domingo, 24 de maio de 2009

Paraísos Medievais – esboço para uma tipologia dos lugares de recompensa dos justos no final da Idade Média

Paulo Roberto Soares de Deus (UnB)
Este artigo tem por objetivo refletir sobre as concepções medievais acerca do Paraíso, e mais especificamente estabelecer uma tipologia mínima dos lugares que esta palavra designava na Baixa Idade Média. Esta não pretende ser definitiva, tendo em vista que ao longo do medievo a ambivalência dos símbolos era a única constante possível em suas leituras.
Antes de mais nada, é importante ressaltar que o Paraíso era um símbolo, um elemento que ligava os homens a Deus, cuja descrição sempre era plena de alegorias e tinha, acima de tudo, um sentido moral e edificante. Mas isto não implica que o símbolo não possuísse existência concreta. Para os medievais toda a Criação era obra da Sabedoria Divina, assim, tudo o que havia no mundus correspondia a um sentido específico atribuído pelo Criador. A própria palavra mundus que, como substantivo, traduz-se por Universo, também podia ser lida como adjetivo e significar beleza e ordem. Toda a organização do cosmos correspondia aos desejos de Deus e a uma ordem pré-estabelecida. O Universo era percebido como uma casca fechada, finita, formada pela Terra e as demais esferas celestes, circundadas por um campo de estrelas, além do qual estava o Empíreo, lar da Substância Divina. Comparações do Universo a um ovo eram relativamente comuns nos tratados de cosmologia do período, como por exemplo na Semeiança del mundo, texto ibérico do século XIII que se define como uma cópia do Líber Mapa Mundi de Santo Isidoro, e diz: “Mundus atanto quiere dezir de toda parte mouido, por razon que se mueue; e la semeiança del mundo es em semeiança de pella et es em semeiança de ovo” (BULL & WILLIAMS, ed., 1959: 52). Dentro deste espaço apertava-se toda a Criação, todas as estrelas, planetas, continentes, ilhas, cidades, plantas e animais, todos os elementos.

“pero es departida por sus helementos; et assi como el uevo es cercado de cassco, e de dentro acerca del cassco es encerrada la albura, desi acerca del abura es la gema e e[n] medio de la iema es otro poco, asi como gota de sangre quaiada. Otrossi el mundo a essa semeiança: es cercado de toda parte del cielo e ... es encerrado purus ether, que es aquel elemento que nos llamamos fuego, assi como la albura es acerca del cassco; desende el ayre acerca del fuego segundo que es la gema acerca de la albura; desende es cercada la tierra del ayre, assi como la gota es uermida en medio de la gema” (Idem, Ibidem).

A disposição do cosmos pode ser vista em ilustrações de livros do período, como as Crônicas de Nuremberg ou no Liber Divinorum Operum de Hildegarda de Bingen.

Figura 1: Liber Divinorum Operum. Hildegarda de Bingen, século XII. A disposição dos quatro elementos, fogo, ar, água e terra


Figura 2: Das Buch der Croniken, Hartmann Schedel, Nuremberg, 1493. In-fol. BNF, Réserve des livres rares, Rés. G.505. As esferas concêntricas que formam o mundus


Tudo estava disposto em uma ordem e em um específico lugar pela Sabedoria de Deus, cada coisa com um propósito e um sentido. O mundo era como um vasto livro, que deveria ser lido e interpretado. Neste livro havia um capítulo para a Salvação e a Recompensa dos Justos, feita no Paraíso. Este precisava, pois, ocupar um espaço no cosmos. Mas sob esta palavra encontravam-se realidades distintas – sentidos distintos. A cada sentido o Paraíso adaptava-se. A cada prédica a descrição deste lugar de recompensa plasticamente transformava-se e se adequava ao significado que deveria carregar. Ao contrário do que dizia Barthes (2001: 179), o significado era o significante. Esta plasticidade, natural e esperada nos símbolos, não implica na impossibilidade de rastrear e estabelecer uma caracterização geral. Guarde-se, apenas, que esta será sempre ideal, marcará as margens do símbolo, mas nunca seu volume ou seu curso.

1. Sociedade e focos culturais na Baixa Idade Média

A Idade Média, ao longo de seus mil anos, apresentou períodos de crescimento e decadência de meios materiais, com conseqüentes variações sociais. Assim, não se pode falar em sociedade medieval, mas em sociedades que se seguiram no tempo. O alvorecer do século XII presenciou o nascimento de uma nova sociedade, no entanto e obviamente, gestada nos séculos anteriores.

Um período de crescimento demográfico e produtivo já vinha se consolidando desde meados do século X. Assim, o Ocidente finalmente começou a sair do período de decadência produtiva e populacional que se iniciou ainda no processo de desagregação do Império Romano. Com este implemento em suas capacidades, no final do século XI a postura defensiva do Ocidente também mudou, pois de agredido passou a agressor, com o início do movimento das Cruzadas.

