de fandango.

Recusar um convite não era atitude vista com bons olhos. Maria do Espírito Santo, lavradora de 30 anos, contou ao juiz que no fandango realizado em 5 de agosto de 1885 na Ilha do Mel, seu amásio Ignácio insistiu várias vezes no convite ao senhor Rodrigues. Chegou mesmo a mandar um copo de aguardente de presente para ele. Mas Rodrigues não acedia. Quando o convidado finalmente decidiu rumar para a casa do fandangueiro horas mais tarde, ambos se agrediram com achas de lenha, acabando com a festa.

O fandango era freqüentado por todo tipo de gente das classes populares. Ali conviviam homens e mulheres de diferentes idades, estados civis e profissões. Ainda assim, no século XIX persistiam certas hierarquias, sobretudo as que opunham livres e cativos, ainda mais no ambiente rural. Em 1859, a lavradora Leopoldina, de 25 anos, foi espancada por seu marido no retorno para casa após um fandango realizado no Rio das Pedras. Segundo alegou o agressor ao juiz, sua mulher deveria ter se retirado da roda em que um escravo se introduzira porque isso seria “indecoroso”.

A festa muitas vezes não tinha hora para acabar. No auto de um homicídio ocorrido em 1869, algumas pessoas chamadas a depor disseram que não poderiam colaborar com a investigação, pois quando o crime ocorreu estavam em uma festa realizada em Serra Negra, na freguesia de Guaraqueçaba, que só terminou às 10 horas da manhã. A longa duração das festas preocupava seus organizadores. Como não podia faltar nada, especialmente bebidas, era preciso armazenar grandes quantidades de mantimentos, o que gerava casos curiosos. Em 1853, Ireno Caetano, temendo que faltasse pinga para os convidados, decidiu roubar Luiz Antonio Mattozo, proprietário de um alambique na localidade de Toral do Ribeirão. Preso, Ireno confirmou que invadiu a propriedade e de lá retirou “uma meia pipa que estava cheia daquelas bebidas e a escondeu na referida casa do fandango”.

O consumo de aguardente, aliás, era o estopim de muitas brigas, inclusive entre indivíduos que sequer se conheciam. Foi o que ocorreu em 1858, na Barra do Sul, quando Francisco Barcellos e Caetano José se desafiaram no interior de um fandango e brigaram na praia, às quatro horas da madrugada. Francisco declarou ao juiz que o motivo de toda a confusão foi o excesso de bebida, fato que “muitas vezes ocorre nessas funções”. Noutra festa, em Guaratuba, a embriaguez também propiciou o conflito iniciado com a agressão verbal sofrida pelo oficial de sapateiro José Moreira – chamado de “bugre”, ele partiu para cima do ofensor. Caiu com ele por terra, e na confusão ainda recebeu da costureira Adriana “uma grande pancada na testa com um tamanco”.

Por essas e outras, os fandangos viraram motivo de preocupação para as autoridades. Regados a cachaça, reunindo negros e analfabetos em encontros que varavam a noite e acabavam na delegacia, não eram eventos bem-vistos pelas elites dirigentes. Elas, além de condenarem a festa em função das questões morais relacionadas à lascívia dos participantes, demonstravam preocupação quanto à capacidade produtiva dos pobres, ameaçada pelos excessos festivos. Só era possível obter permissão para um fandango em território distante dos centros urbanos. Mesmo assim, o fandangueiro corria muitos riscos. Que o diga o lavrador e fabricante de cal Manoel, de 45 anos, residente no rocio de Paranaguá. Ele se viu em apuros na noite de 15 de agosto de 1868, quando organizou um divertimento “em regozijo ao dia da Assunção de Nossa Senhora”. Mesmo munido da licença do inspetor de quarteirão, correram boatos sobre uma possível “reunião sediciosa” em seu fandango. Sua casa foi cercada pelo comandante do destacamento policial da cidade com mais oito ou dez praças, e os poucos fandangueiros, nada “sediciosos”, foram dispersados.

Mas nem sempre a vigilância era tão rígida. Mesmo no núcleo urbano, ambiente em que eram proibidos, as autoridades às vezes faziam vista grossa aos fandangos. Em 1870, uma denúncia de jornal publicado em Paranaguá informava que quase todos os sábados eram realizados fandangos que incomodavam os moradores da cidade a ponto de não poderem dormir. A reportagem terminava com uma cobrança pública: “As autoridades policiais não sabem disto?”

Apesar dessa variedade de casos de polícia, seria uma conclusão leviana imaginar que os fandangos eram necessariamente violentos. Certamente, centenas de festas foram realizadas sem barulho algum além da música e da dança. Mas essas funções não deixaram registros.