O século XII nasceu com as Cruzadas, talvez seu evento mais dramático, mas certamente não o único de relevância à História. Neste mesmo século ocorreu o surto de urbanização medieval e o nascimento das universidades, criando ambientes onde a produção cultural foi dinamizada. Necessitava-se mais da escrita, tanto para o controle contábil das atividades mercantis e da tesouraria real como para se conhecer as obras de filósofos clássicos e padres da Igreja, estudados nos Studia Generalia. Paralelamente a esta ‘literatura profissional', a quantidade de contos e histórias de reis, magos e batalhas também aumentou, não apenas com a função de narrar a história das comunidades, mas também de divertir e educar um conjunto social que se diversificava, ampliava e ganhava relevância na criação de produtos e manifestações culturais que escapavam da oralidade plena, os leigos.

Walter Ong (1998) estabelece dois tipos básicos de oralidade. A oralidade primária, de sociedades completamente ágrafas, e a oralidade secundária, de sociedades em que as manifestações orais ocorrem submetidas às regras da escrita. No primeiro tipo de oralidade as palavras não se submetem à subjetividade, sendo percebidas como inseparáveis da realidade a que se referem – tornam-se análogas às coisas que pretendem representar. O caráter analógico do pensamento medieval foi ressaltado por Franco Jr. (2003) como padrão necessário para se entender os procedimentos de interpretação dos símbolos do período. Ainda neste tipo de oralidade, a palavra precisa ser ritualizada, caso contrário seria dominada pela subjetividade de seu pronunciador. A exigência do ritual resulta numa certa anulação do tempo. A palavra falada é sempre aqui e agora, refere-se sempre a uma atualização. O passado ainda existe, mas seus contornos tornam-se menos delineados e sua inserção no presente é muito forte. Já a oralidade secundária separa a palavra de sua enunciação vocal. O texto passa a existir em um contexto próprio, independente do falante. Do mesmo modo o tempo pode espraiar-se por limites mais amplos. Sua própria percepção muda, pois passa a reproduzir a maneira sintagmática da organização das idéias e palavras em um texto escrito – se as idéias e palavras obtêm seu sentido da seqüência em que se inserem, o próprio tempo passa a se organizar de uma maneira seqüencial. Os limites entre passado e presente tornam-se mais delineados.

Paul Zumthor (2001) considera que para a Idade Média pode-se falar em uma oralidade mista, onde formas plenamente orais conviviam com a escrita. Toda a organização do pensamento medieval passa pela tensão entre estes dois tipos de oralidade. Entendê-la como ‘mista' não implica compreender a lógica dos medievais como uma soma de elementos das duas oralidades nem como um equilíbrio entre ambas – num falso ‘caminho do meio'. Todavia, a estrutura mental dos medievais submetia-se à constante tensão entre duas maneiras diferentes de ordenar as idéias e de apresentá-las. Na oralidade mista a vocalização é inseparável dos sentidos das palavras (ZUMTHOR, 2001) – o texto escrito ainda não é plenamente autônomo, mas sua existência já sugere que a vocalização se submete a limites cada vez mais estreitos, sem a necessidade de grandes ritualizações, e também a uma lógica cada vez mais linear ou sintagmática. Nestas diferentes oralidades assentava-se a grande divisão cultural do medievo. Em grande parte da Idade Média a escrita foi um quase monopólio do clero, restando aos leigos apenas as manifestações orais. A partir do século XII, porém, dinamiza-se um processo em que os leigos começam a abandonar um padrão cultural dominado pela oralidade primária e passam a seguir modelos inseridos numa oralidade mista. Não só o padrão cultural dos leigos muda como seus produtos passam a ganhar longevidade em suportes escritos.

Tradicionalmente estabelece-se que os medievais se dividiam em duas ordens básicas, os clérigos e os leigos. Por volta do século X, contudo, com as alterações promovidas pela crescente feudalização, surgiram propostas que estabeleceram as célebres três ordens, os oratores, os bellatores e os laboratores (LE GOFF, 1985: 75-84). As diferenças entre as duas últimas, porém, diziam mais a respeito ao grau de liberdade e poder que às habilidades culturais, crenças e valores. Neste ponto, o fosso alargava-se entre aqueles que integravam o clero, e seguiam seu peculiar estilo de vida em que as letras tinham presença importante, e aqueles que não o integravam, e em que as letras tinham uma presença secundária. Havia, pois, um foco cultural letrado e outro iletrado, mas que compartilhavam o mesmo campo de cultura. É claro que as realidades idiossincráticas denunciam este esquema por seu simplismo, mas em termos gerais era esta a grande divisão cultural do medievo.

O verdadeiro fervilhar intelectual do século XII foi acompanhado por um crescimento da atividade cultural laica. A cultura letrada começou a deixar de ser um privilégio do clero. Com o enriquecimento provocado pelo comércio e o crescente fortalecimento das monarquias (ou a crescente busca por este fortalecimento), os segmentos laicos da sociedade passaram, se não a produzir mais, ao menos a apresentar seus próprios produtos culturais em suportes mais duráveis. Jacques Le Goff fala em impulso folclórico (1985: 259) para este momento em que características, representações e manifestações culturais leigas ganharam visibilidade. Para ele a cultura medieval se dividia em dois estratos básicos, a cultura clerical e as tradições folclóricas (LE GOFF, 1985: 207-219). A primeira corresponde à produção intelectual realizada no interior dos meios eclesiásticos; a segunda seria a produção de fenômenos culturais por parte dos segmentos não eruditos (portanto iletrados) da sociedade. De determinados pontos de vista, como aspectos da ideologia e da maneira de vivenciar o cotidiano, estas culturas apresentavam oposições, mas do ponto de vista religioso o cristianismo as unia (FRANCO Jr., 1996: 73). Apesar de diferentes em suas realizações, estas culturas compartilhavam um fundo comum de crenças. A preocupação com a Salvação da alma era um dos pontos de coesão.

Partindo-se do pressuposto que a escrita, a pintura e a escultura, assim como outras modalidades da produção de artefatos de cultura, estavam sob controle mais ou menos estrito do clero, a cultura folclórica define-se pela negativa, pois seria toda a produção cultural que transcorresse fora dos meios clericais, ou fora de sua tutela direta (LE GOFF, 1985: 207-219; 221-261).

O impulso folclórico marcou o século XII como uma reação da cultura laica contra a hegemonia dos padrões clericais. De certo modo, ainda marcada por elementos pagãos, a cultura folclórica teria feito reviver ou dado novo ânimo a materiais pré-cristãos. Contudo, esses elementos persistiam de uma forma quase apenas literária, pois o processo de cristianização do Ocidente, iniciado ainda na Antigüidade, já havia alterado seus significados e funções originais. A reação folclórica (termo posteriormente preferido por Le Goff) teria se constituído em uma relativa ‘paganização', ou inserção de elementos não-estritamente-cristãos das crenças populares em fenômenos culturais cristãos mais ortodoxos (LE GOFF, 1990: 19-37). Quase um processo inverso à cristianização de lendas pagãs por parte dos clérigos ocorrida nos séculos anteriores, num esforço de facilitar a conversão. A reação não tinha, todavia, um caráter de planejamento, constituindo-se no surgimento natural de um novo padrão de construção cultural.

O fortalecimento dos segmentos laicos da sociedade medieval e os novos padrões culturais desenvolvidos neste processo trouxeram consigo alterações na espiritualidade. A Salvação sempre foi a grande dúvida e o grande sonho da cristandade medieval, mas esta foi por muito tempo entendida como coletiva; um povo – o povo escolhido – seria salvo, e este povo obviamente deveria ser constituído pelos seguidores do cristianismo. Todavia, nem todos os cristãos teriam sua Salvação assegurada. Todos os homens e mulheres são culpados pelo Pecado Original, que mesmo redimido por Cristo em Seu sacrifício na cruz, nunca deixou de fazer parte da natureza humana, assim, era muito fácil perder o caminho para o Reino dos Céus, bastava ao homem cair em tentação e dar vazão a seus desejos, naturalmente pecaminosos. A Salvação era garantida quase exclusivamente aos que possuíam uma vida beatífica, a saber, os clérigos, já que o ascetismo era o caminho a ser seguido por quem buscasse o Paraíso (ZIERER, 2002: §4). A vida dos leigos era marcada pela angústia da iminente Condenação – o que se amplia com a Reforma religiosa do século XII, quando a Igreja delimitou mais rigidamente suas fronteiras com o saeculum, provocando em retorno uma laicização da sociedade. Os maiores espaços sociais conseguidos pelos leigos se refletiram na busca de novos e maiores espaços religiosos, que deveriam caber na vida mundana dos não-clérigos. No século XII buscavam-se novos ambientes de atuação religiosa, cada vez mais próximos do mundano (BOLTON, 1986; VAUCHEZ, 1995). A preocupação com a Salvação crescia.

A dúvida se o destino do indivíduo seria o Céu com suas delícias paradisíacas ou a danação no fogo do Inferno não abandonava a mente do crente, do mesmo modo a lembrança do Pecado Original, o crime que marcou a origem da humanidade, e suas conseqüências, sendo a mais grave a própria perda da condição edênica de pureza e quase perfeição. Com a Queda, as portas do Céu se fecharam aos homens, e se abriram as do Inferno. Mas Cristo trouxe a mudança. Com sua morte na cruz o Paraíso foi reaberto. “[Jesus] abriu-nos a entrada do Paraíso, donde Adão fôra expulso...”, Santo Atanásio (Expositio Fidei. 1: Patr. Gr., t. 25: 201, apud. Delumeau, 1998: 40), “Deus abriu-nos hoje [dia da crucificação] o Paraíso fechado há mais de cinco mil anos”, João Crisóstomo (De cruce et ladrone. Patr. Gr., t. 49: 401, apud. Delumeau, idem).