Até o século XX, a manifestação foi registrada em diversas localidades brasileiras, costeiras ou não, vinculada a datas religiosas, ao carnaval ou a trabalhos comunitários, nos chamados mutirões ou puxirões. Como bem registrou o historiador Câmara Cascudo (1898-1986), essa dança adquiriu vários sentidos ao redor do país. Nos estados do Norte e do Nordeste, o fandango seria identificado como o bailado dos marujos ou marujada. No Sul, uma espécie de “baile, festa, função em que se bailam várias danças regionais”. Antonio Candido, um dos mais importantes críticos literários do Brasil, refere-se ao cateretê do interior paulista como uma espécie de fandango, com seu sapateado e suas palmas.

E os fandangos ainda resistem no litoral do Paraná. Em algumas comunidades, jovens fandangueiros aprendem com antigos mestres marcadores o poder dos tamancos e continuam fazendo ali um barulhinho bom.

JOSÉ AUGUSTO LEANDRO É PROFESSOR DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA (PR) E AUTOR DA TESE “GENTES DO GRANDE MAR REDONDO: RIQUEZA E POBREZA NA COMARCA DE PARANAGUÁ, 1850-1888” (UFSC, 2003).

Saiba Mais - Bibliografia:

AZEVEDO, Fernando Corrêa de. Fandango do Paraná. Rio de Janeiro: Funarte, 1978.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1954.
PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Semeando iras rumo ao progresso. Curitiba: Editora da UFPR, 1996.
PIMENTEL, Alexandre; GRAMANI, Daniella; CORRÊA, Joana. Museu vivo do fandango. Rio de Janeiro: Associação Cultural Caburé, 2006.
PINTO, Inami Custódio. Fandango do Paraná. Editora da UFPR, 1992.

Saiba Mais - Site:

www.museuvivodofandango.com.br

Na marca do Anu

Os pesquisadores são unânimes em dividir a dança do fandango no litoral do Paraná em dois grandes grupos: as batidas ou rufadas e as bailadas ou valsadas. Para Inami Custódio Pinto, o fandango paranaense tem uma especificidade: enquanto nas outras partes do país ele se manifesta na forma de autos e dramatizações, “no Paraná ele passou a constituir não uma determinada dança, mas um conjunto de danças regionais (‘marcas’) que só sobrevivem integradas dentro do fandango”. Fernando Azevedo explica as diferenças entre as batidas e as bailadas: as primeiras “se caracterizam pelo sapateado forte, barulhento, batido a tamanco ou sapato. Abafam quase completamente a música do conjunto. Esse bater de tamanco se chama em alguns lugares rufar. Nas segundas não há sapateado. São uma espécie de valsa lenta, em que cada dançarino baila em geral com o mesmo par, mais se arrastando do que dançando”. As mulheres não batem fandango. Para Daniella Gramani e Joana Corrêa, as “batidas ou rufadas exigem do dançador conhecimento prévio das coreografias, tal a complexidade das variações. De um modo geral, são dançadas em círculo”. Os temas cantados nas festas relacionam-se com a natureza e o modo de vida caiçara, além de questões amorosas. Folcloristas afirmam que geralmente a marca que abre o fandango, sobretudo na área de Paranaguá, é o “Anu” – o nome, relacionado a um pássaro preto símbolo de mau agouro, no fandango teria função contrária, afastando todo e qualquer azar. Um “Anu” registrado no final da década de 1950 diz o seguinte:

O anu é passo preto,
Passarinho do verão,
Quando canta meia-noite,
Alegra meu coração.

Meu senhô, dono de casa,
Minha fita de nobreza,
Pra cantá em sua casa,
Canto com delicadeza

Outra marca sempre citada pelos pesquisadores é a “Chamarrita da Louvação”, cantada em agradecimento ao fandangueiro dono da casa onde ocorre a festa. Alguns citam ainda o “Recortado”, que em certos lugares encerra a função, com pedaços das diversas danças executadas na festa. A origem de muitas músicas cantadas no fandango se perdeu no tempo e não há autoria conhecida.

O fandango vive

O nome diz tudo: o Museu Vivo do Fandango trabalha para não deixar essa expressão cultural cair no esquecimento. A idéia é unir os esforços de uma rede de instituições, grupos e pessoas ligadas ao fandango em um circuito de visitação com diversos atrativos culturais nos municípios de Paranaguá, Morretes e Guaraqueçaba (litoral norte do Paraná), Cananéia e Iguape (litoral sul de São Paulo). Patrocinado pela Petrobras, o museu não tem sede única – está distribuído pelas cidades, evolvendo casas de fandangueiros e fabricantes de instrumentos, clubes e casas de fandango, lojas de artesanato, museus, centros culturais e pontos de consulta. Os endereços estão listados no site www.museuvivodofandango.com.br, onde os visitantes também podem acessar diversos materiais sobre o fandango, como livros, CDs, teses e vídeos. (Equipe RHBN)

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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