Figura 3: A ilha do Paraíso Terrestre no mapa-múndi de Hereford, final do século XIII. Cópia facsimile, Wychwood Editions. Vê-se Adão e Eva diante da árvore do conhecimento, falando com a serpente. Fora do paraíso, logo abaixo e à direita, vê-se um anjo com uma espada ameaçando o Primeiro Casal que, em atitude submissa, afasta-se. O paraíso está em uma ilha, é cercado por muros e uma parede de fogo – o retorno parece impossível.


Entretanto, dúvidas se punham: qual seria o momento do Julgamento? Mesmo sendo a Salvação coletiva, o Julgamento também o seria? Em Lucas, cap. 23 ver. 43, Jesus promete ao ladrão que estava sendo crucificado a seu lado “hoje estarás comigo no Paraíso”, o acesso ao Céu seria, portanto, imediato. Mas em Mateus, cap. 25, ver. 31-32-46, está escrito “Quando o Filho do Homem vier em sua glória [...] serão reunidas em sua presença todas as nações, e ele separará os homens uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos [...] e irão estes [os pecadores] para o castigo eterno, enquanto os justos irão para a vida eterna” (itálicos conforme edição consultada da Bíblia), então a bem-aventurança só seria conseguida com a Segunda Vinda de Cristo. Aqui se abriu uma possibilidade para interpretações diversas, mas a predominante foi a que diferenciou o Paraíso ‘Reino de Deus' (a vida eterna de S. Mateus), criado apenas para os justos depois do Julgamento Final, do Paraíso ‘lugar de espera', reaberto por Cristo na cruz. Entretanto, essa posição, apesar de predominante, não era consensual, alguns autores não faziam esta diferença, vendo nos dois Paraísos apenas um, como João Damasceno (Homilia III: Patr. Gr., t. 96, cf. Delumeau, idem). Estes textos foram produzidos entre os séculos V e VIII, em grego e latim, baseando-se nas concepções anteriores e servindo de base para as reflexões teológicas posteriores.

De qualquer modo, os tratados religiosos, escritos em latim, estavam por demais afastados da população em geral. Como ficavam os indivíduos leigos e iletrados, inseguros de seu destino no pós-morte? Era necessário, então, recorrer à sabedoria popular, ou seja, ao conjunto das tradições pré-cristãs, aos mitos e sagas contadas geração após geração (GUREVICH, 1982). No entanto, estas histórias haviam passado por uma reelaboração feita pelo pensamento cristão da Alta Idade Média, uma vez que foram usadas conscientemente pelo clero com finalidade de catequese ao se buscar similaridades formais em que os dogmas cristãos pudessem encontrar espaço (LE GOFF, 1994: 142). As imagens criadas a partir destas histórias (ou mitos) agora pertenciam a um sistema de pensamento eminentemente cristão, em que pese as diferenças entre o cristianismo letrado e o iletrado (BROWN, 1999).

Esse processo foi explorado por Le Goff que o dividiu em três fases (1985: 213-214), a destruição, que era a atitude básica do clero em relação aos temas propriamente folclóricos, a obliteração, que era a substituição dos elementos folclóricos por clericais, e finalmente a desnaturação, que era a mudança de significado dos temas folclóricos e sua nova leitura definitivamente cristã. Exemplos deste processo podem ser vistos na Cruz de São Patrício, que incorpora um elemento solar, assim como a data de 25 de Dezembro, ou na carta do papa Gregório Magno ao abade Melito, de 601, inserida por Beda na História Eclesiástica das Gentes dos Anglos (STEVENSON, ed., 1964: 79-80). Nesta carta o papa recomenda que os templos pagãos não sejam destruídos, apenas as imagens de deuses em seu interior, que deve ser aspergido com água benta pois “é necessário que se convertam do culto aos demônios para o culto ao verdadeiro Deus” [necesse est ut a cultu daemonum in obsequium veri Dei debeat commutari]. Assim, para a difusão das idéias essenciais da religião cristã foi necessária a manutenção de elementos formais de crenças não cristãs. Nas narrativas de viagens e visões do Além se encontram as características do Paraíso e os significados que formam o significante. Estas são permeadas por elementos de diversas origens, mas que se articulam em um todo coerente capaz de aproximar tradições tão diferentes como a letrada cultura do clero e a iletrada cultura das massas camponesas – pertencem ao mesmo campo, mas articulam-se de maneiras diferentes.

2. Narrativas, visões e o Além

Um dos mais populares gêneros da literatura medieval, justamente porque se utilizava largamente da herança pré-cristã, eram as histórias de viagem e visões do Além. Jacques Le Goff organizou um “esboço para uma história sociocultural das viagens ao Além” (1994: 142), onde caracteriza os séculos VII a X como de filtragem e cristianização destas histórias, e os X a XII como a revanche, quando os leigos se utilizaram destas histórias cristianizadas e as coloriram com elementos para satisfação de necessidades mais mundanas que a conversão, como a mera diversão ou a transmissão de mensagens morais, não de fundo puramente religioso, mas ligadas à sociedade cavaleiresca e a valores como a fidelidade e a coragem.

Mas não devemos, contudo, crer que a cristandade só utilizou estas histórias por inspiração de narrativas pagãs, desde sempre os cristãos possuíram histórias para glorificar seus mártires, levantar o moral e passar ensinamentos. Uma das mais antigas visões é a Narrativa de Zózimo, escrita no século III. O eremita Zózimo jejuou por quarenta anos no deserto e pediu para que Deus o permitisse ver a vida dos bem-aventurados, ou seja, daqueles que desfrutam dos prazeres do Paraíso. Foi levado por um anjo até as margens de um rio, cujas águas lhe falaram que nenhum homem pode atravessá-las, e uma nuvem lhe repetiu o mesmo, afirmando que nem mesmo a luz do sol por ali podia seguir. Zózimo ajoelhou-se e rezou. Como resposta à sua súplica, uma árvore se curvou e o levou para o outro lado. Na outra margem encontrou um homem despido que disse ser um dos abençoados e o levou ao encontro dos outros, que lhe contaram seu modo de vida, sem pecado. Zózimo voltou à sua caverna e após viver mais trinta e seis anos os anjos de Deus o levaram “como aos bem-aventurados” (Cf. tradução de ROBERTS & DONALDSON, 1951).

Outra história do século III narra a visão que Víbia Perpétua teve em sonho. A mártir foi uma cristã que viveu em Cartago até o dia 7 de Março do ano 203, quando foi martirizada com 21 ou 22 anos de idade. Antes de sua morte, no entanto, descreveu a seu pai uma visão. Em um espaço sem limites claros, viu diante de si uma escada de bronze que se erguia até o céu e levava a um grande jardim. A escada era ladeada por lâminas de todo o tipo e subi-la deveria ser feito com cuidado. Abaixo da escada havia um enorme dragão, que ameaçava os que caíam. Após subir a escada, evitando ser mordida pelo dragão, Perpétua viu um homem em roupas de pastor sentado em um trono e havia a seu redor milhares de pessoas que vestiam branco e rendiam graças a Deus (Cf. tradução inglesa de W. H. Shewring, reimpressa por Sara MAITLAND, 1996).

Além destas visões, poucas foram produzidas nos séculos iniciais do cristianismo. Após o século III há quase uma estagnação quanto a este tipo de literatura, que só reaparece depois do século VII, nas obras de Beda e São Bonifácio (PATCH, 1956: 40 e ss.). Contudo, este período de estagnação não foi estático, pois correspondeu ao momento de conformação e mistura dos elementos cristãos e pré-cristãos do Ocidente, formadores de um novo substrato que, por sua vez, originou os relatos escritos posteriores e a nova geografia do Além – uma geografia originalmente medieval. Apesar disso, Le Goff considera ter havido uma “aparente estagnação da reflexão sobre o Além”, que se estenderia até o início do século XII (1993: 121-125). Ao fazer esta afirmativa, o medievalista francês estava pensando em seu objeto de estudo àquela altura, o Purgatório, que não identifica nos relatos acerca do Outro Mundo daquela época, por ele caracterizada como produtora de uma série quase ininterrupta de viagens e visões do Além, mas “destinada a um novo auditório com mais apetência por pitoresco do que por esclarecimentos” (Idem: 122). É, todavia, este mesmo autor quem chama a atenção para que naquele período “se pode seguir a constituição de um material imaginário, vê-lo enriquecer-se ou decantar-se” (Idem, ibidem). Constitui-se, assim, naquele momento, um núcleo duro de elementos que se repetiram em todos os relatos visionários acerca do Paraíso: o clima sempre agradável, árvores opulentas, um ou mais rios, uma fragrância deliciosa no ar, uma barreira que o aparta do mundo, um jardim e ... a morte. O paraíso não é para os vivos, apesar de ser para os homens.

Os mortos devem, contudo, esperar uma permissão pois as delícias do Éden não se destinam a todos os homens. A entrada no jardim das delícias só é permitida aos que a merecem. Mas uma dúvida persiste: quando ocorre o julgamento, logo após a morte do indivíduo ou só com a Parusia? De acordo com Philippe Ariès (1985), a partir de estudos das representações iconográficas da Alta Idade Média sobre o fim dos tempos, a idéia de julgamento individual não existiria, pois todos os cristãos seriam salvos, cabendo a punição eterna apenas aos pagãos. O Julgamento individual só passaria a ter importância a partir das representações posteriores ao século XII, quando a noção de indivíduo, como ser para si e apartado de sua comunidade, teria se formado e a biografia passado a se ligar à idéia do Julgamento.


Figura 4: Os portões de Jerusalém Celeste, para onde se encaminham os Salvos, após o Julgamento Final quando se levantam de seus caixões. O cortejo é guiado por um anjo. Vê-se os portões abertos, um alto muro, mas não se vê o interior. Mapa-múndi de Hereford, facsimile, Wychwood Editions.

Aron Gurevich (1982) considera que a perspectiva de Ariès é parcial, pois teria privilegiado como fontes os “teóricos da teologia” (Idem: 158), o que lhe permitiria contemplar apenas o segmento erudito da sociedade, faltando-lhes analisar as crenças populares. Um caminho para um estudo que levasse em conta essas crenças foi seguido, ainda segundo Gurevich, por Hughes Neveux ao comparar as respostas dadas por habitantes de Montaillou à Inquisição concernentes a suas concepções do destino humano após a morte (no fim do século XIII/início do XIV) com as manifestações correspondentes encontradas na Legenda Dourada, escrita por Jacopo de Varazze em meados do século XIII. Compilação de histórias escritas em diversas épocas, a obra de Varazze teria o mérito de não as misturar e não as modificar pois teria sido fiel às suas fontes, o que permitiria uma visão de conjunto das concepções medievais acerca do Além (NEVEUX, 1979: 248-249). A confrontação destas duas fontes permitiu a Neveux encontrar um “fundo comum de crenças” (Idem: 257) acerca do imediato pós-morte na Idade Média, que seriam: 1) a biografia do indivíduo não termina com o seu passamento, se prolongando por um Outro Mundo; 2) com a morte a alma padece de sofrimentos pois atacada por demônios; esses sofrimentos só podem ser evitados pela Salvação, ou entrada no Paraíso, definida negativamente, pois seria a ausência dos problemas terrestres e do sofrimento provocado por demônios, mas deixa em aberto a questão de quando o julgamento que garante a salvação se processa.


Figura 5: Combate entre anjo e demônio pela alma de um morto. Mss. latino 9471, f. 159, BNF. In: DUBY, Georges. Ano 1000 – ano 2000: na pista de nossos medos. São Paulo: Unesp, 1997.

Hughes Neveux defende a existência de duas tradições quanto à definição do que é Salvação: o Repouso e a Assunção. A primeira se definiria como um sono ou uma espera inerte até a Segunda Vinda de Cristo, exemplificada dentro da Legenda Dourada pela história de uma mulher que, não querendo contar seu pecado a ninguém, dada sua gravidade, recebe conselho de Sancto Johanne Eleemosinario (São João, Esmoler, na tradução de Hilário Franco Jr.) para o escrever em um bilhete e lacrá-lo para que só ele o leia. Ela o faz imediatamente, mas o santo morre deixando-a desesperada imaginando que outro leria sobre seu pecado. A mulher visita sua tumba onde suplica e chora até que São João lhe aparece e diz onde guardou o bilhete para que ela possa recuperá-lo, não sem antes recriminá-la por tê-lo tirado de seu repouso dizendo-lhe “por que nos incomoda tanto e não permite a mim ou aos santos que se encontram comigo que repousemos?” (na tradução francesa de Neveux, idem: 254, a tradução brasileira de Franco Jr., 2003: 204, diz “por que nos importunar assim e não nos deixar repousar, eu e os santos que estão comigo?).

Na segunda tradição, as almas seriam levadas por anjos que as protegeriam do assalto de demônios que as quereriam para si. Para a corroborar esta tradição existe a história narrada por Beda (Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum, Livro V, cap. XIII), de um leigo que, nunca tendo confessado ou se arrependido de seus pecados, caiu doente. Em seu leito foi visitado pelo rei Conrado, seu amigo, que o exortava a se arrepender e confessar, mas o doente, com terríveis dores, se recusava. Não queria que acreditassem que o faria apenas por medo da morte. Beda afirma que esta aparente bravura já era resultado de uma atuação do demônio. Quando de uma segunda visita, o rei viu seu amigo ainda mais debilitado e choroso, afirmando que agora via toda a extensão de seus pecados e que nada mais poderia ser feito por ele. Diante de tal quadro o rei pergunta qual o sentido daquele desespero, ao que o homem responde ter sido visitado por dois belos jovens de branco, um se pôs aos pés da cama e o outro atrás. Um deles lhe deu um pequeno e curioso livro para ler. Nele estavam contidas as suas boas ações, que eram poucas e de pouca monta. Quando terminou de ler, eles recuperaram o livro e permaneceram em silêncio. Neste mesmo instante, com barulho e estardalhaço, entraram no quarto vários demônios, o mais assustador de todos, aparentemente o chefe, tomou um livro de grande tamanho e inacreditável peso, deu-o a um dos seus para que o entregasse ao homem para ler. Era o livro de seus pecados. Não só as más ações que cometeu, mas mesmo seus pensamentos estavam escritos em letras negras. O chefe dos demônios se dirigiu rispidamente aos dois homens de branco perguntando o que faziam lá, pois o leigo era deles. Os dois homens concordaram, afirmando que ele deveria ser levado e acrescido ao número dos condenados. Depois disto desapareceram. Dois demônios espetaram-lhe tridentes em sua cabeça e nos pés, que agora doíam de maneira inacreditável. Naquele mesmo dia o homem morreu.

Histórias como estas duas eram contadas e repetidas ao redor de fogueiras e em púlpitos, tinham a função de divertir a comunidade e educá-la. Por meio delas, e dos exempla, as verdades do cristianismo eram transmitidas à população leiga. Portanto, estas histórias refletem as concepções populares medievais acerca do pós-morte, uma vez que se constituíam em intermediários culturais (Gurevich, 1985; 1988). A partir delas se percebe que, apesar de certa ambigüidade, o destino individual é decidido logo após sua morte, pois, do mesmo modo que o leigo recebeu sua merecida punição, poderia ter ganho o Paraíso caso o livro de suas virtudes tivesse sido maior que o de seus pecados. A entrada no paraíso é tão imediata quanto a entrada no Inferno. Lembremos Zózimo, que tão logo faleceu foi levado por anjos para a terra dos bem-aventurados, ou da promessa contida na Visão de Perpétua.

Mas qual a relação entre o Paraíso alcançado após a morte e o Paraíso de onde foram expulsos Adão e Eva? A que Paraíso se referem as visões e as viagens? É ainda Hughes Neveux que identifica três temas: o Palácio, o Jardim, e a Jerusalém Celeste, todos insistindo no “prazer de um paraíso conhecido como um lugar de delícias” (op. cit.: 256) e oposto ao Inferno, um lugar de tormentos. A identificação daquele lugar de delícias com o antigo lar de Adão e Eva foi feita por poucos autores medievais (DELUMEAU, 1998: 41 e ss.). O paraíso aberto aos mortos não se encontrava neste mundo, diferentemente do Jardim do Éden, antes de tudo um Paraíso terrestre. Perpétua viu uma escada que a levaria à companhia de Cristo nos Céus; em uma outra história muito popular na Idade Média, a Visio Pauli (ou o ‘Apocalipse de Paulo'), São Paulo fio elevado ao terceiro céu (CAROZZI, 1994: 186-263) para ver as delícias que aguardam os Santos após a morte. Julião de Toledo, no século VII, distingue dois paraísos, um terrestre e outro celeste, esse último equivalendo ao seio de Abraão, ou seja, ao lugar de descanso dos justos. Dante Alighieri na Divina Comédia, obra literária por muitos críticos considerada uma síntese de todo o pensamento medieval, adota a mesma diferença entre um paraíso terrestre e um paraíso celeste, no primeiro, teriam vivido Adão e Eva e estaria vazio, e no segundo os justos compartilhariam da presença de Deus. Apesar de próximos esses dois paraísos estariam separados.


Figura 6: Dante segurando exemplar de sua Commedia. Vê-se à sua direita o Inferno, para onde se encaminham os Danados. Atrás está o Monte Purgatório, no topo do qual o Paraíso Terrestre – nele se vêem duas figuras, uma masculina e outra feminina. Acima estão as esferas que Dante percorre no Paraíso Celeste. Afresco de Domenico Di Michelino, 1460. Museo dell'Opera del Duomo, Florença.

A Bíblia abre e encerra-se com o Paraíso. O primeiro é o Jardim do Éden, o último a Jerusalém Celeste. Estas duas representações refletiriam as diferentes sociedades que lhes deram vida literária. O primeiro nasceu nas sociedades agrárias do Oriente Médio e o último na civilização greco-romana (FRANCO Jr., 1992: 113). Na Idade Média estes dois paraísos inseriram-se num debate marcado por diferentes concepções de tempo. De um lado o tempo cíclico, da cultura popular medieval, de outro um tempo linear, mais palatável aos letrados (Idem: 114). Os iletrados tendiam, segundo Franco Jr. (op. cit.), a acreditar que o Paraíso do Fim dos Tempos era igual ao do Princípio. Como exemplo podemos tomar o Paraíso descrito na Viagem de São Brandão. Nesta famosa história, o santo irlandês que viveu na segunda metade do século V partiu de sua ilha e, após sete anos, alcançou a Terra Repromissionis Sanctorum, a terra de recompensa [contrapartida] dos santos. Sua primeira versão escrita data do século X, tendo sido traduzida em diversas línguas vernáculas. Na narrativa, quando Brandão chega ao Paraíso, sua entrada foi inicialmente barrada, mas após algumas orações seu acesso foi permitido. Após caminhar pelo Paraíso por um determinado tempo sem encontrar mais ninguém além de sua guia, é informado que daquele ponto em diante não poderão mais seguir pois sua matéria bruta não suportaria a sutileza do ambiente destinado aos justos no pós-morte. O lugar físico do Éden é idêntico ao lugar de recompensa. A separação é interna, talvez já um efeito da racionalização emprestada pelo texto escrito. Infelizmente, o único meio de acessar as concepções iletradas do período é por meio dos textos escritos pelos clérigos ou sob seu padrão cultural. Gurevich (1988) considera que, apesar das alterações promovidas pelo clero nas concepções populares, sua busca de comunicação com a massa iletrada garantia a inserção de elementos das concepções destes em seus textos. Para se conhecer as concepções populares do medievo acerco do Paraíso deve-se buscar estes textos e decantar os elementos estritamente clericais. Como a viagem de são Brandão tornou-se obra de grande popularidade – conhecem-se mais de cem manuscritos da narrativa, entre latim e vernáculo – certamente compartilhava com seus leitores muitos elementos da compreensão popular do que era o Paraíso.

A concepção dos letrados apresentava uma separação mais clara entre o Éden e o lugar de recompensa, vide a Commedia de Dante. O poeta florentino, após sair da ‘floresta escura', atravessa com a ajuda de Virgílio o Inferno, o Purgatório e chega ao Paraíso. Nos últimos cantos do Purgatório, Dante alcança o Éden, separado por uma muralha de fogo, que atravessa com a ajuda de um anjo (canto XXVII) e por um rio, que atravessa com a ajuda de uma dama (canto XXVIII). Lá vê uma procissão maravilhosa (canto XXIX) que antecede a chega de Beatriz (canto XXX). Virgílio desaparece e, após se purificar nos rios Letes e Eunoé, Dante é levado por Beatriz ao Paraíso Celeste, cuja direção é clara, a mesma das estrelas. O Jardim do Éden era, como em Brandão, a entrada para o lugar de recompensa dos justos, mas sua separação era muito mais clara. O letramento passou a se tornar mais comum ao fim da Idade Média com o avanço de modalidades mistas de oralidade, com isso, naquele momento o Paraíso passou por uma racionalização que reforçava os elementos de linearidade temporal de sua concepção, como conseqüência da consolidação de maneiras cada vez mais sintagmáticas de ordenar as idéias e apresentá-las.

3. Os três Paraísos

O jardim plantado por Deus no Éden foi o lar de Adão e Eva até sua expulsão. Em sua porta foi colocado um anjo que, com uma espada de fogo, não permitia e entrada de ninguém. Esse mesmo lugar se encontrava sobre a terra, assim o atestavam várias histórias, entre elas, a das conquistas de Alexandre e a Viagem de São Brandão (JEAN, 1994). As diversas modalidades de literatura concordavam com isso, incluindo aqui até os textos escolásticos. São Tomás de Aquino, na questão 102 da primeira parte da Suma Teológica afirma possuir o Paraíso Terrestre duas naturezas, uma alegórica e outra material.

A narrativa do Gênesis na Bíblia dá as características do Paraíso Terrestre, e coloca sua criação se dando ao mesmo tempo que a criação do Universo. Já o Paraíso Celeste possui uma outra data de nascimento, a crucificação de Cristo. O Homem só pôde voltar ao convívio divino no Além após o sacrifício de Jesus Cristo. A partir deste evento o Paraíso Celeste passaria a participar da História, e, apesar de sua extrema proximidade com Deus, o tempo ainda é um de seus elementos constitutivos. Este lugar está em constante processo de mutação, quer seja pelas almas que lhe acessam quer seja pelos eventos que lhe ocorrem internamente como as músicas e as graças rendidas a Deus por seus habitantes.

A eternidade e o tempo, para Santo Agostinho, são duas entidades opostas, não compreensíveis em si mesmas, mas apenas em contraposição uma a outra (1984: 338-358). O tempo é para o homem, pois implica na possibilidade de movimento e mudança. A eternidade é divina, pois resultado de Sua perfeita, eterna e imutável essência. Para o completo retorno a Deus, fim último da humanidade, é necessário que o tempo se desfaça, retornando a eternidade. Entre os medievais, alguns acreditavam na existência de um intervalo antes deste momento – eram os milenaristas, possuidores de uma específica visão da Salvação, que pode ser resumida na crença de um tempo intermediário entre a segunda vinda de Cristo e o retorno à eternidade – este Milênio de felicidade terrena, porém, assemelhava-se mais à utopia que ao mito (RACINE, 1985).

Num exercício de racionalização não muito caro aos medievais, que aceitavam a ambivalência dos símbolos com menos impaciência que os modernos, podemos estabelecer a existência de três paraísos no pensamento baixo-medieval. O primeiro deles era o lugar onde viveram Adão e Eva – o Paraíso Terrestre; o segundo, o lugar onde os Justos aguardam o Julgamento Final – o Paraíso Celeste; e o terceiro a Jerusalém Celeste, que com ou sem sua ante-sala, o Milênio, seria o lugar da eterna felicidade, atingida quando da Segunda Vinda do messias e do retorno à Eternidade. Estes diferentes tipos de Paraíso misturavam-se e separavam-se de maneiras variadas, pois a ambigüidade sempre se manteve, como em todo bom símbolo que pretende captar as mais variadas projeções de desejos e ansiedades de seus leitores.

O primeiro dos Paraísos tinha a topografia mais consagrada, pois extraído diretamente do relato do Gênesis, com suas plantas, animais e rios, e que se coadunava bem com os acréscimos folclórico/populares de formas de recompensa e prazer. O segundo e o terceiro já eram menos claros em seus contornos, pois mais espiritualizados e vinculados aos produtos da cultura clerical/letrada. O primeiro estava no passado do Homem, marcando o início da História, o segundo a acompanhava e o terceiro a encerraria.

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Revista Marabilia 4

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